PRISÃO EM FLAGRANTE EM CRIME HABITUAL: ADMISSIBILIDADE OU INADMISSIBILIDADE?


PorJeison- Postado em 21 setembro 2012

Autores: 
LOCATELLI, Alexandre.

 

O objetivo fulcral da presente dissertação é analisar a controvérsia doutrinária e jurisprudencial que cerca a admissibilidade ou não da prisão em flagrante em crime habitual.

1. INTRODUÇÃO

  

O art. 5º da Constituição Federal de 1988 enumera os direitos e garantias fundamentais que tocam os cidadãos brasileiros e os estrangeiros aqui residentes. Um desses direitos basilares é a liberdade, sendo tão crucial quanto o direito à vida.

Dessa maneira, não é lícito ao Estado, de forma arbitrária, restringir a liberdade da pessoa, por qualquer motivo que seja. Contudo, esse princípio tem sua exceção, qual seja, a prisão, na qual o Estado priva a liberdade do cidadão por culpa de uma conduta tida como ilícita pela lei.

No Brasil são elencadas duas espécies de prisão em matéria penal, a prisão processual e a prisão pena. Aquela abrange as prisões em flagrante, a preventiva e a temporária, sendo assim privações à liberdade individual antes de uma sentença transitada em

julgada, têm por fim prevenir injustiças e manter a segurança jurídica. Já a prisão pena é aquela imposta ao réu que teve sua condenação passada em julgado e terá de cumpri-la como penalidade pelo ilícito cometido.

Para o estudo do artigo que será elaborado o enfoque principal será na prisão em flagrante. Tal espécie de prisão é legalizada e pode ser executada nos presentes casos: a) quando o agente está cometendo ou acaba de cometer o fato delitivo, chamada de prisão em flagrante própria (art. 302, I e II do CPP); b) quando o autor do crime é perseguido, logo após pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser ele o autor do crime, enumerada como prisão em flagrante imprópria (art. 302, III do CPP); e c) quando o autor é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração, conhecida como flagrante presumido (art. 302, IV do CPP).

A doutrina pátria elabora estudo da prisão em flagrante em várias espécies de crime, levando em conta as características peculiares de cada um deles e, principalmente, o momento consumativo da conduta ilícita. Um ponto controverso e polêmico, que toca tanto os estudiosos quanto os aplicadores do direito, é a possibilidade da prisão em flagrante em uma espécie de crime, o crime habitual.

Essa modalidade de crime ocorre quando o autor tem naquele fato ilícito seu meio de vida, é a habitualidade de praticar a conduta criminalizada. Nesse ponto mora a controvérsia da possibilidade ou não da aplicação da prisão em flagrante nessa espécie criminosa.

O presente artigo tem por objetivo analisar a controvérsia doutrinária e jurisprudencial que cerca a admissibilidade ou não da prisão em flagrante em crime habitual, tendendo para a sua possibilidade, haja vista haver sustentáculos legais e constitucionais para tanto. Além disso, ainda será abordado na pesquisa a conceituação de prisão e crime, as modalidades de prisão, a prisão em flagrante, bem como, delimitar crime habitual fazendo sua diferenciação com crime permanente.

 

Este artigo está dividido em tópicos que conterão o histórico de prisão em geral, o histórico de prisão em flagrante e seu marco no Brasil, a abordagem de prisão com sua conceituação e considerações preliminares, as espécies de prisão encontradas no ordenamento jurídico pátrio, a prisão em flagrante e suas espécies, a prisão em flagrante em vários tipos de crimes, a teoria do crime, uma leve abordagem sobre a classificação dos crimes, crime habitual e sua diferenciação com outros delitos, e por fim a discussão acerca da possibilidade da prisão em flagrante em crime habitual.

 

 

 

2. HISTÓRICO DE PRISÃO

  

No curso da história não é possível encontrar qual foi o momento, a época exata em que as penas começaram a serem utilizadas como punições às transgressões cometidas pelos homens que viviam em sociedade. Por outro lado, é plenamente aceitável mencionar que o surgimento do direito e da sociedade se confundem, assim, consequentemente, o nascimento das penas se dá nesse mesmo contexto, já que desde os primórdios da organização social os grupos tinham regras próprias, sendo cominadas penas para aqueles que não seguiam os ditames da comunidade em que viviam. Assim,

 

De fato, o ponto de partida da história da pena coincide com o ponto de partida da história da humanidade. Em todos os tempos, em todas as raças, vislumbra-se a pena como uma ingerência na esfera do poder e da vontade do indivíduo que ofendeu e porque ofendeu as esferas do poder e da vontade de outrem. (MASSON, 2009, p. 43)

 

Nos primórdios havia uma infinidade de tipos de penas, sendo que estas, geralmente, eram vinculadas ao delito, ou seja, aquele que matou, morre, o que furtou, tem o membro amputado e assim sucessivamente. Zaffaroni e Pierangeli (2004) indicam que na China existiam cinco tipos de penas e as mesmas dependiam diretamente do crime; naquele país o homicida era morto, o larápio e aqueles que cometiam lesões tinham membros amputados, o estuprador era castrado, o fraudador tinha o nariz arrancado e nos demais delitos os criminosos tinham sua testa marcada.

Somente na Idade Média houve o efetivo uso da prisão (entendida aqui como a privação da liberdade por meio do cárcere) como pena principal para o delinqüente. Nesse período da história ainda predominavam as penas de morte e as cruéis, todas embasadas na afronta aos ditames da Igreja, mas, mesmo diante dessa paradigma perverso da aplicação das penas, fora nessa época que se iniciou uma preocupação efetiva em recuperar o criminoso. Tal recuperação era feita através da prisão, na qual o autor do delito ficava no cárcere para purgar seu pecado. Assim,

 

[O Direito Canônico] Contribuiu consideravelmente para o surgimento da prisão moderna, principalmente no tocante à reforma do criminoso. Do vocábulo ‘penitência’ derivam os termos ‘penitenciária’ e ‘penitenciário’. O cárcere, como instrumento espiritual de castigo, foi desenvolvido pelo Direito Canônico, uma vez que, pelo sofrimento e pela solidão, a alma do homem se depura e purga o pecado. (MASSON, 2009, p. 51, grifo do autor).

