"Princípio do direito de recusa do obreiro"


Porgiovaniecco- Postado em 12 novembro 2012

Autores: 
JUNIOR, Cléber Nilson Ferreira Amorim.

 

 

 

O princípio protege o trabalhador de consequências injustificadas, como, por exemplo, se o trabalhador julgar necessário interromper uma situação de trabalho por considerar, por motivos razoáveis, que o trabalho envolve um perigo iminente e grave para a sua vida ou saúde.

"Entre o forte e o fraco, entre o rico e o pobre, entre o patrão e o operário, é a liberdade que oprime, e a lei que liberta." (Abade Lacordaire)

 

1 INTRODUÇÃO

O presente artigo visa demonstrar a profunda relevância do princípio do direito de recusa do obreiro para o sistema jurídico de tutela da saúde e segurança do trabalhador no país.

Para tanto, faz-se necessário prospectar este princípio específico, considerando-o verdade fundante admitida como condição básica de validade das demais normas a ele relacionadas. Tais normas são dotadas de cogência absoluta e asseguram aos trabalhadores direitos indisponíveis, ante ao caráter social do qual se revestem e o interesse público que o inspira.

O princípio jurídico é o mandamento nuclear de um sistema e verdadeiro alicerce dele. Além de ser disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico.[1]

O Direito Tutelar da Saúde e Segurança do Trabalhador, enquanto segmento jurídico especializado, constitui um todo unitário. Um sistema composto de princípios, categorias e regras organicamente integradas em si. Sua unidade sela-se em função de um elemento básico, sem o qual seria impensável a existência do próprio sistema. Nesse ramo jurídico, a categoria básica centra-se na intensidade da cogência como são tratadas as normas relativas à saúde e à segurança do trabalhador. Trata-se de normas imperativas, indeclináveis e inderrogáveis.[2]

 

O princípio do direito de recusa do obreiro, ao lado de outros princípios específicos do direito tutelar da saúde e segurança do trabalhador, foi apresentado em artigo publicado por este autor neste mesmo site (Jus Navigandi).[3] Na oportunidade, foi demonstrado que a integridade física e psíquica do trabalhador é um direito fundamental com respaldo na Constituição Federal (art. 6º e art. 7º, XXII), nas normas internacionais, nas Convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT), na CLT (Capítulo V, Título II), nas inúmeras instruções normativas, nas Normas Regulamentadoras e nas portarias expedidas pelo Ministério do Trabalho e Emprego.

O mencionado princípio tem como finalidade proteger o trabalhador de consequências injustificadas, como, por exemplo, se o trabalhador julgar necessário interromper uma situação de trabalho por considerar, por motivos razoáveis, que o trabalho envolve um perigo iminente e grave para a sua vida ou saúde. Assim sendo, o trabalhador não pode ser penalizado pelo empregador por estar exercendo o direito legítimo de defesa de sua vida, que é decorrência natural do princípio da indisponibilidade da saúde do trabalhador.[4]

No presente estudo, apresenta-se o fundamento da racionalidade do exercício do poder de mando pelo capitalista em relação aos seus empregados. Além de tratar da natureza jurídica desse poder e os limites do seu exercício no estado democrático de direito, no qual se situa o direito de recusa e a necessidade de sua efetivação prática.


 

2 AUTORIDADE E SUBORDINAÇÃO: A JUSTIFICAÇÃO CONTRATUALISTA

A origem da teoria contratualista remonta às doutrinas jurídicas e políticas do iluminismo, nascida no contexto histórico da Revolução Burguesa. Nesse contexto, soergue-se a trilogia Revolução Industrial, Iluminismo e Contratualismo como modelos icônicos de uma nova racionalidade. Como resultado do avanço tecnológico, de uma complexa dinâmica econômica e social e do esgotamento do modo de produção feudal - baseado nos métodos de organização do trabalho, de produção manufatureira e nos vínculos de vassalagem - eclodem os conceitos de liberdade política e igualdade formal necessários à nova dinâmica das relações sociais capitalistas, cujo cerne é o contrato de compra e venda da  força de trabalho.[5]

A propriedade privada e o contrato são o núcleo dessa concepção e são figuras jurídicas em que se plasmam a vontade e a razão humana, que agora subjugam o universo. Dentre todos os filósofos clássicos da ilustração, é John Locke o que melhor revela a concepção de direito de propriedade como derivado da razão natural. Segundo o pensador, a razão natural aceita e vê como inquestionável o direito à vida e à autoconservação extraída dos bens colocados pela natureza à disposição do homem.[6]

Essa concepção se funda numa ideia de índole manifestamente antropocêntrica, a de que todas as riquezas do universo foram criadas por Deus para suporte e comodidade da vida humana, eixo em torno do qual o universo se movimenta. Ninguém tem originalmente um exclusivo domínio privado sobre nenhuma destas coisas tal como são dadas no estado natural. Ocorre, entretanto, que, como ditos bens estão aí para uso dos homens, deve haver necessariamente algum meio de apropriar-se deles, o que, por um lado, justifica a instituição da propriedade privada.

Por outro lado, a propriedade privada é fundamentada pelo próprio trabalho, enquanto valor universal e fenômeno que produz a transformação da natureza em proveito do próprio homem. Qualquer coisa que ele retira do estado em que a natureza a produziu e a deixou, e a modifica com seu labor e acrescenta a ela algo que é de si mesmo, é, por conseguinte, propriedade sua. [7]

O mundo moderno representa a glorificação do trabalho, e resultou na transformação efetiva de toda sociedade em uma sociedade operária. [8]

A fonte de todas as obrigações passa a ser o arbítrio do homem. O que a lei reconhece e ao que dá validade e vigor jurídico é a concorrência de consentimentos expressados em forma legal, de modo que todo acordo que reúna tais condições é um contrato válido e eficaz, e seu cumprimento pode ser reclamado e conseguido ante os tribunais.[9] Forja-se a ideia de que a restrição da liberdade é resultado de uma dada racionalidade: o indivíduo já não se submete como escravo a seu proprietário, ou como servo ao suserano. Ele é apenas sujeito de uma convenção, de algo instituído no plano das ideias por um cálculo de conveniências.  

O ordenamento positivo é agora um contrato do tipo social que é o instrumento de libertação da escravidão[10] e passa a ser tomado como fonte das relações obrigacionais entre capital e trabalho e, portanto, como força geradora do fenômeno dos poderes diretivos e do estado de sujeição a eles correspondente. A subordinação ao contrato implica um juízo de valor das partes que o realizam: a aceitação do interesse plasmado no acordo de vontades em detrimento do seu interesse individual.

