A proteção penal (in)suficiente da criança e do adolescente no caso de crimes sexuais


Porwilliammoura- Postado em 09 maio 2012

Autores: 
CARMO, Patrick Luiz Galvão do

A proteção penal (in)suficiente da criança e do adolescente no caso de crimes sexuais

Analisa-se como se dá a proteção dos direitos fundamentais infanto-juvenis no caso de crimes sexuais, adotando como referência o princípio da proibição de proteção deficiente.

RESUMO

O paradigma do Estado Democrático de Direito trouxe novas feições para o Estado e para o Direito. A proteção dos direitos fundamentais passou, então, a ser imperativo de tutela estatal, conformando o que a doutrina aponta como a outra face dos direitos fundamentais. Tal proteção deve ser efetivada, inclusive, por meio do Direito Penal. A Constituição Federal de 1988 adotou a Doutrina da Proteção Integral da criança e do adolescente, prescrevendo a punição severa ao abuso, à violência, e à exploração sexual desses sujeitos de direito. O presente trabalho, respaldado em pesquisa bibliográfica, apresenta como se dá a proteção dos direitos fundamentais infanto-juvenis no caso de crimes sexuais, adotando como referência o princípio da proibição de proteção deficiente, decorrente deste novo contexto.

Palavras-Chave: proteção integral; crime sexual; proteção insuficiente.


1 INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988, acompanhando a evolução do Direito Internacional pertinente à proteção da criança e do adolescente, bem como atendendo às reivindicações da sociedade civil quando da Assembléia Nacional Constituinte, acolheu a Doutrina da Proteção Integral, posteriormente regulamentada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, assegurando-lhes, além dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, outros de caráter especial, em atenção à sua peculiar condição de pessoa em desenvolvimento.

A Carta Magna também previu, no Art. 227, parágrafo 4º, a punição severa de toda forma de abuso, violência ou exploração sexual praticados contra a criança e o adolescente, o que demonstra, explicitamente, a opção do constituinte originário de resguardar as crianças e adolescentes desta grave ofensa a sua dignidade.

Contudo, passados mais de duas décadas da promulgação da Carta Magna, ainda são freqüentes os casos de pedofilia, abuso e exploração sexual de crianças e de adolescentes, noticiados cotidianamente pela imprensa, o que tem suscitado alterações legislativas, notadamente na seara penal e processual penal, como forma de combate a esta cruel ofensa aos direitos humanos infanto-juvenis.

O presente trabalho pretende demonstrar como situações como estas não só ofendem os direitos infanto-juvenis, como também representam inconstitucionalidade, a partir do entendimento dos preceitos que conformam o paradigma do Estado Democrático de Direito, no contexto de um novo constitucionalismo de forte caráter dirigente e compromissório.

E é no interior desse contexto que, a partir da aplicação do princípio da proporcionalidade, verificou-se o outro lado dos direitos fundamentais. Ou seja, surge para o Estado o dever de proteção a tais direitos, que pode incorrer em inconstitucionalidade se não garantir sua efetiva proteção, configurando o que a doutrina passou a chamar de Proibição de Proteção Insuficiente ou Deficiente.

O princípio da proibição da proteção insuficiente – ou deficiente –, fruto da evolução do Estado e do próprio direito, harmoniza-se com a ambiência constitucional vigente no Brasil, e vincula o legislador e o aplicador da norma, impondo ao poder estatal o dever de proteção dos direitos fundamentais da pessoa humana. No caso das crianças e dos adolescentes, a Constituição Federal outorgou-lhes especial atenção, ao acolher a Doutrina da Proteção Integral, que condensa direitos específicos em respeito a sua peculiar condição de pessoa em desenvolvimento. Assim, para este seguimento social é maior a responsabilidade do Estado, notadamente em situações que põem em risco ou ofendem seriamente sua integridade física e psicológica, como é o caso dos crimes sexuais[1]. Vale ressaltar que a própria Constituição Federal do Brasil prevê punição severa a tais condutas.