 

A partir desse passo houve o surgimento do direito penitenciário e a sociedade caminhava para uma humanização maior na aplicação das penalidades aos transgressores da lei. Masson (2009) menciona que a sociedade, com o passar dos tempos, passou a não suportar mais as penas atrozes impostas pelo Estado frente a seus cidadãos, acabando por culminar em uma mudança radical no pensamento de punir, pois penas severas davam ensejo a crimes mais graves e hediondos. Assim, o Poder passou a punir de forma mais eficaz e menos cruel, para uma efetiva prevenção de crimes. Entre essas penalidades destaca-se, primordialmente, a prisão, hoje a forma mais comum de punição observada na maioria dos Estados Modernos.

  

2.1. Históricos de prisão em flagrante geral e no Brasil

  

A sociedade evoluiu e com ela as espécies de penas aplicadas também. A priori, como abordado acima, viam-se as penas de caráter cruéis, utilizando a violência e, dependendo de qual o ilícito praticado, a morte era o castigo ao delinqüente. Posteriormente, os homens passaram a adotar a prisão como medida cautelar para proteção social, pois

 

Já na legislação mosaica se fazia a diferenciação entre a prisão efetuada em flagrante delito e aquela decorrente da condenação. O acusado somente podia ser preso antes de ser apresentado ao Tribunal para sua defesa e julgamento em caso de prisão em flagrante. [...] Entre os romanos, a prisão em flagrante foi prevista na Lei das XII Tábuas. Permitia-se o extermínio de ladrões presos em flagrante à noite, a qualquer hora, e durante o dia, se resistissem com armas à prisão. (GONÇALVES, 2004, p. 23-24).

 

Nesse ponto, observa-se o surgimento da prisão em flagrante e sua natureza cautelar, pois ela visava uma resposta rápida a agressão das normas sociais e uma proteção para que o agressor não escapasse e ficasse impune. Caso isto ocorresse, o Estado falharia em seu mister de punir.

Na França e na Itália no século XVIII o instituto da prisão em flagrante era plenamente utilizado e tinha uma aplicabilidade muito grande. Os casos de flagrante eram amplos, sendo considerado em flagrante delito aquele que cometeu o crime e através do clamor público era perseguido e preso, independente de declarações de testemunhas. Em 1794, na França, fora elaborado o Código de Brumário que inovou ao incrementar uma espécie nova de flagrante, o que hoje é conhecido como flagrante presumido, assim

 

O mesmo Código de Brumário estabeleceu ainda que a lei assimila ao caso de flagrante delito a hipótese em que o delinqüente, surpreendido durante a prática do crime, é perseguido pelo clamor público, e aquele em que um homem é encontrado com objetos, armas, instrumentos ou papéis que sirvam para fazer presumir que ele é o autor de um delito. (GONÇALVES, 2004, p. 28).

 

No Brasil se vislumbra a prisão em flagrante desde a Constituição do Império de 1824, que regrava esse tipo de prisão em seu art. 179, inciso X, in verbis: “A' excepção de flagrante delicto, a prisão não póde ser executada, senão por ordem escripta da Autoridade legitima. [...]”.

Tem-se, pois, que desde os primórdios do Império Brasileiro se observa a utilização efetiva da prisão em flagrante e a sua diferenciação frente aos demais tipos de prisão, havendo ainda uma preocupação com a legalidade do ato da segregação.

Somente em 1832, com o advento do Código de Processo Criminal, houve uma abordagem mais ampla à prisão em flagrante, indicando as espécies de prisão em flagrante que eram patentes no direito pátrio. O art. 131 daquele código assim descrevia:

 

Art. 131. Qualquer pessoa do povo póde, e os Officiaes de Justiça são obrigados a prender, e levar á presença do Juiz de Paz do Districto, a qualquer que fôr encontrado commettendo algum delicto, ou emquanto foge perseguido pelo clamor publico. Os que assim forem presos entender-se-hão presos em flagrante delicto.

 

Desse dispositivo já se enumera duas espécies de flagrante que até hoje são deflagrados, os flagrantes próprio e impróprio, é óbvio que a construção legislativa é bem diferente e a diferenciação entre as espécies ainda é um quanto acanhada, mas já se podia distinguir tais modalidades.

Observa-se que não havia a figura do flagrante presumido, pois “O legislador do Império [...] não seguiu os ensinamentos das legislações francesa e italiana, que presumiam, também, como em flagrante, aquele que fosse encontrado com armas, instrumentos ou papéis que fizessem presumir ser ele o autor da infração.” (GONÇALVES, 2004, p. 31).

Com a vinda da República sua Constituição de 1891 em pouco alterou os dizeres da antiga Carta Maior do Império, sendo mantidos os dispositivos do Código de Processo Criminal. Igualmente, as Constituições de 1934 e 1937 continuaram seguindo a mesma linha de pensamento para se referir ao flagrante. Até que em 1941 fora editado o atual Código de Processo Penal que trouxe as atuais modalidades de flagrante delito e será a partir dele o estudo no artigo em testilha.

  

3. PRISÃO

  

A Constituição Federal de 1988 trata a liberdade como um direito fundamental do cidadão, enumerando-a em seu art. 5º, XV, in verbis: “é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens”. Contudo, deve ser mensurado que os direitos fundamentais não são absolutos, assim, a liberdade sofre exceções enumeradas no ordenamento pátrio, a principal delas é a prisão.

O Código de Processo Penal separou um título exclusivo (título IX) para tratar da prisão. Nele é possível separar duas espécies de prisão, a prisão processual, de cunho cautelar, e a prisão pena, que é aquela que tem o condão de punir o delinqüente condenado pelo Poder Judiciário. Para fins desse trabalho deve ganhar mais ênfase a prisão cautelar, já que é gênero da espécie prisão em flagrante, prisma dessa pesquisa.

A prisão pode ser conceituada como “a privação da liberdade de locomoção determinada por ordem escrita da autoridade competente ou em caso de flagrante delito” (CAPEZ, 2010, p. 294). Dessa forma, a prisão é o direito atribuído ao Estado em suprir a liberdade de um cidadão em razão de um crime que acaba de cometer (flagrante) ou em razão de uma ordem judicial.