As relações de poder nascem do concerto de vontades entre as partes, de onde decorre a polaridade débito-responsabilidade, em que consiste o vínculo contratual.[11] Ao realizar-se o negócio jurídico bilateral, obriga-se o trabalhador à prestação de uma atividade específica e, a igualmente, a um dever geral de fidelidade, isto é, de acatamento às futuras determinações do empregador no sentido de estabelecer o conteúdo concreto da prestação.

Paralelamente aos deveres, são pactuadas as cláusulas penais aplicáveis em face do inadimplemento de uma das partes. O núcleo central da fundamentação localiza-se no campo da autonomia privada, em cujos domínios é representada a vontade humana.

A origem da doutrina contratualista estende-se aos séculos XVII e XVIII, nos primórdios da experiência jurisprudencial do liberalismo nascido do paradigma da Revolução Industrial, coincidindo com o protagonismo adquirido pelo contrato na sociedade burguesa. O contrato regula a vida e a morte, atua em todos os âmbitos da vida, desde o casamento, visto como contrato matrimonial, até o próprio contrato social que fundamenta a legitimidade do Estado, passando pela sucessão e por todos os demais atos civis e alcançando, até mesmo, os de soberania estatal, como nas relações do governo com os que lhe prestam serviços como funcionários. Na esteira deste protagonismo, o contrato acaba por penetrar em um território antes defeso à autonomia privada, as relações econômicas de produção.

A essencial peculiaridade material da vida jurídica moderna, especialmente a privada, é a enorme importância adquirida pelo negócio jurídico e, sobretudo, pelo contrato, como fonte de pretensões coativamente garantidas.[12]

As primeiras justificações contratualistas têm um papel instrumental de legitimação dos mecanismos de sanção adotados na práxis dos novos modelos de organização da produção capitalista. Como exemplo pode-se citar as decisões da corte de cassação francesa, que negava tutela jurisdicional à pretensão deduzida por trabalhadores em face do aviltamento salarial produzido pela imposição de multas aplicadas por empresas diante de infrações de natureza simples. Baseado no conceito de intangibilidade do conteúdo do contrato - do qual decorre a ideia de que esse conceito enverga força de lei entre os contratantes - aquele alto tribunal atribuía à prospecção exercitada pelo juiz um caráter meramente tangencial, supondo ser a ele vedada a cognição da racionalidade intrínseca do pacto firmado pelas partes.[13] Dessa forma, o órgão jurisdicional reduzia-se a mero protetor de conteúdo, pactuando e consagrando a adoção de um mecanismo de autotutela privada cujo núcleo duro, a sanção disciplinar, era e é, até nossos dias, comparável em natureza e função à sanção penal cuja natureza é repressiva e cuja função é intimidativa e de prevenção.[14]

O contrato de trabalho tem por objeto uma série de comportamentos objetivamente idôneos a influir o mundo externo em proveito de terceiro, diferenciando-se, assim, de todos os demais contratos que se referem ao direito sobre as coisas e dos que se referem a transações tradicionais. O seu resultado se enquadra na organização objetiva da empresa e faz parte integrante do seu resultado final, que é adquirido pelo empresário a título original. [15]

Para Max Weber o poder de caráter racional-legal é a base elementar sobre a qual se erigem as relações capitalistas de produção. Na composição do tipo ideal de dominação legal ou burocrática ele dá ênfase ao estudo da relação estabelecida pelo trabalhador que está ligado por contrato à empresa capitalista.

Ao sintetizar didaticamente seus três tipos ideias de dominação, Weber faz referência expressa ao intercâmbio jurídico entre capitalista e operário como protótipo da autoridade do tipo burocrática. O poder tradicional é lastreado no hábito inveterado, como no caso dos vínculos entre a criança e o pai. O poder carismático pode ser simbolizado no liame entre o membro de uma comunidade religiosa e seu profeta. E o poder legal é representado pela relação contratual entre trabalhador e empresa. O traço mais característico deste último é o fundamento racional da relação, a impessoalidade da sujeição, que não se estabelece em face de um profeta dotado de poderes sobrenaturais ou de um chefe de família a quem se dedica uma devoção advinda de uma consciência imemorial, mas, sim, em virtude de um dever de disciplina, que é formal, racional e objetivo.[16]

Neste sentido, a disciplina é expressa em instruções e ordens de serviço relacionadas ao trabalho e implica, também, a submissão a uma autoridade, numa relação de dominação. Neste caso, dominação é uma relação de autoridade marcada por um elemento específico: a aceitação. Já a disciplina denota uma ideia especial de sujeição, de obediência, sendo definida como a probabilidade de encontrar obediência pronta, simples e automática para um mandato por parte de um conjunto de pessoas, em virtude de práticas nelas arraigadas. Sendo assim, na relação disciplinar, via de regra, não há resistência e nem oposição, pois os sujeitos aos quais se dirige o comando encontram-se racionalmente predispostos a submeter-se à determinação.[17]

Weber sabe e deixa claro que esta aceitação não quer dizer exercício pleno de livre escolha. Sabe que o trabalhador está obrigado a vender sua força de trabalho e sujeitar-se a uma relação de mando sob pena de perecer. Mas ele quer deixar assentado que, ao submeter-se ao domínio do patrão, o trabalhador da empresa capitalista dá a si mesmo justificativas diversas das que prevaleciam no passado. Ele acredita estar obedecendo a um estatuto e a uma força vinculativa de um contrato que atribui autoridade ao empregador.

Também para Karl Marx o contrato de trabalho é fundamento jurídico da subordinação, mas a liberdade do trabalhador é coarctada pela necessidade de sobrevivência e por sua situação de dependência permanente. Por isso, na representação ideológica que tem da realidade, o operário supõe que se sujeita aos ditames do empresário capitalista em razão da lógica contratual, na qual ele ajusta os meios de que dispõe, como sua capacidade de trabalho, ao fim perseguido, que é a sua sobrevivência e a de sua família. Desta forma, é impulsionado por necessidades impostergáveis, mas também por um sentimento de responsabilidade, e, portanto, por determinação livre. Nisto consiste a racionalidade: na adequação dos meios aos fins.[18]

Portanto, no modo de produção capitalista os trabalhadores são livres, e esse simulacro de liberdade dá status de racionalidade à sua submissão ao capital. Há uma eleição voluntária que é inteiramente livre no plano jurídico, mas rigorosamente coercitiva no âmbito real em que a relação se dá. O negócio pelo qual o trabalhador vende sua capacidade de trabalho é um ato jurídico cerebral, alicerçado em uma postura de ponderação e racionalidade. O problema é que a especificidade das regras do mercado em que se realiza o intercâmbio não permite ao empregado condições estratégicas isonômicas. Antes há um desequilíbrio estrutural que se desdobra em um conflito social e político insolúvel.[19]

Hoje, de certa forma, já bastante afastada dos cânones de sua gênese instrumental, da qual a nota distintiva foi a justificação dos sistemas privados de autotutela e sanção, a teoria contratualista sobrevive hígida a seus dois séculos de conflituosa atuação no cenário em que o direito constrói e delimita seus conteúdos no território das relações entre o capital e o trabalho.


