Reflexões acerca da (im)possibilidade de aplicação do crime de quadrilha ou bando previsto no art. 288 do Código Penal aos crimes militares cometidos em serviço


Porwilliammoura- Postado em 09 maio 2013

Autores: 
ROCHA, Diogo Mentor de Mattos

 

Aos militares em serviço deve ser aplicada a norma especial que é o Código Penal Militar; assim, não havendo tipificação nesta norma principal do crime de quadrilha ou bando não há que se falar em aplicação subsidiária do Código Penal.

 

I - Introdução

 

O presente artigo tem por objetivo aprofundar  a discussão acerca da impossibilidade de aplicação do crime de quadrilha ou bando, previsto no art. 288 do Código Penal, ao militar em serviço.

Muito embora a jurisprudência tenha se consolidado no sentido de que o crime de quadrilha ou bando previsto no art. 288 do CP, malgrado não encontre correspondência no CPM, é aplicável ao militar em serviço em razão do princípio da subsidiariedade, esse não nos parece o melhor entendimento acerca da quaestio.

 


II – Da evolução histórica do Garantismo penal:

 

Com efeito, a evolução do controle social e, inserido neste conceito, do próprio Direito Penal e Processual Penal, fez com que passássemos de um Estado absolutamente totalitário e perseguidor a um Estado garantista, no qual os direitos fundamentais dos cidadãos devem ser observados a todo custo.

No passado a persecução penal era desenvolvida segundo a vontade do soberano, assim como as penas aplicadas o eram segundo o seu entendimento. Tanto assim que a própria doutrina penal afirma que o primeiro livro de processo penal de que se tem relato na história era, na verdade, um verdadeiro manual de tortura.

Entretanto, com o desenvolvimento da ciência penal e da própria noção de estado de direito, de ordenamento jurídico e de garantias fundamentais, a ciência do controle social conseguiu alcançar – a duras penas – o modelo garantista atualmente vigente.

Nessa toada, para uma melhor compreensão do cenário em que se coloca a tese da inaplicabilidade do art. 288 do Código Penal aos crimes cometidos por militares em serviço, faz-se necessária uma pequena digressão histórica acerca do desenvolvimento dos direitos e garantias fundamentais.

 

Norberto Bobbio, em sua Teoria do Ordenamento Jurídico, nos ensinava que (verbis):

“As normas de um ordenamento não estão todas em um mesmo plano. Há normas superiores e normas inferiores. As inferiores dependem das superiores. Subindo das normas inferiores àquelas que se encontram mais acima, chega-se a uma norma suprema, que não depende de nenhuma outra norma superior e sobre a qual repousa a unidade do ordenamento. Essa norma suprema é a norma fundamental. Cada ordenamento possui uma norma fundamental, que dá unidade a todas as outras normas, isto é, faz das normas espalhadas e de várias proveniências um conjunto unitário que pode ser chamado de ordenamento.”[1] (ressalto no original)

A partir desse conceito de ordenamento, bem como da teoria piramidal de Hans Kelsen, podes-se concluir que no Estado Constitucional de Direito as normas que o compõem devem sempre estar de acordo com os preceitos constitucionais, na medida em que é a Constituição que se encontra no ápice da pirâmide normativa, dela fluindo o fundamento de validade de todas as demais normas, de maneira a se formar um todo unitário, ou seja, um sistema jurídico interligado.

É justamente a partir deste entendimento que Luigi Ferrajoli vai buscar os fundamentos do seu modelo garantista, segundo o qual os direitos e garantias fundamentais dos cidadãos previstos na Constituição devem ser observados em todos os momentos, seja pelo legislador – que ao editar uma norma deve estar atento às regras constitucionais – seja pelo magistrado – que ao prestar a jurisdição deve fazê-lo sem olvidar das mencionadas garantias.

Vejamos, nesse sentido, as lições do professor Salo de Carvalho sobre o tema, verbi et verbi:

“a teoria do garantismo penal, antes de mais nada, se propõe a estabelecer critérios de racionalidade e civilidade à intervenção penal, deslegitimando qualquer modelo de controle social maniqueísta que coloca a ‘defesa social’ acima dos direitos e garantias individuais. Percebido dessa forma, o modelo garantista permite a criação de um instrumental prático-teórico idôneo à tutela dos direitos contra a irracionalidade dos poderes, sejam públicos ou privados.