  

3.1. Espécies de prisão

  

Como descrito alhures, existe, em aspectos penais, duas espécies de prisão, quais sejam, a prisão pena e a prisão processual.

A prisão pena consiste naquela em que o cidadão passa por um processo judicial e, após a sentença condenatória transitada em julgado, é segregado, para que então cumpra uma penalidade em razão de um ilícito cometido. No mesmo sentido enuncia Távora e Alencar (2010):

 

[A prisão] Pode advir de decisão condenatória transitada em julgado, que é a chamada prisão pena, regulada pelo Código Penal, com o respectivo sistema de cumprimento, que é verdadeira prisão satisfativa, em resposta estatal ao delito ocorrido, tendo por título a decisão judicial definitiva. (TÁVORA e ALENCAR, 2010, p. 499, grifo do autor).

 

A prisão processual, por sua vez, tem o intuito de cautelaridade, haja vista que, em determinados casos, há a necessidade do Estado suprimir a liberdade de locomoção de determinada pessoa antes que tenha havido uma condenação judicial sobre ela, como meio de garantir a ordem social e o cumprimento da lei penal.

Dentro da espécie prisão processual são encontradas ainda subespécies da mesma, são elas: prisão em flagrante, prisão preventiva, prisão decorrente de pronúncia, prisão por sentença condenatória recorrível e prisão temporária.

A prisão em flagrante será fruto de um estudo mais elaborado posteriormente, assim devem ser enunciadas as demais.

A prisão preventiva, situada no Capítulo III do Livro IX do CPP, é assim conceituada por Capez (2010):

 

Prisão cautelar de natureza processual decretada pelo juiz durante inquérito policial ou processo criminal, antes do trânsito em julgado, sempre que estiverem preenchidos os requisitos legais e ocorrerem os motivos autorizadores. (CAPEZ, 2010, p. 321).

 

Nota-se que a prisão preventiva é dotada de requisitos e motivos específicos para a sua decretação, devendo ser seguidos a risca pelo magistrado para a decretação da mesma. O art. 312 do CPP indica quais as peculiaridades dessa espécie de prisão:

 

Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria.

Ainda menciona o mesmo texto legal, no parágrafo único do art. 312, com a alteração oriunda da lei 12.403/2011:

 

Parágrafo único. A prisão preventiva também poderá ser decretada em caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas por força de outras medidas cautelares (art. 282, § 4o).

 

Nesse contexto, caso seja aplicada ao acusado, no caso concreto, alguma medida cautelar elencada no art. 319 do CPP, e no curso do processo aquele descumpri tais obrigações legais, poderá ser decretada a prisão preventiva, de forma repressiva a tal desobediência.

Vê-se então que a prisão preventiva deve ser decretada somente nos casos enunciados no artigo infra-mencionado, do contrário a prisão poderá ser revogada a qualquer momento por força de um pedido de liberdade provisória ou de ofício pelo juiz (art. 316 do CPP), caso não exista mais a necessidade da manutenção da restrição da liberdade.

A prisão decorrente de pronúncia ocorre no rito do tribunal do Júri. O procedimento do Júri é dividido em duas fases, a primeira, conhecida como sumário da culpa (do art. 406 ao art. 421 do CPP), e a segunda, nominada por juízo de mérito, onde a decisão é tomada pelo júri (do art. 422 ao art. 497 do CPP).

O fim da primeira fase ocorre com a decisão do juízo singular competente pelo Tribunal do Júri. Em tal ato jurisdicional o processo pode tomar três rumos distintos: 1) a absolvição sumária, através de sentença resolutiva de mérito realizada pelo juiz singular (art. 415 do CPP); 2) a pronúncia do acusado, que é a passagem do processo para a segunda fase, ou seja, a decisão do juízo é no sentido de levar o processo para a decisão do Júri Popular (art. 413 do CPP) ou 3) a impronúncia, decisão em que o réu não vai a júri popular, ficando o processo suspenso, aguardando a extinção da punibilidade, podendo ocorrer uma nova denúncia, caso apareça novas provas para justificá-la, inteligência do art. 414, caput e parágrafo único.

Assim, tomada a decisão do magistrado no sentido de pronunciar o denunciado, deve o juiz indicar se este será ou não preso cautelarmente, aí mora essa subespécie de prisão processual (§ 3º do art. 413 do CPP).

A respeito da prisão por sentença condenatória recorrível, o parágrafo único do art. 387 do CPP ensina: “O juiz decidirá, fundamentadamente, sobre a manutenção ou, se for o caso, imposição de prisão preventiva ou de outra medida cautelar, sem prejuízo do conhecimento da apelação que vier a ser interposta”. Dessa forma, ao prolatar a sentença condenando o réu, o juiz de primeiro grau deverá mencionar sobre a imposição ou não da prisão ao condenado, nascendo essa espécie de prisão cautelar.

Por fim, a prisão temporária, disciplinada pela lei ordinária nº 7.960/89. Segundo Távora e Alencar (2010) a prisão temporária tem cunho cautelar e prazo já estabelecido na lei que a disciplina (cinco dias prorrogável por outros cinco e trinta dias em casos de crimes hediondos), tem cabimento somente na fase inquisitorial e sobre as infrações descritas no art. 1º da lei que a institui.

  

3.2. Prisão em flagrante

  

A prisão em flagrante consiste em ato privativo da liberdade do indivíduo que é flagrado cometendo o crime ou logo após o cometimento do fato, sendo que, em razão de sua natureza cautelar, provisória e processual, independe de ordem judicial para a sua efetivação; tem por escopo prevenir a execução de outros crimes ou mesmo proteger as investigações, vítimas e testemunhas do delito. No mesmo sentido ensina Capez (2010):

 

É [...] medida restritiva da liberdade, de natureza cautelar e processual, consistente na prisão, independente de ordem escrita do juiz competente, de quem é surpreendido cometendo, ou logo após ter cometido, um crime ou uma contravenção. (CAPEZ, 2010, p. 307).