 

3 O PODER DIRETIVO NO CONTRATO DE TRABALHO

Entendida a racionalidade em que se funda a subordinação do trabalhador ao capitalista que tem base contratual por ser plasmada no contrato de trabalho, passa-se a abordagem jurídico-doutrinária do assunto.

O legislador conceitua empregador, à luz do art. 2º da CLT, como sendo a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, contrata, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviços. Essa direção é vista pela doutrina como o comando exercido pelo empregador sobre a atividade do empregado.

Maurício Godinho Delgado define poder diretivo como o conjunto de prerrogativas tendencialmente concentradas no empregador dirigidas à organização da estrutura e espaço empresariais internos, inclusive o processo de trabalho adotado no estabelecimento e na empresa, com a especificação e orientação cotidianas no que tange à prestação de serviços.[20]

A concentração do poder de organização faz-se na figura do empregador. Isso se explica em face do controle jurídico, sob diversos ângulos, que o empregador tem sobre o conjunto da estrutura empresarial e em face também do princípio da assunção dos riscos do empreendimento que sobre ele recai.

O poder diretivo, assim, é definido pela capacidade atribuída ao empregador de dar conteúdo concreto à atividade do trabalhador, visando a realização das finalidades da empresa. Este poder deriva do direito subjetivo exatamente por se tratar de algo encerrado na esfera de uma relação jurídica. [21]

As vertentes doutrinárias que procuram explicar a natureza jurídica do poder diretivo são duas. A primeira, o vê como um direito potestativo que, na concepção de Larenz[22], é o que habilita uma pessoa a estabelecer uma relação jurídica com outra ou a determiná-la especificamente em seu conteúdo, modificá-la ou extingui-la mediante uma declaração de vontade unilateral, e, a outra parte tem que aceitar e tolerar a modificação jurídica e a invasão súbita em sua esfera jurídica.

A segunda vertente lhe atribui a natureza de um direito-função, o qual consiste na imposição do exercício de uma função pela norma jurídica a alguém, com o qual o titular do direito passa a ter obrigações[23]. Esse é um direito com fins altruístas, que deve ser exercido segundo sua finalidade, da maneira mais útil possível pela pessoa habilitada. A função não elimina o direito, simplesmente o coloca a seu serviço, como ocorre com o direito de propriedade.[24]

Desta forma, o direito-função constitui o poder atribuído ao titular para agir em tutela de interesse alheio, e não de estrito interesse próprio. A potestade inerente ao direito-função não se esgotaria na prerrogativa favorável ao titular, importando também na existência correlata de um dever a ele atribuído.[25] O direito-função caracterizaria, ilustrativamente, as relações do pai perante a família, do administrador perante a fundação, do sindicato perante a categoria, do empresário perante a empresa. O empregador exerceria, desse modo, seu direito-função não em exclusivo interesse, mas tendo em vista o interesse da comunidade dos trabalhadores contratados.[26]

A concepção de direito-função traduz claro avanço teórico sobre as concepções anteriores. Trata-se, afinal, da primeira abordagem que se mostra sensível ao dado empírico da participação obreira no contexto empresarial interno e aos efeitos decorrentes dessa participação, principalmente os efeitos limitadores da vontade do sujeito-empresário. O unilateralismo pleno que as concepções precedentes conferem ao poder intraempresarial cede espaço a uma concepção unilateral atenuada, em que o titular do direito tem que apreender e reverenciar, de algum modo, os interesses que lhe sejam contrapostos no universo do estabelecimento e da empresa. O titular do direito está também submetido a um dever, cumprindo-lhe praticar condutas de tutela de interesses alheios.[27]

O conteúdo do poder diretivo é amplo e compreende três funções.[28] A primeira função é traduzida pelas decisões executivas, que dizem respeito à organização do trabalho e se manifestam por meio de atos meramente constitutivos, não determinando nenhuma conduta para os trabalhadores. A segunda é a instrução, que se exterioriza por intermédio de ordens ou recomendações, cuja eficácia real depende de uma observância do trabalhador. Finalmente, o poder de direção tem ainda a função de controle, que consiste na faculdade do empregador fiscalizar as atividades profissionais de seus empregados.

Assim sendo, a autoridade do empregador exterioriza-se pelo poder de direção e torna-se efetiva pelo poder de controle e disciplinar.

O poder de controle é o conjunto de prerrogativas dirigidas a propiciar o acompanhamento contínuo da prestação de trabalho e a própria vigilância efetivada ao longo do espaço empresarial interno. Medidas como o controle de horário e frequência, o controle da produtividade e a prestação de contas são exemplos desse poder.

Aliado ao poder de controle, o empregador conta, também, com o poder disciplinar, por meio do qual ele impõe sanções aos empregados em face do descumprimento de obrigações contratuais, que se fossem consideradas em uma gradação, representaria a advertência a pena mais leve, passando pela suspensão, e, encontrando na dispensa por justa causa sua máxima expressão.

A análise acerca do fundamento jurídico do poder empregatício desdobra-se, como mencionado, em uma dimensão doutrinária e uma dimensão legal. Enquanto a primeira dimensão de pesquisa busca a efetiva fundamentação do poder empregatício, isto é, a causa ou fator que confere título e substrato jurídicos à própria existência do fenômeno e que permite sua incorporação pelo universo normativo vigorante, a dimensão legal da pesquisa busca os textos normativos vigorantes que conferem suporte à presença do poder empregatício no contexto do direito.

Esta última investigação não encontrará, certamente, no direito brasileiro, regra jurídica expressa que faça referência ao poder empregatício. De fato, não há no direito do trabalho do país regra ou conjunto de regras que explicitamente instituam e regulamentem o fenômeno do poder no estabelecimento ou na empresa. Essa existência  deriva da estrutura e da dinâmica do próprio contrato do trabalho e do conjunto de prerrogativas a ele inerentes e distribuídas entre as partes contratuais. A legislação atual brasileira, portanto, por vias indiretas ou implícitas é que tende a tratar do poder empregatício, estabelecendo ou limitando prerrogativas no contexto intraempresarial.[29]

Entre essas normas que, indiretamente, reportam-se ao poder empregatício destaca-se, na CLT, o preceito contido no caput do art. 2º celetista, que menciona a prerrogativa deferida ao empregador no tocante à direção na prestação dos serviços. Destacam-se, também, na mesma linha, certos preceitos celetistas que reconhecem, em alguma proporção, o chamado jus variandi do empregador no contexto do contrato, como o que trata de transferência de local de trabalho (art. 469, da CLT) e o que fixa limites temporais à suspensão disciplinar no âmbito empregatício (art. 474, da CLT).

