Princípio da Supremacia do Interesse Público e Princípio da Indisponibilidade do Interesse Público: Pilares do Regime Jurídico-Administrativo


PorJeison- Postado em 22 outubro 2012

Autores: 
FERREIRA, Ana Luíza Gonçalves.

 

1. Introdução

Os princípios da Supremacia do Interesse Público e da Indisponibilidade do Interesse Público, apesar de implícitos no ordenamento jurídico, são tidos como pilares do regime jurídico-administrativo. Isto se deve ao fato de que todos os demais princípios da administração pública são desdobramentos desses dois princípios em questão, cuja relevância é tanta que são conhecidos como supraprincípios da administração pública.

Entretanto, antes de adentrar no tema proposto, é imprescindível expor alguns conceitos e fazer algumas observações, a fim de se alcançar um melhor entendimento.

2. Princípios

“Os princípios são as ideias centrais de um sistema, estabelecendo suas diretrizes e conferindo a ele um sentido lógico, harmonioso e racional, o que possibilita uma adequada compreensão de sua estrutura. Os princípios determinam o alcance e o sentido das regras de um dado subsistema do ordenamento jurídico, balizando a interpretação e a própria produção normativa”¹[1].

3. Administração Pública

            A Administração Pública abrange as atividades exercidas pelas pessoas jurídicas, órgãos e agentes incumbidos de atender as necessidades coletivas. Isto significa dizer que os atos administrativos têm por objetivo atingir a determinada finalidade, qual seja, o bem comum.

A Administração Pública compreende “as três ordens de funções estatais, quais sejam, executiva, legislativa e judiciária, incidente sobre o pessoal administrativo, os órgãos e os serviços estatais. Destarte, podemos afirmar que, em sentido estrito, a Administração Pública refere-se indistintamente ao Poder Executivo, ao Legislativo e ao Judiciário”[2].

3.1 Princípios da Administração Pública

Os princípios administrativos aparecem, seja de maneira implícita ou explícita, em diversas leis, das quais destacam-se a Constituição Federal de 1988, no caput de seu art. 37, e a Lei nº 9.784/1999, que discorre sobre os processos administrativos no âmbito federal, em seu art. 2º. Esta última enumera os seguintes princípios: legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência. Já a CF/88 é mais restrita ao enumerar tais princípios, explicitando  apenas:  legalidade,  impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, sendo este último acrescentado pela EC 19/1998. É de suma importância destacar que os princípios constitucionais ora citados são de observância obrigatória para todos os Poderes, quando estiverem no exercício de funções administrativas, e para todos os entes federados (União, estados, Distrito Federal e municípios), alcançando a Administração Direta e a Indireta.

Ainda sobre os princípios da administração pública, é interessante acrescentar que não existe hierarquia entre implícitos e explícitos, todos possuem a mesma importância para o Direito. Prova disso são os princípios basilares do regime jurídico-administrativo, que, como dito no início dessa introdução, se manifestam de maneira implícita no ordenamento jurídico.

Para corroborar a afirmativa do parágrafo anterior, utilizar-me-ei das sábias palavras do Ministro Marco Aurélio Mello, segundo o qual “os princípios podem estar ou não explicitados em normas. Normalmente, sequer constam de texto regrado. Defluem no todo do ordenamento jurídico. Encontram-se ínsitos, implícitos no sistema, permeando as diversas normas regedoras de determinada matéria. O só fato de um princípio não figurar no texto constitucional, não significa que nunca teve relevância de princípio”[3].

4. Regime Jurídico-Administrativo

            Trata-se do conjunto de regras que disciplina o interesse coletivo, possuindo, portanto prerrogativas de direito público, sendo aplicável aos órgãos e entidades que compõem a administração pública, bem como seus agentes administrativos em geral. Esse conjunto de regras, ao mesmo tempo em que concede ao Estado uma posição privilegiada em relação ao particular, através da qual consegue impor seus objetivos, também estabelece restrições. Essas prerrogativas e restrições concedias à administração pública traduzem-se nos princípios da Supremacia do Interesse Público e da Indisponibilidade do Interesse Público.