 

Como se vê, o flagrante abarca tanto crime como contravenção penal, é o que fica claro ao observar o disposto no art. 302, inciso I do CPP. Dessa forma, encontra-se em flagrante tanto aquele que está cometendo uma infração penal, entendida como gênero.

A lei processual penal em seu art. 302 traz as primeiras espécies de prisão em flagrante do ordenamento jurídico brasileiro. Para melhor ilustração do tema em testilha, cópia integral do texto do Código de Processo Penal:

 

Art. 302. Considera-se em flagrante delito quem:

I - está cometendo a infração penal;

II - acaba de cometê-la;

III - é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração;

IV - é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração.

 

A primeira espécie de flagrante retirado desse ordenamento legal é o flagrante próprio, correspondido pelos dois primeiros incisos do art. 302. Nesse caso o autor do delito é surpreendido na prática do crime ou quando acaba de cometê-lo. Assim percebe-se aqui a existência de duas situações distintas, a primeira o agente está cometendo o fato, exemplo, marido é surpreendido esfaqueando sua mulher; a segunda o autor do crime acaba de cometer a infração e é flagrado na cena do crime; usando o exemplo acima, o marido é encontrado ensangüentado, com a faca na mão e sua esposa caída ao chão. No mesmo sentido:

 

Temos duas situações contempladas nesta modalidade: a) daquele que é preso quando da realização do crime, leia-se, ainda na execução da conduta delituosa; b) de quem é preso quando acaba de cometer a infração, ou seja, sequer se desvencilhou do local do delito ou dos elementos que o vinculem ao fato quando vem a ser preso. A prisão deve ocorrer de imediato, sem o decurso de qualquer intervalo de tempo. (TÁVORA e ALENCAR, 2010, p. 513).

 

Essa modalidade possibilita que a prisão do autor seja realizada de imediato, como se observa, sem qualquer necessidade de ordem judicial ou que corra algum prazo para sua efetivação.

Seguindo ainda o que dispõe o CPP (art. 302, III), tem-se a segunda espécie de prisão em flagrante, o flagrante impróprio, que “ocorre quando o agente é perseguido, logo após cometer o ilícito, em situação que faça presumir ser o autor da infração” (CAPEZ, 2010, p. 308). Nessa espécie de flagrante o autor comete o delito e foge de sua cena, mas nada obsta que os agentes policiais cheguem ao local, averigúem a situação, colham informações com testemunhas e vão à busca do criminoso, de forma que, independente do tempo que leve para a localização do autor, ao ser encontrado será preso em flagrante delito. Dessa maneira:

 

A perseguição não precisa ter-se iniciado de imediato, uma vez que a expressão “logo após” abrange o tempo necessário para que a polícia seja chamada, compareça no local, tome informações acerca das características físicas dos autores do crime e da direção por eles tomada, e saia ao encalço destes. Assim, sendo a perseguição iniciada logo após a prática do crime, não existe prazo para sua efetivação, desde que a perseguição seja ininterrupta. Ao contrário do que se possa imaginar, não existe prazo de vinte e quatro horas para a efetivação da prisão em flagrante. (REIS e GONÇALVES, 2009, p. 192).

 

Popularmente espalhou-se que a efetuação da prisão deveria ser realizada em vinte e quatro horas, o que não ocorre, já que não há qualquer menção de prazo no CPP para a efetivação da detenção do autor. Dessa forma, se, por exemplo, João furtou uma residência fugindo em seguida, a polícia, tendo informações para qual local o mesmo se evadiu, pode persegui-lo tanto tempo for necessário para sua prisão, podendo ser um dia, uma semana, um mês, o lapso entre a data do fato e a prisão é indiferente.

Por fim, esse artigo (302 do CPP) trata do flagrante presumido, elencado no inciso IV. É chamado de presumido, pois o autor do delito é encontrado, logo após a prática da infração, com instrumentos, armas, objetos e papeis que o liga a autoria do fato de forma presumida. Para elucidar melhor assim pode ser exemplificado, um larápio é flagrado com a res furtiva em seu poder próximo ao local do crime tentando vendê-la a um terceiro. É esse liame que garante ao Estado o poder/dever de proceder a prisão em flagrante do autor. Nesse sentido Távora e Alencar (2010) mencionam que:

 

Basta que a pessoa, em situação suspeita, seja encontrada logo depois da prática do ilícito, sendo que, o móvel que a vincula ao fato é a posse de objetos que façam crer ser a autora do crime. O lapso temporal consegue ainda ter maior elasticidade, pois a prisão decorre do encontro do agente com os objetos que façam a conexão com a prática do cume. (TÁVORA e ALENCAR, 2010, p. 514, grifo do autor).

 

Para a efetivação dessa modalidade de flagrante não há a necessidade da perseguição em si do suspeito e sim o encontro do mesmo com algo que o conecte ao fato. Como visto alhures, o lapso temporal pode se estender ainda mais, podendo ser preso em flagrante o agente que é encontrado depois de uma semana do dia do delito com o veículo que roubou.

A doutrina ainda enumera outras espécies de flagrante, como o flagrante obrigatório e o facultativo. Segundo Capez (2010) o flagrante obrigatório é aquele em que o agente tem a obrigação de proceder na prisão do indivíduo que se encontra em situação de flagrância. Tal obrigação recai sobre a autoridade policial e seus agentes, que devem proceder com a prisão de forma obrigatória (art. 301, segunda parte, do CPP). Já o facultativo, como o nome menciona, faculta à pessoa a possibilidade da efetuação da prisão em flagrante, não a vinculando com a ação de prender (art. 301, primeira parte, do CPP), esta faculdade recai à população comum.

Outra espécie de flagrante é o preparado, também chamado de forjado ou esperado. Ele consiste, na lição de Feitoza (2008), no flagrante em que a autoridade policial ou seus agentes, de alguma forma, instigam, induzem ou até participam do crime para efetuar a prisão em flagrante do delinqüente, contudo tal provocação faz com que o delito torne-se impossível de ser consumado (art. 17 do Código Penal), pois obstado pela prisão em flagrante do criminoso, assim não havendo crime, não há que se falar em prisão em flagrante legal.