Os direitos fundamentais adquirem, pois, status de intangibilidade, estabelecendo o que Elias Diaz e Ferrajoli denominam de esfera do não-decidível, núcleo sobre o qual sequer a totalidade pode decidir. Em realidade, conforma uma esfera do inegociável, cujo sacrifício não pode ser legitimado sequer sob a justificativa da manutenção do ‘bem comum’. Os direitos fundamentais – direitos humanos constitucionalizados – adquirem, portanto, a função de estabelecer o objeto e os limites do direito penal nas sociedades democráticas”.[2] (original sem grifos)

Com efeito, no ordenamento jurídico pátrio os direitos e garantias fundamentais estão previstos, dentre outros, no art. 5º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88), que em seu inciso XXXIX prevê que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”.

É justamente aqui que reside a pedra de toque para a tese ora trazida à baila: não se pode, sob pretexto algum, vulnerar o princípio da legalidade, que é uma garantia fundamental do cidadão, e sobre a qual recai o status de intangibilidade defendido por Ferrajoli.

 


III – Do princípio da legalidade como meio de proteção do cidadão:

 

Segundo as lições do professor Rogério Greco, o princípio da legalidade caminha lado a lado com o próprio Estado de Direito, tratando-se de um mecanismo de defesa do cidadão contra a voracidade opressora do Estado.

Vejamos as lições do aludido mestre, in expressis:

“Estado de direito e princípio da legalidade são dois conceitos intimamente relacionados, pois num verdadeiro Estado de Direito, criado com a função de retirar o poder absoluto das mãos do soberano, exige-se a subordinação de todos perante a lei”.[3]

Nesse mesmo sentido é o magistério do professor Lênio Streck, segundo o qual, verbis:

“o Estado de Direito surge desde logo como o Estado que, nas suas relações com os indivíduos, se submete a um regime de direito, quando, então, a atividade estatal apenas pode desenvolver-se utilizando um instrumental regulado e autorizado pela ordem jurídica, assim como os indivíduos – cidadãos – têm a seus dispor mecanismos jurídicos aptos a salvaguardar-lhes de uma ação abusiva do Estado”.[4](grifamos)

Também brilhante é a lição do professor Paulo Bonavides acerca da quaestio, senão vejamos:

“O princípio da legalidade nasceu do anseio de estabelecer na sociedade humana regras permanentes e válidas, que fossem obras da razão, e pudessem abrigar os indivíduos de uma conduta arbitrária e imprevisível da parte dos governantes. Tinha-se em vista alcançar um estado geral de confiança e certeza na ação dos titulares do poder, evitando-se assim a dúvida, a intranqüilidade, a desconfiança e a suspeição, tão usuais onde o poder é absoluto, onde o governo se acha dotado de uma vontade pessoal ou se reputa legibus solutus e onde, enfim, as regras de convivência não foram previamente elaboradas nem reconhecidas”.[5] (grifos nossos)

É a partir desse entendimento que em 1801 Anselm Von Feuerbach cunha a expressão latina que melhor traduz o conceito do princípio da legalidade, qual seja, nullum crimen, nulla poena sine praevia lege.[6]

Nessa esteira, a doutrina majoritária vem replicando o entendimento de que o princípio da legalidade (repise-se: garantia fundamental prevista no art. 5º, XXXIX da CRFB/88) nada mais é do que a reserva legal somada à anterioridade, na medida em que o aludido dispositivo constitucional fala em “lei anterior” (praevia lege).

Assim, para que as garras da repressão estatal sejam lançadas sobre o indivíduo mostra-se necessária uma lei prévia e válida, a qual qualifique aquele determinado fato como crime, de maneira que, desta forma, se mantenha a segurança do cidadão no sentido de não ser punido por uma conduta que sequer sabia ser proibida.

É exatamente isso que se percebe na hipótese em estudo.

Vale dizer, punir o militar pelo crime de quadrilha ou bando previsto no Código Penal beira o absurdo, visto que se trata de uma punição por fato não previsto na lei a si aplicável – qual seja, o Código Penal Militar –, o que se mostra absolutamente inadmissível por aviltar não só o princípio da legalidade previsto no art. 5º, XXXIX, da CRFB/88, mas o próprio Estado de Direito, conforme se sustentou nas linhas anteriores.

Com efeito, é de notória sabença que, quando se está diante de um conflito aparente de normas, o princípio da especialidade afasta a aplicação da norma geral quando o caso em estudo possui algum elemento especializante que atraia a aplicação da norma especial. Tal regra é expressa pelo brocardo latino Lex specialis derrogat generali.

Ora, se o elemento especializante é o fato de o crime ter sido praticado por militar em serviço, deve lhe ser aplicada a norma prevista na legislação especial que, neste caso, é o Código Penal Militar.

Ocorre que no Código Penal Militar não há qualquer previsão para o crime de quadrilha ou bando, o que impede qualquer tipo de punição a esse título.