Assim, o presente trabalho inicialmente aborda a evolução e como se dá a proteção dos direitos fundamentais infanto-juvenis no atual contexto constitucional. Em seguida, é demonstrada a mudança de paradigma empreendida pelo Estado Democrático de Direito, quanto à proteção dos direitos fundamentais e, à função do direito penal. Por fim, o princípio da proibição de proteção deficiente é analisado, considerando-se suas implicações com os crimes sexuais quando praticados contra crianças e adolescentes, apontando-se, ao final, exemplos de proteção insuficiente.


2 A evolução dos direitos da criança e do adolescente no Brasil e a Doutrina da Proteção Integral

O reconhecimento dos direitos de crianças e adolescentes[2], historicamente pessoas sem valor e sem direitos, é fruto de um longo processo de mobilização tanto no território nacional, quanto a nível internacional[3]. É interessante constatar que esse processo é relativamente recente, tendo em conta o processo histórico de construção da concepção de direitos humanos no ocidente; inclusive, este grupo social, até bem pouco tempo atrás, nem sujeitos de direitos eram considerados, mas, tão-somente, objeto de intervenção da família, da sociedade e do Estado, ou seja – utilizando a expressão da Professora Martha de Toledo Machado –, eram, apenas, objetos de intervenção do “mundo adulto”.[4]

Não menos surpreendente é o fato de que, no Brasil, nos períodos políticos que antecederam a promulgação da Constituição Federal de 1988, a atuação estatal, em relação às criança e aos adolescentes, praticamente consistia numa postura ora assistencialista, ora repressiva, com forte tendência à institucionalização, solucionando-se o “problema social” das crianças e dos adolescentes desassistidos, vitimizados, abandonados ou delinqüentes por meio de uma política de internação em reformatórios e internatos, pois, como bem explica Machado: “nas grandes casas de internação crianças e adolescentes estariam mais bem assistidos do que em companhia de suas pobres famílias.”[5]

Neste cenário social, o direito que orientava a política infanto-juvenil e o respectivo sistema de justiça era o Direito do Menor, o qual, de acordo com Veronese, visualizava a criança e o adolescente como seres simplesmente receptores de garantias, e não como seres humanos em processo de edificação de suas autonomias[6]. Ou seja, “a criança e o adolescente na ótica menorista, em vigor até o advento da atual Constituição Federal de 1988, eram meros objetos de toda uma ideologia tutelar, de uma cultura que coisificava a infância”. [7]

A partir do ano de 1923, entrou em vigor o primeiro Código de Menores do Brasil, que, segundo assinala Leite, “tinha forte caráter assistencialista, protecionista e controlador, consistindo num verdadeiro mecanismo de intervenção sobre a população pobre.”[8]

As casas públicas de custódia de crianças e adolescentes já existiam desde o final do século XIX e início do século XX, contudo, por volta de 1960, com a criação da Funabem e das Febens, o Poder público brasileiro prossegue e amplia quantitativamente a política de institucionalização, criando gigantescos internatos para crianças e adolescentes, em sua maioria carentes, dos quais, consoante Machado, da ordem de 80 a 90% daquelas crianças e jovens internados nas Febens não era autora de fato definido como crime[9].

Um pouco mais adiante, em 1979, no auge da ditadura militar, foi instituído o novo Código de Menores (Lei Federal 6.697/79), que, por sua vez, ao invés de aprimorar o sistema legal no referente aos direitos da criança e do adolescente, agravou-o, por meio da criação a Doutrina da Situação Irregular.

No Paradigma da Situação Irregular, o ordenamento jurídico dividia a população infanto-juvenil em duas categorias distintas, conforme se enquadrassem ou não no estigmatizante conceito legal de “situação irregular”. Havia, desta forma, as crianças e adolescentes em situação “regular”, pertencentes às camadas mais favorecidas da sociedade do ponto de vista material; e as crianças e adolescentes em situação “irregular”, ou seja, as marginalizadas socialmente, desprovidas das condições básicas de saúde, educação e moradia. Acrescente-se, ainda, que também incorreria em “situação irregular” as crianças e adolescentes vítimas de crimes, tais como maus-tratos, abandono, violência doméstica ou, até mesmo, violência sexual. Vê-se, portanto, que o Estado resolvia situações totalmente dispares por meio da institucionalização – panacéia de todas as incongruências sociais que afligiam a população infanto-juvenil.