5. Princípio da Supremacia do Interesse Público

            O Princípio da Supremacia do Interesse Público existe com base no pressuposto de que “toda atuação do Estado seja pautada pelo interesse público, cuja determinação deve ser extraída da Constituição e das leis, manifestações da ‘vontade geral’” [4]. Dessa maneira, os interesses privados encontram-se subordinados à atuação estatal.

            Este supraprincípio fundamenta todas as prerrogativas de que dispõe a Administração como instrumentos para executar as finalidades a que é destinada. Neste sentido, decorre do Princípio da Supremacia do Interesse Público que havendo conflito entre o interesse público e o privado, prevalecerá o primeiro, tutelado pelo Estado, respeitando-se, contudo, os direitos e garantias individuais expressos na Constituição, ou dela decorrentes. Como exemplo desses direitos e garantias, tem-se o art. 5º da CF/88, XXXVI, segundo o qual a Administração deve obediência ao direito adquirido, à coisa julgada e ao ato jurídico perfeito. Fica patente, portanto, que a forma e os limites da atuação administrativa são determinados pelos princípios constitucionais; dessa maneira, assim como ocorre com todos os princípios jurídicos, o supraprincípio em questão não tem caráter absoluto.

            O Princípio da Supremacia do Interesse Público não está diretamente presente em toda e qualquer atuação da Administração Pública, limitando-se, sobretudo, aos atos em que ela manifesta poder de império (poder extroverso), denominados atos de império. Estes são “todos os que a Administração impõe coercitivamente ao administrado, criando unilateralmente para ele obrigações, ou restringindo ou condicionando o exercício de direitos ou de atividades privadas; são os atos que originam relações jurídicas entre o particular e o Estado caracterizadas pela verticalidade, pela desigualdade jurídica”[5].

            Por outro lado, há os chamados atos de gestão e atos de mero expediente, praticados pela Administração quando ela atua internamente, principalmente em suas atividades-meio, e sobre os quais não há incidência direta do Princípio da Supremacia do Interesse Público, isto porque não há obrigações ou restrições que precisem ser impostas aos administrados. Também não há incidência direta deste princípio nos casos em que a Administração atua regida pelo direito privado, como quando ela intervém no domínio econômico na qualidade de Estado-empresário, isto é, atua como agente econômico, conforme disposto pela Constituição em seu art. 173, § 1º, II.

            Dentre as prerrogativas de direito público da Administração Pública, derivadas diretamente do Princípio da Supremacia do Interesse Público, pode-se citar:

a)      As diversas formas de intervenção na propriedade privada;

b)      A existência, nos contratos administrativos, de cláusulas exorbitantes, as quais permitem à Administração modificar ou rescindir unilateralmente o contrato;

c)      As diversas formas de exercício do poder de polícia administrativa, traduzidas na limitação ou condicionamento ao exercício de atividades privadas, tendo em conta o interesse público;

d)     A presunção de legitimidade dos atos administrativos, que deixa para os particulares o ônus de provar eventuais vícios no ato, a fim de obter decisão administrativa ou provimento judicial que afaste a sua aplicação.

6. Princípio da Indisponibilidade do Interesse Público

            É imprescindível, antes de mais nada, destacar que quando se fala em Princípio da Indisponibilidade  do  Interesse  Público, tem-se  aqui interesse público em seu sentido amplo,  abrangendo todo o patrimônio público e todos os direitos e interesses do povo em geral. Após este esclarecimento, se faz interessante dizer que deste princípio derivam todas as restrições especiais impostas à atividade administrativa. Elas existem pelo fato de a Administração Pública não ser “dona” da coisa pública, e sim mera gestora de bens e interesses públicos. Isto significa dizer que esses bens e interesses públicos são indisponíveis à Administração Pública, bem como a seus agentes públicos, pertencendo, em verdade, à coletividade, ao povo.