Ressalte-se, contudo, a tendência de o direito do trabalho criar mecanismos e processos de bilaterização ou multilaterização da dinâmica do exercício do poder no contexto empregatício. Essa tendência deve avançar, em vista da democratização da sociedade política e civil no país, em seguida à queda do regime autoritário de 1964. A Carta de 1988, por exemplo, situa o trabalho como fundamento da República e o posiciona no mesmo patamar da livre iniciativa (art.1º,IV), e, ainda, reconhece o direito de propriedade, desde que atenda a sua função social (art. 5º, XXII e XXIII, CF/88).

Daí decorre que o exercício do poder diretivo possui limites externos, impostos pela Constituição, por outras leis, pelo contrato, pelas normas coletivas, e, limites internos impostos pela boa-fé e pelo seu exercício regular.

Neste esteio, cumpre ressaltar que as ordens emitidas por quem não está legitimado a fazê-lo, as ordens ilícitas ou capazes de lesar direitos à integridade física ou moral do empregado poderão ser desobedecidas. Logo, o empregado não está obrigado a acatar ordens que lhe exijam uma conduta ilegal, aliás, ele tem o dever de descumpri-la, sob pena de responder por ela criminalmente. Também não está obrigado a obedecer ordens que lhe acarretem perigo à vida, como é o caso do carpinteiro que se nega a desenvolver trabalho em telhado enquanto não for fornecido, pelo empregador, o cinto de segurança.

Neste quadro se insere o direito legítimo do trabalhador de interromper uma situação de trabalho por considerar, por motivos razoáveis, que ele envolve um perigo iminente e grave para a sua vida ou saúde, sem sofrer qualquer penalidade por parte do empregador, em virtude de estar no exercício regular do seu direito.

A situação ora apresentada constitui o escopo do estudo e, por envolver uma teia de implicações sociais e jurídicas próprias, será analisada de forma detida no próximo tópico.

 

4 A FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO E O PRINCÍPIO DO DIREITO DE RECUSA

A obrigação de trabalhar assumida pelo empregado ao celebrar o contrato vem acompanhada do dever de obediência às ordens, instruções e recomendações lícitas do empregador, que é uma característica manifesta da subordinação jurídica do empregado.

Evidentemente, o dever de obediência circunscreve-se às ordens lícitas, emanadas de quem esteja legitimado a fazê-lo, não contrárias à saúde, à vida ou à dignidade do trabalhador, quando então a recusa ao seu cumprimento é legítima.

Assim, a prática da recusa ao cumprimento de ordens ilícitas, neste caso,

corresponde  ao ato praticado em legítima defesa da vida, conforme o art.188 do Código Civil Brasileiro, ao preconizar que “Não constituem atos ilícitos: os praticados em legítima defesa [...]”.

Esta norma-princípio encontra-se plasmada no art.13 da Convenção n. 155 da OIT, ratificada pelo Brasil, com a seguinte redação:

De conformidade com a prática e as condições nacionais, deverá ser protegido, de consequências injustificadas, todo trabalhador que julgar necessário interromper uma situação de trabalho por considerar, por motivos razoáveis, que ela envolve um perigo iminente e grave para sua vida ou sua saúde.[30]

O perigo grave e iminente mencionado pode ser conceituado como sendo toda e qualquer condição ambiental que esteja na iminência de propiciar a ocorrência de acidente de trabalho, inclusive, em suas variantes de doença profissional ou do trabalho, com lesões graves à saúde ou a integridade de pelo menos um trabalhador, senão a própria morte deste.

 

O acidente do trabalho tem como critério a subtaneidade. Ele acontece de forma súbita e num local determinado. A doença ocupacional manifesta-se de forma insidiosa, pois progride e evolui ao longo do tempo, e, geralmente, não é diagnosticada em seu estágio inicial.

O risco será iminente quando a exposição do trabalhador for direta, imediata, ou num futuro muito próximo. O dano físico ou a lesão grave provocada por exposição do trabalhador ao risco iminente, entretanto, não deverá, necessariamente, se manifestar de imediato.

Assim sendo, a lesão grave poderá ser imediata ou mediata. Desse modo, a probabilidade de efeito ou de dano poderá ocorrer de imediato (amputação de membro na operação de máquina perigosa; intoxicação aguda por agente tóxico) ou em tempo futuro (um câncer pulmonar pode ter período de latência de 10, 20 ou mais anos; uma pneumoconiose pode ser aguda, eclodindo após um a dois anos de exposição, ou crônica, eclodindo após 10, 15 ou mais anos de exposição)

Portanto, a probabilidade da ocorrência de dano físico e lesão grave provocada pela exposição ocupacional deve ser objeto de análise preliminar à atividade dos trabalhadores e, na sua avaliação, devem ser considerados os dados estatísticos e epidemiológicos da atividade econômica e os riscos a ela inerentes.

Em vista disso, as situações descritas acima revelam a ocorrência de riscos no trabalho. Não é sem sentido que a ideia de risco se associa à possibilidade de exposição a um evento danoso ou a uma série de circunstâncias e situações que podem colocar em perigo a saúde e a vida dos trabalhadores, principalmente através do acontecimento infortunístico.

Aqui merece ser registrado que o risco advém de uma decisão humana, não indicando, por conseguinte, surpresa. Existe uma expectativa, mesmo que remota, que possa acontecer. Um exemplo disso são as atividades desenvolvidas na pavimentação, na qual os trabalhadores se expõem a emissões tóxicas de asfalto que são agentes químicos cancerígenos. [31]

Apesar de não ser muito explorado pela literatura, distingue-se o risco do perigo que é atribuído a uma causa externa, evento ocasionado pela natureza, ausente a noção de opção. Claro que se tendo antecipadamente ciência do perigo de determinado desastre, a omissão em preveni-lo transforma-o em risco.[32]

Desta forma, não obstante o mencionado  art.13 da Convenção n. 155 da OIT trazer em seu texto a expressão perigo iminente e grave, a terminologia mais adequada, no caso, é risco grave e iminente, uma vez que o risco se encontra dentro do campo da previsibilidade, e, consequentemente, pode ser eliminado ou minimizado.