O Supremo Tribunal Federal editou Súmula nesse sentido, que tem a numeração de 145: “Não há crime, quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível sua consumação.”

É mister mencionar também a espécie de flagrante chamado de flagrante retardado ou prorrogado. Essa espécie foi inserida no ordenamento brasileiro através da lei 9.034/1995, conhecida como a lei contra o crime organizado, mais precisamente em seu art. 2º inciso II, verbis:

 

Art. 2o Em qualquer fase de persecução criminal são permitidos, sem prejuízo dos já previstos em lei, os seguintes procedimentos de investigação e formação de provas:

[...]

II - a ação controlada, que consiste em retardar a interdição policial do que se supõe ação praticada por organizações criminosas ou a ela vinculado, desde que mantida sob observação e acompanhamento para que a medida legal se concretize no momento mais eficaz do ponto de vista da formação de provas e fornecimento de informações;

 

Assim, esse regramento garante à autoridade policial ou aos seus agentes que, quando estiverem diante de uma investigação envolvendo uma organização criminosa, retardem a prisão em flagrante dos investigados, mesmo diante de uma de suas hipóteses, para que seja colhido o maior número de provas e informações que levam o envolvimento de mais pessoas, para que, só após essa reunião de provas concretas, efetue-se a prisão.

Por fim, a doutrina ainda traz uma última espécie de flagrante, qual seja, o flagrante forjado. Acerca do tema Távora e Alencar (2010) dispõem que o flagrante forjado “É aquele armado, fabricado, realizado para incriminar pessoa inocente. É a lidima expressão do arbítrio, onde a situação de flagrância é maquinada para ocasionar a prisão daquele que não tem conhecimento do ardil.” (TÁVORA e ALENCAR, 2010, p. 519).

Nota-se então que essa espécie de flagrante é ilegal, haja vista, que o teórico detido não cometera crime algum, por ter sido vítima de um engodo. Em outros termos, o flagrante forjado é aquele em que terceira pessoa utiliza-se de meios ardilosos para incriminar outra, forjando uma situação que caracterize um crime em flagrante delito. Como exemplo pode-se indicar aquele em que os policiais, ao realizarem uma abordagem em um veículo, acabam por implantar substância entorpecente no mesmo, culminando na prisão em flagrante do condutor por, suposto, tráfico ilícito de drogas, o que, frise-se, não ocorreu na espécie, já que a materialidade do delito fora criada.

  

3.2.1. Flagrante nas várias espécies de crime

 

                 Serão ainda abordadas neste artigo científico algumas espécies de crime, assim as espécies em si não serão disciplinadas neste tópico, mas somente as regras relativas à prisão em flagrante nas mesmas, restando ainda esclarecer que o flagrante em crimes habituais deverá ser abordado em apartado, num estudo mais pormenorizado, já que é o tema central da dissertação.

O art. 303 do Código de Processo Penal possui a seguinte redação: “Nas infrações permanentes, entende-se o agente em flagrante delito enquanto não cessar a permanência.” Analisa-se que nos crimes permanentes o agente estará em situação de flagrância enquanto não cessar a permanência do crime, dessa maneira, autoriza-se ao agente policial a prisão do seqüestrador em flagrante enquanto durar o seqüestro da vítima.

Outra peculiaridade é em relação à prisão em flagrante nos crimes de ação penal privada. Segundo Capez (2010) é plenamente possível a efetivação da prisão, já que a lei não disciplinou nada sobre sua impossibilidade, contudo procedendo a prisão do autor, o ofendido deve autorizar a lavratura do auto de prisão ou retificar o já existente, do contrário haverá o imediato relaxamento da prisão.

No mesmo sentido encontram-se os crimes de ação pública condicionada à representação ou à requisição do Ministro da Justiça, nos quais há o ato da prisão em flagrante, sendo que a lavratura do auto e a detenção do autor do delito ficam a cargo da manifestação do interessado nesse sentido, do contrário a autoridade policial deverá liberar o autor. Távora e Alencar (2010) assim dispõem:

 

[...] se nessas infrações toda a persecução penal está a depender de autorização do interessado, seja a vítima, seu representante legal, ou o próprio Ministro da Justiça, nos crimes de ação pública delas dependente, para que o auto seja lavrado, é condição essencial esta aquiescência. [...] caso a vítima não emita autorização, aí sim está obstacularizada a lavratura do auto, devendo a autoridade policial liberar o ofensor. (TÁVORA e ALENCAR, 2010, p. 521).

 

Nas infrações penais de menor potencial ofensivo, disciplinadas pela lei 9.099/95, ensinam Reis e Gonçalves (2009) que é totalmente possível a prisão em flagrante nos crimes dessa natureza, contudo disciplina a lei que não será lavrado o auto de prisão em flagrante, mas sim um termo circunstanciado de ocorrência, no qual o autor do delito ou será diretamente encaminhado para um Juizado Especial Criminal, o que na prática dificilmente acontece, ou firmará o compromisso de comparecer em juízo quando intimado for para tanto, não sendo detido. Contudo, caso não aceite tais orientações, será levado à prisão. Há, entretanto, uma exceção a esta regra, qual seja, no caso de porte de substância entorpecente para uso próprio (art. 28 da lei nº 11.343/06), onde a lei antidrogas vedou a prisão do agente que negue o comprometimento em comparecer ao juízo (art. 48, § 3º da lei 11.343/06). Tal instituto ganhou a nomenclatura de “liberdade provisória incondicionada” (TÁVORA e ALENCAR, 2010, p. 522).

O flagrante nos crimes tidos como continuados não sofrem qualquer impedimento ou obstáculo, conforme indica Capez (2010) nesses crimes “existem várias ações independentes, sobre as quais incide, isoladamente, a possibilidade de se efetuar a prisão em flagrante” (CAPEZ, 2010, p.312). Assim, em qualquer dos crimes na linha da continuação pode acontecer a prisão em flagrante do delinqüente, já que estará cometendo, teoricamente, o delito a cada ato.