Leite, comentando o código de menores de 1979, assevera que a expressão Situação Irregular, “englobava os casos de delinqüência, vitimização e pobreza das crianças e dos adolescentes, além de outras hipóteses extremamente vagas, que autorizavam a atuação amplamente discricionária do Juiz de Menores”. [10]

É possível observar, deste modo, que, dentro do conceito de “Situação Irregular”, consubstanciada no Código de Menores de 1979, não existia distinção entre crianças e adolescentes desassistidos ou vitimizados, e adolescentes autores de crimes, pois ambas categorias (vitimização e delinqüência) eram subsumidas no conceito legal de “situação irregular”. Dito de outro modo, o “remédio” estatal oferecido para ambos os casos era a internação compulsória em reformatórios e internatos.

Machado, contribui na presente discussão aduzindo que essa perversa confusão conceitual entre criança carente e criança delinqüente foi construída num contexto de expressiva preocupação com o aumento da criminalidade juvenil. Tal confusão conceitual se deu historicamente num processo de cunho estritamente ideológico “porque nasceu e se desenvolveu sempre e em todas as comunidades absolutamente desvinculado da realidade fática.” [11]

A transformação desse quadro só foi possível com a promulgação da Constituição Federal do Brasil, em 05 de outubro de 1988, a qual consagrou a Dignidade da Pessoa Humana como princípio fundamental do Estado brasileiro[12], instituindo um sistema especial de proteção aos direitos fundamentais de crianças e adolescentes, consagrando a Doutrina da Proteção Integral em dispositivos específicos de seu texto, dentre os quais, destaca-se o Art. 227, abaixo delineado:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.[13]

A Constituição também previu, no § 4º do referido artigo, mandado expresso de punição severa do abuso, da violência e da exploração sexual da criança e do adolescente. No mesmo passo, o artigo 5º do Estatuto da Criança e do Adolescente:

Art. 5º - Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.[14]

Vê-se, a toda evidência, que a Carta Magna de 1988 rompeu com o paradigma anterior – da Doutrina da Situação Irregular –, passando a assegurar, com absoluta prioridade, a todas as crianças e adolescentes, indistintamente, um conjunto diferenciado de direitos, o que revela claramente o intuito do constituinte originário de proteger a este grupo especial de pessoas.

A Doutrina da Proteção Integral é fruto de um longo processo de evolução do direito, corroborado por inúmeros tratados internacionais[15] pertinentes à proteção dos direitos infanto-juvenis. Este segmento social – qualificado não somente pelo fato de não ter atingido a maioridade civil, mas, também, por possuir outras características, de ordem física e psicológica, que os colocam numa posição de vulnerabilidade frente aos adultos –, apenas bem recentemente viu seus direitos e necessidades reconhecidos e assegurados pelo direito, haja vista que, até então, suas necessidades eram ignoradas pelo Estado, ou seja, em vez de sujeitos de direitos, eram meros objetos do Direito.

A Doutrina da Proteção Integral, guindada, no Brasil, à categoria de Princípio Constitucional, ilumina todo o ordenamento jurídico, e tem a criança e o adolescente como sujeitos de direitos, assegurando-lhes todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, além de outros direitos específicos, em razão de sua peculiar condição de pessoa em desenvolvimento físico, psíquico, emocional e moral. Ressalte-se ainda, que, a Doutrina da Proteção Integral impõe à família, à sociedade e ao Estado o dever de assegurar, com primazia e igualdade, o respeito e a efetividade do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, conforme se verifica pela redação do Art. 227 transcrito acima.