            Em razão do Princípio da Indisponibilidade do Interesse Público “são vedados ao administrador quaisquer atos que impliquem renúncia a direitos do Poder Público ou que injustificadamente onerem a sociedade”[6]. Neste sentido, é interessante dispor que deste princípio decorrem diversos princípios expressos que norteiam a atividade da Administração, como os da legalidade, impessoalidade, moralidade e eficiência.

            Seguindo a linha de pensamento do parágrafo anterior, pode-se ainda dizer que não é permitido à Administração alienar qualquer bem público enquanto este estiver afetado a uma destinação pública específica. Caso o bem esteja desafetado, sua alienação deve atender a diversas condições legais, como a realização de licitação prévia e, no caso de imóveis da Administração Direta, autarquias e fundações públicas, observar a exigência de autorização legislativa, conforme a Lei 8.666/1993, em seu art. 17, inciso I.

            É fundamental destacar que, diferentemente do que ocorre com o outro supraprincípio pilar do regime jurídico-administrativo, o Princípio da Indisponibilidade do Interesse Público está diretamente presente em toda e qualquer atuação da Administração Pública. Neste sentido, é possível dizer que este princípio “manifesta-se (...) tanto no desempenho das atividades-fim, quanto no das atividades-meio da Administração, tanto quando ela atua visando ao interesse público primário, como quando visa ao interesse público secundário, tanto quando atua sob regime de direito público, como quando atua sob regime predominantemente de direito privado (a exemplo da atuação do Estado como agente econômico)”[7].

            O Princípio da Indisponibilidade do Interesse Público encontra-se em estreita relação com o Princípio da Legalidade, sendo por vezes confundidos. Isto porque, por não ser a Administração Pública proprietária da coisa pública, apresentando-se esta indisponível àquela, toda atuação da Administração deve atender ao estabelecido em lei, único instrumento capaz de determinar o que é de interesse público, tendo em vista que a lei é a manifestação legítima do povo, proprietário da coisa pública. Dessa maneira, se o administrador atua desviando-se da lei, pretendendo impor o seu conceito pessoal de interesse público, é passível da acusação de desvio de finalidade. Assim, como sabiamente afirmam Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo, a Administração Pública “deve, simplesmente, dar fiel cumprimento à lei, gerindo a coisa pública conforme o que na lei estiver determinado, ciente de que desempenha o papel de mero gestor de coisa que não é sua, mas do povo” 7.

O Princípio da Indisponibilidade do Interesse Público abre espaço para tratar de um ponto trabalhado pela doutrina italiana, atinente à distinção entre interesses públicos primários e interesses públicos secundários.

6.1 Interesses públicos primários e interesses públicos secundários

Os interesses públicos primários são os interesses diretos do povo, os interesses gerais imediatos. Já os secundários são os interesses imediatos do Estado na qualidade de pessoa jurídica, titular de direitos e obrigações. Estes interesses são colocados pela doutrina, em regra,   como   meramente   patrimoniais,   em   que   o  Estado  busca  aumentar  sua  riqueza, ampliando receitas ou evitando gastos. Neste sentido, manifestam-se nas atividades-meio da Administração, existentes para fortalecê-la como organismo, mas somente justificadas se forem instrumentos para a atuação em prol dos interesses primários.

Deveras, em qualquer hipótese, o interesse público secundário só é legítimo quando não é contrário ao primário. Caso o seja, nem sequer poderá ser chamado de interesse público, sendo apenas um interesse administrativo ou governamental ilegítimo.