No ordenamento pátrio existe uma exceção à prisão em flagrante, hipótese em que não é admitida a detenção do agente, tal regramento encontra-se no art. 301 do Código de Trânsito Brasileiro (lei nº 9.503/97), verbis: “Ao condutor de veículo, nos casos de acidentes de trânsito de que resulte vítima, não se imporá a prisão em flagrante, nem se exigirá fiança, se prestar pronto e integral socorro àquele”. Dessa forma, a lei de trânsito assegurou ao condutor, que se envolveu em um acidente e que tenha prestado pronto e integral socorro à(s) vítima(s), o direito de não se ver preso em flagrante. Inteligente fora o legislador, já que, incentivou que os envolvidos prestem socorro às vítimas e que não se evadam do local do acidente.

  

4. CRIME

  

Dando continuidade ao tema é de suma importância discorrer acerca do crime, mesmo que de forma mais resumida, pois para que seja tratada a questão dos crimes habituais deve haver um estudo sobre este tema e algumas de suas espécies.

Para ser conceituado o crime, no ordenamento jurídico brasileiro, deve ser levado em conta três critérios distintos para a sua consecução, quais sejam, critérios material, formal e analítico. O primeiro desses critérios, segundo Masson (2009), é aquele em que o homem age ou se omite atingindo ou levando a perigo um bem jurídico tutelado pelo direito penal. Aqui não basta somente a existência do crime na lei, é necessário que a lesão a um bem jurídico afete o senso de justiça da coletividade.

De modo diverso está o segundo critério, qual seja, o formal, que disciplina que o crime consiste na mera conexão entre a conduta de uma pessoa e o que a lei indica como crime, não sendo observado o teor da norma criminalizadora ou a real lesividade daquele ato. Assim Capez (2007) indica que o critério formal de crime “[...] resulta da mera subsunção da conduta ao tipo legal e, portanto, considera-se infração penal tudo aquilo que o legislador descrever como tal, pouco importando seu conteúdo”. (CAPEZ, 2007, p. 113).

Por fim, segundo Mirabete (2006), o critério analítico tem por base que o crime é revestido de dolo ou culpa em sentido estrito, e estes elementos estão inseridos na conduta do agente, no agir do agressor, dessa maneira, conclui-se, segundo esse critério, que o crime é composto de fato típico e antijurídico.

Muito se discute acerca da teoria do crime adotada no direito penal pátrio, para alguns como “Nélson Hungria, Aníbal Bruno, E. Magalhães Noronha, Francisco de Assis Toledo, Cezar Roberto Bitencourt e Luiz Regis Prado” (MASSON, 2009, p. 162) o posicionamento a ser utilizado é o da teoria tripartida, na qual o crime se reveste de fato típico, ilícito e culpável. Em outro estão os defensores da teoria bipartida do crime, resultante da junção entre fato típico e ilícito.

A primeira corrente defende que a culpabilidade está vinculada ao elemento subjetivo da conduta, qual seja, o dolo ou a culpa em sentido estrito, assim, diante de um fato tido como típico e ilícito, observar-se-á a culpabilidade do agente, ou seja, se no caso concreto agiu de forma dolosa ou culposa. Dessa forma a culpabilidade pertence ao crime. Mirabete (2006) diz que

 

[...] a palavra culpabilidade, como se verá, para os primeiros consiste num vínculo subjetivo que liga a ação ao resultado, ou seja, no dolo [...] ou na culpa em sentido estrito [...] por imprudência, negligência ou imperícia. Verificando-se a existência de um fato típico [...] e antijurídico, examinar-se-á o elemento subjetivo [...] e, assim, a culpabilidade. (MIRABETE, 2006, p. 83, grifo do autor).

 

Para a segunda corrente de doutrinadores, a culpabilidade não integra o crime, sendo este composto somente de fato típico e ilícito. A culpabilidade, segundo essa teoria, está ligada a aplicação da pena ao autor do delito, assim, após ser configurado um fato típico e ilícito, ou seja, um crime, será então abordada a culpabilidade do agente, ou melhor, se ele poderá ou não ser punido pelo crime que cometeu. Conclui-se então que “Para os seguidores dessa teoria bipartida, a culpabilidade deve ser excluída da composição do crime, uma vez que se trata de pressuposto de aplicação de pena.” (MASSON, 2009, p. 163, grifo do autor).

Mesmo diante de argumentos louváveis, não deve prosperar a tese defendida pela primeira corrente. Em primeiro plano, no atual Código Penal fica clara a escolha do legislador pela teoria bipartida, já que no art. 23 do documento, ao abordar a respeito das excludentes de ilicitude, utiliza a expressão “Não há crime quando o agente pratica o fato: I – em estado de necessidade; II – em legítima defesa; III – em estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular de direito” (grifo nosso). No mesmo sentido, ao se referir de um dos elementos da culpabilidade, a inimputabilidade, o legislador assim se expressou no art. 26 “É isento de pena de pena [...]” (grifo nosso). Indicando que o inimputável comete o crime, contudo fica isento da pena imposta pelo delito.

Outro argumento tem guarida na lição de Capez (2007) que indica que

 

[...] se a culpabilidade fosse elemento do crime, aquele que, dolosamente, adquirisse um produto de roubo cometido por menor não cometeria receptação, pois se o menor não pratica crime, ante a ausência de culpabilidade, o receptador não teria adquirido um produto desse crime. (CAPEZ, 2007, p. 115)

 

Conclui-se, dessa maneira, que o crime é composto de um fato ilícito e típico, sendo a culpabilidade somente uma fase de averiguação se o autor do delito é ou não culpável pelo fato cometido.

  

4.1. Classificação dos crimes

  

A doutrina classifica os crimes em uma série de espécies, nesse artigo, contudo, serão abordados tão somente os principais.

De início pode-se observar os crimes comuns que, segundo Masson (2009), são aqueles que podem ser cometidos por qualquer pessoa, não prevendo a lei uma pessoa específica para cometê-lo. Em contrapartida estão os crimes próprios que, de acordo com Capez (2007), só são cometidos por pessoas específicas indicadas pelo tipo penal, citando como exemplo o infanticídio, que só pode ser configurado pela mãe, tendo como vítima o recém-nascido.