A Lei Federal n.º 8.069, de 13 de Julho de 1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente –, regulamentou os dispositivos constitucionais, ampliando o sentido e a extensão dos direitos de crianças e adolescentes, que conformam a Doutrina da Proteção Integral. A respeito do assunto, a título de comparação com o paradigma anterior, vale destacar a lição de Carla Carvalho Leite, que assim assevera:

Ao contrário do Código de Menores de 1979, que criou um verdadeiro estigma ao voltar a atenção do Estado para “menores em situação irregular”, o Estatuto não estabelece distinções entre “tipos” de crianças e de adolescentes. Na verdade, à luz do Estatuto da Criança e do Adolescente, o que pode estar em “situação irregular” é o Estado ou a sociedade, jamais a criança ou o adolescente[16]. [grifo do autor]

Verifica-se, assim, que, após a implantação da nova ordem constitucional, é o paradigma da Proteção Integral quem vai informar e conformar todo o ordenamento jurídico aplicável às crianças e adolescentes, vinculando, também, a atuação dos Poderes estatais.

O legislador constituinte, no intuito de colocar a salvo crianças e adolescentes de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade ou opressão, assim como reconhecendo as conseqüências nefastas que a prática desses atos podem resultar nestes seres humanos em processo de desenvolvimento, ordenou, também, a punição severa do abuso, violência e da exploração sexual de crianças e adolescentes. Do mesmo modo, a Lei 8.069/90 previu a punição, na forma da lei, de qualquer atentado, por ação ou omissão, aos direitos fundamentais infanto-juvenis. Tal punição, no interior do Estado Democrático de Direito, se dará, como se verá adiante, também – senão exclusivamente –, por meio de sanções penais, relacionadas com a necessária tutela penal estatal dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes.


3 O paradigma do Estado Democrático de Direito e Direito penal: o dever de proteção dos direitos fundamentais

O Estado Democrático de Direito inaugurou uma nova função para o Estado e para o Direito, representando um paradigma transformador no que concerne às relações entre o Estado e o indivíduo. Este novo modelo de Estado, iluminado pela aproximação das idéias de constitucionalismo e democracia, caracteriza-se pela dimensão transformadora da sociedade, na medida em que busca a concretização dos objetivos constitucionais.

Convém ressaltar que esta forma de organização política representou um extraordinário avanço no referente ao reconhecimento e efetivação dos direitos fundamentais, e isso só foi possível no interior do novo constitucionalismo, de caráter dirigente e compromissório.

Essa nova forma de organização política e legal representa a plenitude de todo um processo histórico que encontra suas origens na passagem da Idade Média para a Idade Moderna, onde os reis europeus, apoiados pela burguesia, centralizaram, de forma soberana, o poder em suas mãos, inaugurando o que se passou a chamar de Estado Absoluto (decorrente do fato do monarca não encontrar limites, governando de forma absoluta, daí o nome desse regime político).

As vicissitudes históricas trataram de impor alterações ao modelo de Estado Absoluto por meio de sua racionalização e do controle do poder estatal, o que ofereceu condições para o surgimento do Estado Liberal de Direito, que foi sucedido pelo Estado Social de Direito e, mais recentemente, culminado esse processo, deu lugar ao Estado Democrático de Direito.

Cumpre frisar que as transformações empreendidas no Estado Absoluto foram impulsionadas pela ideologia do Liberalismo, que atingiram seu ápice durante Revolução Francesa de 1789, marco da implantação do Estado Moderno.

Na concepção liberal, ao contrário do modelo anterior (o Absolutista), o Estado assume uma postura mínima, tendo em vista a promoção das liberdades individuais. Na mesma linha, Streck e Morais, a respeito de como se dava a atuação do Estado Liberal, assinalam o seguinte:

A atividade estatal [no interior do Estado Liberal], quando se dá, recobre um espectro reduzido e previamente reconhecido. Suas tarefas circunscrevem-se à manutenção da ordem e segurança, zelando que as disputas porventura surgidas sejam resolvidas pelo juízo imparcial sem recurso a força privada, além de proteger as liberdades civis e a liberdade pessoal e assegurar a liberdade econômica aos indivíduos exercida no âmbito do mercado capitalista. O papel do Estado é negativo, no sentido de proteção dos indivíduos. Toda intervenção do Estado que extrapole estas tarefas é má, pois enfraquece a independência e a iniciativa individuais. Há uma dependência entre crescimento do Estado e o espaço da(s) liberdade(s) individual(is).[17]