            Para dar mais sentido à distinção feita entre interesse público primário e secundário, utilizar-me-ei, mais uma vez, das palavras de Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo, ao afirmarem que caracteriza-se como “interesse público secundário legítimo aquele que represente um interesse de uma pessoa jurídica administrativa na qualidade de titular de direitos, mesmo sem implicar a buscar direta da satisfação de um interesse primário, desde que: a) não contrarie nenhum interesse público primário; e b) possibilite atuação administrativa ao menos indiretamente tendente à realização de interesses primários”[8].

            Um exemplo claro do que foi exposto há pouco é a atuação de sociedades de economia mista exploradoras de atividades econômicas, em que essas entidades podem realizar operações cujo objetivo direto e imediato seja a obtenção de lucro para seus acionistas (o que inclui o Estado). Contanto que a operação não contrarie algum interesse público primário, será legítima e estará atendendo a um interesse público secundário (do próprio Estado). É relevante perceber que os recursos que o Estado receberá, na qualidade de acionista, possibilitam sua atuação visando à satisfação de interesses públicos primários. Tem-se, portanto, o atendimento a um interesse público secundário possibilitando a persecução de interesses primários.

7. Conclusão

            Após a leitura deste artigo, é possível perceber que a Administração Pública foi criada com o principal objetivo de gerir a coisa pública, visando, sempre, o interesse público. Para tanto, “distribuiu” sua função a órgãos, pessoas jurídicas e agentes públicos, todos submetidos ao regime jurídico-administrativo, responsável por disciplinar as atividades administrativas, dando-lhes prerrogativas e impondo-lhes restrições.

            O regime jurídico-administrativo apoia-se em dois supraprincípios fundamentais para um bom desempenho das atividades da Administração Pública, sendo, portanto, essenciais para que ela alcance sua finalidade, qual seja, o bem comum. Estes supraprincípios são o Princípio da Supremacia do Interesse Público e o Princípio da Indisponibilidade do Interesse Público.

            Os dois supraprincípios citados no parágrafo anterior, com suas diferenças e semelhanças, se complementam, como duas engrenagens que se encaixam perfeitamente dando funcionamento a um sistema, o qual seria, no caso em questão, o jurídico-administrativo. Dessa maneira, são destes supraprincípios que derivam os demais princípios expressos no ordenamento jurídico, que comparam-se às peças necessárias para completar o sistema, garantindo que funcione de modo eficiente.

8. Referências Bibliográficas

Direito Administrativo Descomplicado / Marcelo Alexandrino, Vicente Paulo. – 19 ed. rev. e atual. - Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2011.

Miranda, Henrique Savonitti, Curso de direito administrativo, 3ª ed., rev., Brasília: Senado Federal, 2005.

Notas:

[1] Direito Administrativo Descomplicado / Marcelo Alexandrino, Vicente Paulo. – 19 ed. rev. e atual. - Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2011, pág. 183.

[2] Miranda, Henrique Savonitti, Curso de direito administrativo, 3ª ed., rev., Brasília: Senado Federal, 2005, pág. 77.

[3] STF – 2ªT. – RE nº 160.381-SP, Rel. Ministro Marco Aurélio Mello. RTJ 153/1.030.

[4] Direito Administrativo Descomplicado / Marcelo Alexandrino, Vicente Paulo. – 19 ed. rev. e atual. - Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2011, pág. 184.

[5] Direito Administrativo Descomplicado / Marcelo Alexandrino, Vicente Paulo. – 19 ed. rev. e atual. - Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2011, pág. 185.

[6] Direito Administrativo Descomplicado / Marcelo Alexandrino, Vicente Paulo. – 19 ed. rev. e atual. - Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2011, pág. 186.

[7] Direito Administrativo Descomplicado / Marcelo Alexandrino, Vicente Paulo. – 19 ed. rev. e atual. - Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2011, pág. 187.

[8] Direito Administrativo Descomplicado / Marcelo Alexandrino, Vicente Paulo. – 19 ed. rev. e atual. - Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2011, pág. 188.

 

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