Neste contexto, não é razoável se exigir do trabalhador o sacrifício de sua exposição à condição de risco grave e iminente à sua vida ou integridade física, uma vez que o maior avanço alcançado na seara trabalhista foi justamente a separação da atividade laboral da pessoa do trabalhador[33]. O Direito do Trabalho surge, justamente, para compensar a inferioridade econômica do trabalhador.

Hoje, tanto o setor de produção da empresa, como as medidas de proteção à saúde e segurança do trabalhador, devem se beneficiar, igualmente, dos avanços tecnológicos, de modo a diminuírem, cada vez mais, a exposição dos trabalhadores a riscos que, em outros tempos eram considerados aceitáveis.[34]

No estágio civilizatório em que se encontra a sociedade hoje não se deve mais admitir que o trabalhador continue vivendo as condições laborais do período da Revolução Industrial, que deixou à mostra a fragilidade do homem na competição desleal com a máquina, ao lado dos lucros crescentes e da expansão capitalista que aumentavam paradoxalmente a miséria, o número de doentes, de mutilados, dos órfãos e das viúvas, nos sombrios ambientes de trabalho.[35]

Na escala de valores, acima dos direitos decorrentes do trabalho, deve figurar as garantias possíveis da preservação da vida e da integridade física e mental do trabalhador.

Como preleciona o professor Sebastião Oliveira:

Não basta assegurar direitos reparatórios aos lesados (visão da infortunística); é imperioso, também, exigir que o empregador ou tomador dos serviços adote todos os recursos e tecnologias disponíveis para evitar as lesões (visão prevencionista) [...][36]

Essa ideia está consubstanciada na Política Nacional de Segurança e Saúde no Trabalho, aprovada pelo Decreto n. 7.602, de 7 de novembro de 2011, que tem como um de seus princípios “a precedência das ações de promoção, proteção e prevenção sobre as de assistência, reabilitação e reparação”. [37]

O princípio constitucional da inviolabilidade do direito à vida (art. 5º, caput, da CF/88), aplicado ao caso, abrange tanto o direito de não ser morto ou privado da vida (o direito de continuar vivo), como também o direito de ter uma vida digna.[38] Assim sendo, deve-se considerar que o trabalhador põe à venda sua força de trabalho e não a sua vida ou dignidade. Aliás, esta é a ideia sintetizada no art. 427, 1, do Tratado de Versalhes ao asseverar que “[...] o trabalho não pode ser considerado como mercadoria.”

Nesta mesma linha de pensamento, e em nível infraconstitucional, encontra-se o princípio da irrenunciabilidade dos direitos da personalidade, neles incluídos o direito à vida e à integridade física e psíquica, constante do art. 11 do Código Civil. Este fortalece o entendimento sobre o princípio da indisponibilidade da saúde do trabalhador[39] e reforça a ideia de que esses direitos são inatos, absolutos, intransmissíveis, indisponíveis, irrenunciáveis, imprescritíveis, impenhoráveis, inexpropriáveis e ilimitados.[40]

O direito à vida se reveste, em sua plenitude, de todas as características gerais dos direitos da personalidade, devendo-se enfatizar o aspecto da indisponibilidade, uma vez que a caracteriza, nesse campo, um direito à vida e não um direito sobre a vida, constituindo-se num direito de caráter negativo, e, impondo-se pelo respeito que a todos os componentes da coletividade se exige. Com isso, tem-se presente a ineficácia de qualquer declaração de vontade do titular que importe em cerceamento a esse direito, uma vez que se não pode ceifar a vida humana, por si, ou por outrem, mesmo sob consentimento, porque se entende, universalmente, que o homem não vive apenas para si, mas para cumprir missão própria da sociedade. Cabe-lhe, assim, perseguir o seu aperfeiçoamento pessoal e também contribuir para o progresso geral da coletividade, objetivos esses alcançáveis ante o pressuposto da vida. [41]

Não obstante a relação estabelecida entre o princípio da indisponibilidade da saúde do trabalhador com o princípio do direito de recusa do obreiro, do qual este decorre naturalmente, deve-se somar o entendimento de que este princípio possui íntima relação com o princípio da função social do contrato.

Deste o início do estudo foi deixado claro que o fundamento do poder do empregador está no contrato de trabalho e que este poder tem natureza de direito-função, que, tal qual na esfera pública, deve ser exercido no âmbito particular da empresa, tendo em vista não o seu exclusivo interesse, mas o da coletividade dos trabalhadores contratados. A função assim não elimina o direito, simplesmente o coloca a seu serviço, como ocorre com o direito de propriedade.

Essa teoria está em consonância com a função social do contrato, reconhecida pelo art.421 do Código Civil de 2002, aplicável subsidiariamente ao Direito do Trabalho, por força do art.8º da CLT.

Segundo o art.421 do Código Civil em vigor: “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”. Portanto, o princípio da função social do contrato procura analisar o contrato a partir do meio social que o circunda, tendo eficácia não só entre as partes contratantes, como também para além delas.[42]

Dentro dessa proposta de análise de acordo com o meio social, o princípio da função social dos contratos chega a ser confundido com o próprio princípio da supremacia da ordem pública.

Na visão clássica, pelo princípio da supremacia da ordem pública, o contrato não pode trazer preceitos em conflito com a moral, com as normas de ordem pública e com os bons costumes. Por tal princípio, concebe-se a mais importante limitação à liberdade de contratar, não podendo o pacto trazer cláusulas que estejam em choque com as normas que interessam à coletividade, que é o caso das normas de tutela da saúde e segurança do trabalhador.

Além do mencionado art. 421 do Código Civil, o art. 2.035, parágrafo único, do mesmo código, prevê que: “Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos.”

É fundamental deixar claro que a dicção do dispositivo traz nova concepção ao instituto do contrato, de acordo com todas as tendências socializantes do direito, antenadas com a valorização da dignidade da pessoa humana, com a busca de uma sociedade mais justa e solidária e com a busca da isonomia ou igualdade lato sensu, princípios do Direito Civil Constitucional.[43]

Tratando-se de norma de ordem privada ou particular não há qualquer limitação para se dispor de maneira diferente no instrumento negocial. Todavia, não se pode dizer o mesmo se a norma correlata for de ordem pública.

Assim sendo, deve-se enfatizar que, na questão relativa à saúde e à segurança do trabalhador, todas as normas são cogentes e de ordem pública, porque o interesse visado protege não só indivíduo, mas a sociedade como um todo, por isso, não dispõem as partes de liberdade alguma para ignorar ou disciplinar de forma diversa os preceitos estabelecidos, a não ser para ampliar a proteção mínima estabelecida.