Na concepção Liberal, a intervenção estatal penal, prerrogativa inerente ao Estado, não poderia gozar outra reputação senão a de inimiga dos direitos individuais. Sendo assim, o Direito Penal possuiria, então, a missão de limitar a atuação penal do Estado tendo em vista resguardar os direitos dos indivíduos. Impunha-se ao Estado, neste contexto, a observância de um garantismo negativo, pois que deveria se abster de determinadas condutas em face dos direitos individuais, conformando os limites além dos quais o poder estatal não poderia atuar, sob pena de incorrer em ilegalidade. Dessa forma, foram constituídas as garantias penais e processuais penais do indivíduo contra o Estado, consagradas até hoje nas constituições dos Estados Modernos.

Por outro lado, faz-se necessário destacar que, sob a égide do Estado Liberal, a cidadania e os direitos individuais não alcançavam todos os elementos do corpo social de maneira uniforme. Eram direitos concebidos para atender às necessidades e interesses de uma determinada categoria: a do homem burguês. Portanto, mulheres, crianças, pessoas desprovidas dos meios de produção, e outros grupos socialmente marginalizados, que não se “amoldassem” àquele perfil para o qual o direito e toda organização social foram concebidos, eram excluídos. 

É possível constatar, então, que, não obstante tenha sido criado sob os auspícios dos ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, o Estado Liberal deu prevalência à garantia das liberdades do indivíduo frente ao Estado, deixando em segundo plano as promessas de igualdade e fraternidade.

O Estado Social de Direito, modelo de Estado que sucedeu o Estado Liberal, surgiu a partir das lutas, reivindicações e revoluções sociais que brotaram no século XIX e início do século XX, as quais impuseram significativas alterações no modo de conceber o direito e a atuação do Estado perante a sociedade. Em verdade, a maior parte da população ainda continuava excluída das promessas da modernidade, o que a fez reagir, chegando, inclusive, a comprometer a estrutura social daquele período, fazendo como que o poder público assumisse, a partir de então, uma postura interventiva e promocional em áreas como o trabalho, educação, moradia, previdência, urbanização etc., como forma de amenizar o clamor social. Deste modo, o século XX assiste o surgimento das primeiras constituições que dariam os primeiros contornos ao chamado Estado Social de Direito, o Welfare State.

Porém, foi só a partir da segunda metade do século XX, notoriamente no segundo pós-guerra, que ocorreu uma verdadeira revolução no modo de conceber o Estado e o Direito. Em que pese suas conquistas no campo social, o Estado Social de Direito ignorava a dimensão democrática e os direitos fundamentais, o que contribuiu para que o direito sucumbisse à política, não sendo capaz de evitar a ocorrência de duas grandes guerras empreendidas por regimes fascistas, os quais, legitimados pelo direito, promoveram as mais terríveis atrocidades contra os direitos humanos.

O movimento constitucional que sucedeu o término da segunda grande guerra mundial resgatou os valores preteridos pelo direito, em especial o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. É por isso que, no dizer de Luis Roberto Barroso, “ao fim da 2ª Guerra, a ética e os valores começam a retornar ao Direito.” [18]

De fato, pode-se afirmar, com apoio em Lênio Streck, que “o advento do constitucionalismo do Estado Democrático de Direito proporcionou uma verdadeira revolução copernicana no campo da interpretação do direito.” [19]

Este novo constitucionalismo, no qual se insere o modelo formal de Estado Democrático de Direito[20], assume uma postura dirigente e compromissória no interior da sociedade. À diferença do que ocorreu no movimento constitucional da primeira metade do século XX, as constituições contemporâneas abandonam o status de meros esquemas organizacionais. Antes, reclamam auto-aplicação tendo em vista a concretização dos objetivos plasmados em seu texto, os quais se identificam com o conjunto de direitos constantes na materialidade da Constituição. Neste contexto histórico, surge a Constituição Federal do Brasil em 1988, inaugurando, em território pátrio, o que se convencionou chamar de neoconstitucionalismo.