Mirabete (2006) trata também dos crimes quanto ao resultado, que podem ser materiais, formais e de mera conduta. Segundo esse jurista, no crime material existe a necessidade de que o delito altere o mundo fático, ou seja, que exista um resultado externo, se desvinculando da conduta praticada pelo agente, como exemplo temos o homicídio, o qual o resultado no mundo é a morte de uma pessoa. Já no crime formal, continua ensinando, essa necessidade do resultado não existe, nessa espécie, o crime se consuma com a ação do agente, não tendo a necessidade de ocorrer aquilo que este pretendia, o delito de extorsão mediante seqüestro, tem essa forma, a mera exigência do pagamento do “resgate” da vítima, já configura o crime. Por fim o autor disciplina o crime de mera conduta, o qual está configurado pela simples ação do agente, não exigindo a lei qualquer resultado naturalístico, v. g.,a violação de domicílio (art. 150 do CP).

Outro critério para se classificar os crimes é o do número de agentes envolvidos. Masson (2009) traz os unissubjetivos e os plurissubjetivos. Aqueles, segundo o doutrinador, podem ser praticados por um único agente, ou mais, no caso de co-autoria e participação; enquanto para estes, existe a necessidade de uma pluralidade de autores, como é o caso do crime de quadrilha ou bando (art. 288 do Código Penal).

Por fim, observa-se a classificação de acordo com o momento da consumação do delito. Segundo Capez (2007) tem-se: o crime instantâneo, que se consuma em um momento definido e definitivo, não havendo prolongamento no tempo, exemplificando o homicídio; o crime permanente, o qual o momento da consumação é prolongado e o bem jurídico é agredido a todo o instante, de forma incessante enquanto durar o delito, exemplifica com o seqüestro; e o crime a prazo, que só se consuma após o término de um determinado tempo, como exemplo cita os 30 dias da lesão corporal grave do art. 129, § 1º, I do CP.

Para o estudo do presente artigo é curial mencionar o crime habitual, um dos itens principais do tema proposto. Conceitua-se crime habitual como aquele em que o autor, através da prática de atos reiterados seqüencialmente, demonstra que vive daquela forma, ou seja, reiterando aquele comportamento tido como injusto no meio social, sendo então punido pelo direito penal. Acerca de crime habitual temos que “é aquele cuja consumação se dá através da prática de várias condutas, em sequência, de modo a evidenciar um comportamento, um estilo de vida do agente, que é indesejável pela sociedade, motivo pelo qual foi objeto de previsão legal.” (NUCCI, 2004, p. 551).

É indispensável ainda diferenciar o crime habitual de algumas espécies de delitos. De início, observar-se-á a diferenciação dessa espécie de crime com o crime permanente. Este, como já abordado, refere-se ao delito em que a consumação se prolonga pelo tempo, sendo que, em qualquer instante em que a ação for observada, tem-se a existência do crime, enquanto o delito habitual, como ensina Masson (2009), há uma reiteração de condutas que de forma isolada não constitui um crime e sim fatos atípicos, havendo a necessidade da união de todas essas condutas para se chegar a configuração do delito.

Diferencia-se agora o crime habitual com o crime continuado. Este se vale da reiteração de atos criminosos, que isolados constituem crimes autônomos, contudo, por circunstâncias de tempo, lugar e maneira de execução, devem ser analisados como uma subseqüência de crimes, iguais ou diferentes, que são punidos de forma especial (art. 71 do CP). Já o delito habitual há uma reiteração de atos criminosos, contudo a reiteração desses atos é que faz o crime acontecer, um momento isolado da conduta não configura a infração em questão, de forma que teremos um só crime em toda a ação habitual. Capez (2010) diferencia bem essas duas espécies de crime: “Enquanto o crime habitual cada ato isolado constitui fato atípico, pois a tipicidade depende da reiteração de um número de atos, no crime continuado cada ato isolado, por si só, já constitui crime.” (CAPEZ, 2007, p. 267).

  

5. ADMISSIBILIDADE DA PRISÃO EM FLAGRANTE EM CRIME HABITUAL

  

Entrando finalmente no tema fulcral da presente dissertação, qual seja, a possibilidade da prisão em flagrante em caso de crime habitual, observa-se uma discussão ampla entre a doutrina acerca da admissibilidade ou não da prisão nessa espécie de crime.

A primeira corrente de doutrinadores resguarda a impossibilidade de se prender em flagrante o agente que se encontra praticando um delito habitual, pois, segundo eles, sendo o crime habitual a união de várias condutas isoladas, somente com a junção de todas elas é que o crime estaria configurado, presenciar uma delas é um fato irrelevante, atípico ou mero ato preparatório, sendo assim agiria ilegalmente o Estado se prendesse em flagrante o autor de um delito habitual. Nucci (2004) assim se posiciona:

 

Crimes habituais: não admitem prisão em flagrante. O delito habitual é aquele cuja consumação se dá através da prática de várias condutas, em sequência, de modo a evidenciar um comportamento, um estilo de vida do agente, que é indesejável pela sociedade, motivo pelo qual foi objeto de previsão legal. Uma única ação é irrelevante para o Direito Penal. Somente o conjunto se torna figura típica, o que é fruto da avaliação subjetiva do juiz, dependente de provas colhidas, para haver condenação. (NUCCI, 2004, p. 551).

 

Ainda, nesse mesmo liame de entendimento, não estaria em flagrante o médico que, atuando ilegalmente por não ter registro no órgão competente (art. 282 do CP), fosse surpreendido em um consultório atendendo a um paciente, haja vista, que ali está localizada somente parte da ação criminosa, que isolada não indica qualquer crime, ou seja, trata-se somente de um fato atípico. Defendendo essa posição está Bonfim (2010) para o qual:

 

[...] a determinação da situação de flagrância implicaria identificar, desde logo, a existência da habitualidade, ou seja, a reiteração passada dos fatos que, conjuntamente, constituem a prática criminosa, constatação que não poderia ser feita no momento da prisão [em flagrante]. (BONFIM, 2010, p. 448).