A respeito da limitação no convencionado entre as partes, a Constituição Federal de 1988 teve influência decisiva na intervenção estatal no mundo privado, eis que há previsão expressa de uma ordem econômica e social (art.170), que consagra de forma indireta a solidariedade social (art.3º, I). Ademais, com a atual Constituição, a tão aclamada proteção da dignidade da pessoa humana encontra expressão máxima, conforme o seu art. 1º, III.

Do exposto, resta claro que o empregador não pode exigir que, em atendimento ao poder de direção, o empregado submeta sua vida ou saúde à condição de risco grave e iminente, pois, neste caso, não estaria o empregador exercendo um direito potestativo ou legítimo, mas, sim, estaria praticando violação de direitos fundamentais, que são constitucionalmente tutelados.

Desta forma, o princípio do direito de recusa do obreiro é decorrência natural do princípio da indisponibilidade da saúde do trabalhador e nos informa que o trabalhador não pode ser usado e queimado como lenha que alimenta a casa de máquinas da locomotiva do sistema capitalista de produção.

 

5 O PRINCÍPIO DO DIREITO DE RECUSA DO OBREIRO E SUA EFETIVAÇÃO

Do exposto, inferi-se que, não obstante o trabalhador ter respaldo legal, constitucional e até em convenção internacional da OIT, ratificada pelo Brasil, para exercer o direito de recusa em caso de situação de trabalho que envolva risco grave e iminente para sua vida ou saúde, ele encontra, por outro lado, barreiras para o exercício desse direito, como é o caso de sua dispensa do emprego, que não precisa ser justificada pelo empregador, das condicionantes sociais nas quais o trabalhador se encontra imerso, enquanto parte hipossuficiente na relação do contrato de trabalho, e, ainda, da falta de preparo de muitos trabalhadores quanto ao reconhecimento dos riscos aos quais estão expostos.

Assim sendo, o princípio do direito de recusa do obreiro encontra-se, na prática, mitigado, em ordens jurídicas como a brasileira, uma vez que o risco do rompimento do contrato pelo empregador inibe eventual posição defensiva do empregado em face de determinações abusivas recebidas[44].  O homem médio busca a segurança e a estabilidade econômica sua e de sua família, o que acarreta presunção de que todos desejam uma colocação no mercado de trabalho, já que o desemprego assusta e traz instabilidade econômica.[45]

Nestes termos, andou mal o governo brasileiro ao denunciar, pelo Decreto n. 2.100, de 20 de dezembro de 1996, a Convenção n.158 da OIT , que trata do término da relação de emprego por iniciativa do empregador, depois de sete meses de sua vigência no Brasil. Passados mais de quinze anos, persiste a inquietação jurídica acerca da malfadada denúncia, o que provocou, inclusive, o reenvio da referida convenção pelo Presidente da República ao Congresso Nacional, para nova deliberação.

 

O art. 4 da Convenção 158 da OIT prescreve que “[...] não se dará término à relação de trabalho de um trabalhador a menos que exista para isso uma causa justificada relacionada com sua capacidade ou seu comportamento ou baseada nas necessidades de funcionamento da empresa, estabelecimento ou serviço.”

No que diz respeito ao comportamento obreiro, a situação-tipo estará configurada quando o comportamento do trabalhador não se alinhar aos padrões éticos e morais exigidos do homem médio. Aquele empregado que tumultua o ambiente de trabalho, que é descumpridor de suas funções e relapso no desempenho de suas atividades poderá ser dispensado motivadamente.

Neste caso, o princípio do direito de recusa do obreiro asseguraria o posto de trabalho do empregado, por estar o seu comportamento alinhado ao ordenamento jurídico laboral vigente e, assim, não haveria justificativa para a sua dispensa.

Nesta linha de raciocínio, o direito potestativo do empregador de resilir o contrato de trabalho passaria a ser obtemperado por circunstâncias objetivas presentes previamente no ato demissionário, constituindo uma forma de dispensa socialmente justificada.

Porém, o que acontece hoje, é que, sob a hipocrisia do livre exercício do direito potestativo de resilir o contrato de trabalho, ocultam-se os escusos motivos de convicção filosófica, cor, origem, credo, gravidez, atuação sindical do trabalhador, doença profissional, estabilidade, dentre outras inúmeras causas discriminatórias, além, naturalmente, das dispensas realizadas com o único propósito de contratar nova mão de obra com salários menores, ou, até mesmo a despedida do empregado que se negou a realizar trabalho em condições de risco grave e iminente à vida.

Desta forma, a restauração da vigência da Convenção n. 158 da OIT, por certo, traria respaldo jurídico ainda maior para o empregado exercer seu direito de recusa, evitando sua dispensa imotivada.

Todavia, a proteção contra a dispensa imotivada do trabalhador, apesar de ter eminente caráter social, por si só, não garante a efetividade do direito de recusa.  Sendo assim, para o exercício deste direito é de fundamental importância que o trabalhador tenha um nível de instrução suficiente para capacitá-lo a reconhecer os riscos aos quais ele está exposto.

Para perfeita compreensão desta ideia, faz-se necessário o retorno à dicção da norma-princípio plasmada no art. 13 da Convenção. 155 da OIT:

De conformidade com a prática e as condições nacionais, deverá ser protegido, de consequências injustificadas, todo trabalhador que julgar necessário interromper uma situação de trabalho por considerar, por motivos razoáveis, que ela envolve um perigo iminente e grave para sua vida ou sua saúde[46]. (Grifo nosso).

A dicção da norma utiliza a expressão: julgar necessário.  O Dicionário Escolar da Língua Portuguesa atribui ao verbo julgar os seguintes significados: decidir como juiz ou como árbitro, arbitrar, apreciar, conjecturar, supor, imaginar, avaliar, formar juízo crítico, sentenciar, decidir, pronunciar sentença, reputar, considerar, ter em conta de[47]. Segundo Norberto Bobbio, o juízo de fato é uma ponderação sobre algo real. Ele representa uma tomada de conhecimento da realidade. Sua formulação tem como finalidade apenas informar, pois se trata de uma constatação objetiva.[48]

Como visto, antes de o trabalhador interromper uma situação de trabalho, ele tem que julgar que isso é necessário. Para fazer este julgamento, esta avaliação, ele precisa de um conjunto de conhecimentos mínimos sobre sua atividade e sobre o sistema com o qual está interagindo em seu trabalho, sob pena de não ser capaz sequer de reconhecer um risco, ainda que este seja considerável.