Consoante assinala Luis Roberto Barroso, o neoconstitucionalismo ou novo direito constitucional:

[...] identifica um conjunto de transformações ocorridas no Estado e no direito constitucional, em meio às quais podem ser assinaladas, (i) como marco histórico, a formação do Estado constitucional de direito, cuja consolidação se deu ao longo das décadas finais do século XX; (ii) como marco filosófico, o pós-positivismo, com a centralidade dos direitos fundamentais e a reaproximação entre Direito e ética; e (iii) como marco teórico, o conjunto de mudanças que incluem a força normativa da Constituição, a expansão da jurisdição constitucional e o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional[21]. [grifo do autor]

O Direto Penal, de sua parte, iluminado pelo novo constitucionalismo, também muda de feição, de sorte que, contemporaneamente, pode-se dizer que o Direito Penal deixou de significar apenas um arcabouço mínimo de direitos e garantias contra as arbitrariedades do Estado (concepção liberal), para assumir, também, o papel de instrumento de garantia dos direitos fundamentais previstos constitucionalmente, por meio da prevenção e punição de comportamentos que neguem ou violem tais direitos.

Assim, na era do constitucionalismo dirigente e compromissório, o direito assume a função de instrumento de transformação social, e as intervenções estatais de cunho penal, consoante assevera Gonçalves, “não podem ser vistas como contrárias ao Estado Democrático de direito. Ao revés, poderão ser necessárias para o alcance dos objetivos inerentes a esse modelo de organização social.”[22]

Na mesma linha assinala Lenio Luis Streck:

[...] a Constituição determina – explícita ou implicitamente – que a proteção dos direitos fundamentais deve ser feita de duas formas: a uma, protege o cidadão frente ao Estado; a duas, através do Estado – e inclusive através do direito punitivo – uma vez que o cidadão também tem o direito de ver seus direitos fundamentais protegidos, em face da violência de outros indivíduos. [23] [grifo do autor]

 Configura-se, assim, o que a doutrina vem apontando como a outra face dos direitos fundamentais, os quais passaram a ser entendidos pelo direito como imperativos de tutela. Ou seja, surge para o Estado o dever de proteção dos direitos reconhecidos constitucionalmente. Tal proteção deverá ser efetuada por meio de normas criminais, pois, mesmo considerando a existência de outras formas de proteção, não há proteção maior do que aquela levada a efeito pelo instrumental penal. Inclusive, em não poucas ocasiões, a própria Constituição Federal de 1988 prevê, expressamente, mandados de criminalização, tal como o contido no § 4º, do Art. 227. Verifica-se, neste passo, aquilo que a doutrina vem chamando de garantismo positivo, que vincula e orienta a atuação dos poderes estatais, no sentido de proteção dos direitos fundamentais.

Por outro lado, é necessário ressaltar que a atuação estatal penal, iluminada pelo princípio da proporcionalidade e pelos imperativos do Estado Democrático de Direito, deve observar dois princípios decorrentes do novo constitucionalismo, apontados pela doutrina como sendo o da Proibição de Excesso – que obriga o Estado a não ir além dos limites legais impostos pelo respeito aos direitos e garantias penais e processuais penais dos indivíduos –, e o Princípio da Proibição de Proteção Deficiente ou Insuficiente – que, sob um outro viés, impõe ao Estado o dever garantir a efetiva proteção dos direitos fundamentais, vinculando, assim, a atuação do poderes estatais, de modo que estes poderão incorrer em inconstitucionalidade caso não cumpram o desiderato constitucional. Em outras palavras, como bem como bem acentua Maria Luiza Schäfer Streck:

[...] o Estado também poderá deixar de proteger direitos fundamentais, atuando de modo deficiente/insuficiente, ou seja, deixando de atuar e proteger direitos mínimos assegurados pela Constituição. A partir disso, vislumbra-se o outro lado da proteção estatal, o da proibição da proteção deficiente (ou insuficiente), chamada no direito Alemão de Untermassverbot.[24]