 

Em contrapartida estão os doutrinadores que vêem como totalmente possível a prisão em flagrante nos casos de delitos habituais. Para essa corrente se no momento do flagrante é possível reunir todas as provas para indicar a habitualidade, nada obstaria a sua efetivação, pois todos os elementos para a sua legalidade estariam agrupados. Um de seus defensores é Feitoza (2008), que assim doutrina:

 

De modo geral, entende-se que não cabe prisão em flagrante em crimes habituais. Contudo, teoricamente, é possível, se o agente é surpreendido na prática do ato e se recolhem, no momento, provas cabais da habitualidade. (FEITOZA, 2008, p. 734).

 

Ainda seguindo essa linha deve ser mencionado que tais doutrinadores defendem a possibilidade indicando de forma categórica, que no momento do flagrante deve ser reunido provas cabais de que aquele criminoso está habitualmente cometendo o delito, não bastando um ato para a efetivação da prisão. Essa visão tem Mirabete (2007): “Apesar de tudo, não é incabível a prisão em flagrante nos delitos habituais se for possível, no ato, comprovar-se a habitualidade.” (MIRABETE, 2007, p. 378).

Observando as duas posições, ambas louváveis, chega-se ao entendimento que a segunda orientação é mais prudente no liame da legalidade e possibilidade de configurar o flagrante nos delitos habituais.

O art. 302 do Código de Processo Penal, como já visto em linhas pretéritas, indica que está em flagrante aquele que: “I – está cometendo a infração penal”, nota-se então que o Estado está apto a prender em flagrante aquele que está cometendo o fato delituoso. Para a configuração do crime habitual há a necessidade de reunir todas as provas e fatos que juntos, e somente unidos, possam amoldar o delito em questão, dessa maneira, havendo essa reunião de elementos que indicam a habitualidade e a autoridade ou o agente estatal se deparar com um criminoso nessa situação, nada obsta sua ação no sentido de realizar o flagrante.

Nesse momento então se indaga, como então pode ser reunido os elementos para a prova da habitualidade delituosa? Um exemplo simples é a existência de um inquérito policial instaurado para investigar um falso médico que exerce a profissão de forma irregular, crime tipificado no art. 282 do CP, no qual há inúmeras fotos de pessoas entrando e saindo do “consultório”, vizinhos que testemunham que a movimentação é intensa e que têm conhecimento que ali funciona um “consultório”, assim, ainda dentro do exemplo, os agentes policiais invadem tal local e se deparam com inúmeras pessoas aguardando atendimento, vêem o médico examinando um paciente, bem como observam inúmeras fixas médicas de atendimentos passados e prescrições de medicamentos. Analisando todo o contexto fático, estamos diante de fatores que, inegavelmente, levam a certeza de que o falso médico habitualmente está cometendo aquele delito, nesse caso a prisão em flagrante é totalmente lícita e, por se tratarem de agentes policiais no caso em tela, obrigatória, já que estarão diante de um crime em flagrante. Nesse mesmo sentido está a posição de Gonçalves (2004):

 

[...] se a polícia já tiver uma prova anterior da habitualidade (prévia sindicância, inquérito policial p. ex.), a prisão em flagrante poderá ser efetuada diante da prática de qualquer ato, por exemplo: quando são encontrados vários casais para fins libidinosos em Casa de Prostituição e a Polícia já possuía inquérito policial instaurado, por comunicação de vizinhos, dando conta da existência do referido crime no local. (GONÇALVES, 2004, p. 44)

 

No âmbito da jurisprudência também se pode encontrar orientação nesse sentido, o Egrégio Supremo Tribunal Federal tem o entendimento de que existe a possibilidade de se prender em flagrante o criminoso habitual: “'Habeas-Corpus'; Sua denegação. O crime habitual nada tem de incompatível com a prisão em flagrante” (HC 36723/Habeas Corpus, Tribunal Pleno, Supremo Tribunal Federal, Relator: Min. Nelson Hungria, Julgado em 27/05/1959).

Outros tribunais também adotam esse entendimento, é possível ser citado também entendimento do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul:

 

HABEAS CORPTJS. PREVENTIVA. Para subsistência do flagrante, em crime habitual, exige- se comprovação da habitualidade na lavratura do auto. Delito do art. 229 CP. Palavra da ré-paciente, confirmatória do funcionamento regular da boate, havendo ratificação testemunhal. Instrução regular, em obediência aos prazos legais. Habeas denegado. (Habeas Corpus Nº 70002358299, Oitava Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Tupinambá Pinto de Azevedo, Julgado em 25/04/2001).

 

Nesse diapasão, chega-se a conclusão que nada obsta a possibilidade de ser efetivada a prisão em flagrante do autor que esteja cometendo um delito habitual, desde que, seja possível no momento da prisão reunir todas as provas que indicam a habitualidade do criminoso.

  

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

  

Com o término da presente dissertação se chega à conclusão que, apesar de entendimentos doutrinários no sentido da impossibilidade da prisão em flagrante em crimes habituais, é possível observar a flagrância daquele que comete o delito habitual, visto que é totalmente palpável a junção de provas e fatos que comprovam a habitualidade daquele criminoso. Como abordado alhures, as investigações policiais podem ser um meio para angariar os sustentáculos necessários para fazer da medida de segregação uma ação legal, retirando da sociedade, mesmo que provisoriamente, aquela pessoa que está cometendo tal crime de forma reiterada.

A importância social de tal medida é latente, haja vista que, se estivermos diante de, por exemplo, um médico que exerce ilegalmente a medicina sua conduta fere inúmeros bens jurídicos e é dotada de uma periculosidade alarmante, pois o criminoso está lidando diariamente com a vida e a saúde das pessoas, sendo que um diagnóstico equivocado ou uma prescrição medicamentosa errônea é capaz de levar uma pessoa à morte.

O tema abordado por sua vez tem uma importância muito grande para os operadores do direito, uma vez que é uma matéria circundada de uma dúvida doutrinária que se perfaz por muito tempo, bem como seu envolvimento em áreas do direito como direito penal, direito processual penal e direito constitucional, já que lida com a liberdade do cidadão. Assim sendo, trata-se de um assunto que interessa a muitos estudiosos de diferentes áreas do saber jurídico, fazendo com que o tema ganhe muita importância.

  

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  

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