O risco no trabalho está diretamente associado ao ambiente e ao tipo de atividade exercida. Observa-se, por conseguinte, que existe um processo de seletividade do risco, determinado prioritariamente por aqueles que possuem os meios de produção, levando-se em conta os componentes ambientais, como temperaturas elevadas, agentes físico-químicos, máquinas, a performance do trabalho e as próprias relações humanas estabelecidas no local de trabalho.

Cabe entender que os riscos no trabalho são associados, frequentemente, à tomada de medidas de segurança. Em certo modo, a determinação de patamares mínimos de exposição, como standards, níveis de tolerância, limites legais, a agentes agressivos tem como base o estabelecimento de mensuração do risco a que deve ser submetido o trabalhador e o próprio ambiente de trabalho.

Além do mais, adverte-se que somente a percepção global do meio ambiente do trabalho e a análise de todos os seus elementos oferecem a possibilidade de prevenção do infortúnio, sua eliminação ou pelo menos redução do risco do trabalho.

Portanto, a identificação do ambiente de trabalho constitui conditio sine qua non para mapeamento dos riscos relacionados com uma atividade específica, sem o que, o trabalhador sequer terá condição de avaliar se deve interromper ou não uma atividade a qual ele desconhece os riscos a ela inerentes.

O art. 2º da CLT deixa claro que cabe ao empregador assumir os riscos gerados pela sua atividade empresarial, neles incluídos os riscos ocupacionais.

Não se admite mais hoje a prevalência da mentalidade reinante nos tempos da Revolução Industrial em que cabia ao próprio trabalhador zelar pela sua defesa diante do ambiente de trabalho, contando com a sorte e com o instinto de sobrevivência, porque as engrenagens aceleradas e expostas das engenhocas de então estavam acima da saúde e da vida do operário. Segundo as concepções da época (o laissez-faire), os acidentes, as lesões e as enfermidades eram subprodutos inevitáveis da atividade empresarial e a prevenção era incumbência do próprio trabalhador.[49]

Nos tempos hodiernos ganha destaque o pensamento de que a melhor forma para garantir a efetividade das normas de proteção à saúde é a participação do trabalhador no processo produtivo com o seu efetivo conhecimento. Com isso, o trabalhador passou a ter direito à informação sobre os riscos aos quais está exposto, às formas de prevenção e à formação adequada para o desempenho de suas tarefas.

Essas medidas constituem um dos fundamentos normativos do direito à tutela da saúde e segurança do trabalhador, e estão relacionadas especificamente ao princípio da instrução do trabalhador[50], que foi extraído das principais convenções da OIT que tratam da saúde do trabalhador. Prevê a Convenção n. 148 da OIT, ratificada pelo Brasil, que “[...] os trabalhadores ou seus representantes terão direito a apresentar propostas, receber informações e orientação e a recorrer a instâncias apropriadas, a fim de assegurar a proteção contra riscos profissionais devidos à contaminação do ar, ao ruído e ás vibrações no local de trabalho.” [51]Para enfatizar o direito, repete no art. 13 que “[...] todas as pessoas interessadas deverão ser apropriadas e suficientemente informadas sobre os riscos profissionais que possam originar-se no local de trabalho devido à contaminação do ar, ao ruído e às vibrações e receber instruções suficientes e apropriadas quanto aos meios disponíveis para prevenir e limitar tais riscos, e proteger-se dos mesmos.”[52]

A Convenção n.155, art. 5º, alínea “c”, ratificada pelo Brasil, além de repetir o direito à informação, estabelece que “[...] os trabalhadores e seus representantes na empresa devem receber treinamento apropriado no âmbito da segurança e da higiene do trabalho”. De forma semelhante, prescreve a convenção n. 161, também ratificada pelo Brasil, que “todos os trabalhadores devem ser informados dos riscos para a saúde inerentes a seu trabalho.” [53]

Na realidade, o empregado que está alheio aos perigos do sistema produtivo com o qual interage, por falta de instrução, encontra-se diante de um grande fator de risco, que pode provocar acidente. É o caso, a título de exemplo, de servente de obra que trabalha de chinelo e opera betoneira sem aterramento elétrico, durante a chuva, sofrendo descarga elétrica e vindo a óbito. Neste caso, a ausência de instrução corroborou decisivamente para o trabalhador não exercer o seu direito de recusa.

Depreende-se, do exposto, que da efetiva aplicação do princípio da instrução do trabalhador decorre a efetividade do princípio do direito de recusa do obreiro. O princípio da instrução, assim sendo, como norma supralegal deve impelir o empregador a responsabilizar-se em informar os trabalhadores, de maneira compreensível, dos perigos relacionados com o seu trabalho e de disponibilizar-lhes programas apropriados de formação, assim como em relação às tarefas que lhe são atribuídas, e, ainda, de instruções compreensíveis em matéria de segurança e saúde, deixando, inclusive, claro para o trabalhador que ele deve exercer o seu direito de recusa no momento oportuno.


 

6 CONCLUSÃO

De tudo que foi exposto, chega-se às seguintes conclusões:

a)  O fundamento do poder do empregador está no contrato de trabalho e este poder tem natureza de direito-função, que, tal qual na esfera pública, deve ser exercido no âmbito particular da empresa, tendo em vista não o exclusivo interesse do capitalista, mas o da coletividade dos trabalhadores contratados;

b)  o art. 2.035, parágrafo único, do Código Civil de 2002, prevê que: “Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos”. Assim sendo, o princípio do direito de recusa do obreiro tem respaldo no princípio da função social do contrato, uma vez que na questão relativa à saúde e segurança do trabalhador, todas as normas são cogentes e de ordem pública;

c)   a efetividade do princípio do direito de recusa do obreiro decorre da efetiva aplicação do princípio da instrução do trabalhador. Na prática, o trabalhador só terá condições de interromper suas atividades quando se deparar com situação de risco grave e iminente para sua vida ou saúde se for devidamente instruído a fazê-lo, estando capacitado a avaliar as situações de consideráveis riscos ocupacionais .


 

REFERÊNCIAS

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[2] BARRETO, Amaro. Tutela geral do trabalho. Rio de janeiro: Edições Trabalhistas, 1964. v. I, p. 19. 

[3] AMORIM JUNIOR, Cléber Nilson Ferreira. Princípios específicos do direito tutelar da saúde e segurança do trabalhador. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 3095, 22 dez. 2011. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/20695>. Acesso em: 25 jun. 2012.

[4]  AMORIM JUNIOR, Cléber Nilson Ferreira. Princípio da indisponibilidade da saúde do trabalhador. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3289, 3 jul. 2012. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/22146>. Acesso em: 25 set. 2012.

[5]  BAYLOS, Antonio. Derecho del Trabajo: modelo para armar. Madrid: Trotta, 1991. p.19-21.

[6]  LOCKE, Jonh. Segundo tratado sobre el gobierno civl: um ensayo acerca del verdadero origen, alcance e fin del govierno civil. Madrid: Alianza, 1990, p. 55.

[7]  Ibid., p. 56-57.

[8]  ARENDI, H. The humam condition. Chicago: University of Chicago Press, 1958.  p. 12.

[9]  BERDEIO, J. L. Lacruz. Manual de Derecho Civil. 2. ed. Barcelona: Bosch, 1984, p. 604.

[10]  RABAGLIETTI, M. F. La subordinazione nel rapporto di lavoro: fondamento e principiiMilano: Giuffré, 1959. p. 9. , v. I.

[11]  ALBALADEJO,  M. Derecho Civil. 10. ed., Barcelona: Bosch, 1997. Tomo II, p.16- 17.

[12]  WEBER, M. Economia y sociedade. 2. ed. México: FCE, 1964. p.534.

[13]  LÓPEZ, M. F. Fernández.  El poder disciplinario em La empresa. Madrid: Civitas, 1991. p. 25.

[14]  GLEZZI, G.; ROMAGNOLI, U. II rapporto di lavoro. Bologna:  Zanichelli, 1995. p. 228.

[15]  SANSEVERINO, R. II lavoro nell’imprensa. Torino: Torinese, 1960. p.137.

[16]  WEBER, p.173-180.

[17]  Ibid., p.43.

[18]  MARK, Karl. O capital: livro I. São Paulo: Ciências Humanas, 1978. Cap. VI, p. 63.

[19]  MELHADO, Reginaldo. Poder e sujeição: os fundamentos da relação de poder entre capital e trabalho e o conceito de subordinação. São Paulo: LTr, 2003. p. 210.

[20]  DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. 4. ed. São Paulo:LTr,  2005. p. 631.

[21]  MAGANO, Octavio Bueno. Do poder diretivo na empresa. São Paulo: Saraiva, 1982, p.114.

[22]  LARENZ, Karl apud GIL Y GIL, José Luis. Autotutela privada y poder disciplinario em La empresa. Madrid: Din Impresores, 1994. p. 35.

[23]  NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Iniciação ao direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2003. p. 213.

[24] DABIN, Jean. El dercho subjetivo. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1995. p. 276- 294.

[25]  MAGANO, p. 28.

[26]  Ibid.

[27]  DELGADO, p. 654.

[28]  MARTIN MARCHESINI, Gualteiro. El poder de dirección. Revista de Direito do Trabalho, ano 12, n. 65, jan/fev. 1987, p. 18.

[29]  DELGADO, p. 647.

[30]  CHAGAS, Gustavo Luis Teixeira. Legislação de direito internacional do

     trabalho e da proteção internacional dos direitos humanos. 2. ed. Salvador:

    JusPodivm, 2010. p. 222.

[31]  GUIMARÃES, João Roberto Penna de Freitas. Riscos para os trabalhadores de pavimentação de ruas. Disponível em: < http://bvsms.saude.gov.br/bvs/trabalhador/pdf/texto_pavimentacao_ruas.pdf>. Acesso em: 20 jun. 2012.

[32]  LUHMANN,Niklas. Risk: a sociological theory. Traduzido por Rhodes Barret. New Youk: Aldine de Gruyter, 1993. p.1-31.

[33]  GOMES, Orlando; GOTTSCHALK, Elson. Curso de Direito do Trabalho. Rio de Janeiro: Forence. 1971.

[34]  AMORIM JUNIOR, Cléber Nilson Ferreira. Princípio do risco mínimo  regressivo. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3327, 10 ago. 2012 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/22387>. Acesso em: 28 set. 2012.

[35]  OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Proteção jurídica à saúde do trabalhador. 5. ed. rev. e ampl. e atua. São Paulo: LTr, 2010. p.48-49.

[36]  Ibid., p.112.

[37]  BRASIL. Decreto 7.602 de 7 de novembro de 2011. Dispõe sobre a Política Nacional de Segurança e Saúde no Trabalho – PNSST. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 08 nov. 2011. Seção 1. Disponível em: <http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/decreto7602_2011_st.pdf>. Acesso em: 10 set. 2012.

[38]  LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 16. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Método, 2012. p. 970.

[39]  AMORIM JUNIOR, Cléber Nilson Ferreira. Princípio da indisponibilidade da saúde do trabalhador. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3289, 3 jul. 2012 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/22146>. Acesso em: 28 set. 2012.

[40]  BRASIL. Novo Código Civil comentado. Coordenação de Ricardo Fiúza. 3. ed. atual. São Paulo. Saraiva, 2004. p. 23.

[41]  BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. 3. ed. Rio de janeiro: Forense Universitária, 1999, p. 67.

[42]  GODOY, Cláudio Bueno de. Função social do contrato: de acordo com o novo Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2004. (Coleção Professor Agostinho Alvim).

[43]  TARTUCE, Flávio. Função social dos contratos: do Código de Defesa do Consumidor ao Código Civil de 2002. São Paulo: Método, 2007. p. 244. (Coleção Professor Rubens Limongi França, v. 2).

[44]  DELGADO, Mauricio Goldinho. Curso de direito do trabalho. 4. ed. São Paulo: LTr, 2005.p. 1003.

[45]  CASSAR, Vólia Bomfim. Direito do trabalho. 5. ed. Niterói: Impetus, 2011. p.207.

[46]  CHAGAS, Gustavo Luis Teixeira. Legislação de direito internacional do

     trabalho e da proteção internacional dos direitos humanos. 2. ed. Salvador:

     JusPodivm, 2010. p. 222.

[47]  BUENO, Francisco da Silveira. Dicionário escolar da língua portuguesa. 11. ed. Rio de Janeiro: FENAME, 1981. p. 630.

[48]  BOBBIO, Norberto. Juízo de fato e juízo de valor. Disponivel em: < http://pt.shvoong.com/law-and-politics/law/1835106-ju%C3%ADzo-fato-ju%C3.... Acesso em: 10 set. 2012.

[49]  EL TRABAJO en el mundo. Ginebra: Oficina Internacional del Trabajo, 1985. v. 2. p.160.

[50]  AMORIM JUNIOR, Cléber Nilson Ferreira. Princípios específicos do direito tutelar da saúde e segurança do trabalhador. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 3095, 22 dez. 2011. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/20695>. Acesso em: 25 jun. 2012.

[51]  CHAGAS, 2010. p. 206.

[52]  Ibid., p. 207-208.

[53]  Ibid., p. 220, 230.




Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/22855/principio-do-direito-de-recusa-do-obreiro/3