Conforme ressaltado no início deste trabalho, a jurisprudência, atenta ao fato de que o Código Penal Militar não prevê o crime de quadrilha ou bando, vem aplicando, em casos que tais, o tipo penal previsto no art. 288 do Código Penal; sob o argumento de que, neste caso, aplica-se o princípio da subsidiariedade para a solução do conflito aparente de normas, isto é, em não havendo previsão na lei especial deve-se aplicar a lei geral.

Ocorre que o princípio da subsidiariedade somente poderá ser aplicado para beneficiar o réu, mas nunca para agravar a sua situação, sob pena de assim o fazendo se macular, por via oblíqua, o princípio da legalidade, pois se estaria punindo alguém por algo não previsto na lei que lhe é aplicável.

Vejamos, nesse contexto, as lições do professor Rogério Greco, in verbis:

“Pelo princípio da subsidiariedade, a norma dita subsidiária é considerada, na expressão de Hungria, como um ‘soldado de reserva’, isto é, na ausência ou impossibilidade de aplicação da norma principal mais grave, aplica-se a norma subsidiária menos grave.”[7] (original sem grifos)

Em situações como as aqui analisadas, em que há uma absoluta ausência de incriminação do crime de quadrilha ou bando na norma especial, a aplicação do tipo penal previsto na norma subsidiária torna-se evidentemente mais gravosa para o réu, o que não se pode admitir em qualquer hipótese.

Noutras palavras, a aplicação do art. 288 do Código Penal sob o pretexto de se tratar de norma subsidiária nada mais é do que uma manobra, um subterfúgio para punição de um fato ao alvedrio do julgador, sem que haja uma manifestação legislativa que autorize esta punição.

O que se está aqui afirmando é que aos militares em serviço deve ser aplicada a norma especial que é o Código Penal Militar; assim, não havendo tipificação nesta norma principal do crime de quadrilha ou bando não há que se falar em aplicação subsidiária do Código Penal, sob pena de, assim o fazendo, ferir de morte o princípio da legalidade e o próprio Estado de Direito.

Qualquer entendimento diverso atrairia ao édito condenatório a pecha da inconstitucionalidade, por ultrajar uma garantia fundamental do cidadão, que é a impossibilidade de ser condenado por algo que a lei a si aplicável não tipifica como crime.

Em última análise, tratando-se de norma penal-processual incriminadora e, ainda, em homenagem ao princípio da legalidade estrita, tal norma não pode receber interpretação extensiva em malam partem, de modo que se o legislador não incluiu o crime de quadrilha ou bando no Código Penal Militar também não poderá o intérprete fazê-lo, sob pena de se violar a separação das funções constitucionais do Estado (cláusula pétrea), usurpando-se a função típica do Poder Legislativo.


IV - Conclusão

Nunca é demais lembrar que ao magistrado foi incumbida a missão maior de garantia dos direitos fundamentais insculpidos na Constituição da República. Nesse diapasão, ao vestir a toga o magistrado deve internalizar em sua consciência o dever de afastar-se da opinião pública – ou, melhor dizendo, da “opinião publicada” – e de primar pela sua imparcialidade, principalmente no que diz respeito à interpretação da norma penal incriminadora.

O trabalho de hermenêutica deve ser técnico e balizado pelas garantias fundamentais do cidadão, evitando-se ao máximo que se parta da solução desejada em busca dos fundamentos que a ensejariam.

O juiz tem a árdua atribuição de conter o ímpeto acusador inerente a todo cidadão, de modo a garantir uma análise justa e imparcial de cada caso que lhe é apresentado.

É justamente nessa esteira que deve ser analisada a (im)possibilidade de tipificação do crime de quadrilha ou bando previsto no art. 288 do Código Penal em caso de crimes militares praticados em serviço, sob pena de se macular mortalmente o princípio da legalidade.

 


V - Referências

 

BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 10. ed. (tradução de Maria Celeste C. J. Santos). Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997.

BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2000.

CARVALHO, Salo de; CARVALHO, Amilton Bueno de. Aplicação da pena e garantismo. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – parte geral. 14. ed. rev., amp., atual. Rio de Janeiro: Impetus, 2012.

STRECK, Lênio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência política e teoria geral do Estado. 7. ed. Rio Grande do Sul: Livraria do Advogado, 2012.

 


Notas

 

[1] In BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico, p. 49.

[2] In CARVALHO, Salo de; CARVALHO, Amilton Bueno de. Aplicação da pena e garantismo, p. 17.

[3] In GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – parte geral, 14ª ed. p. 93

[4] STRECK, Lênio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência política e teoria geral do Estado, p. 83-84.

[5] BONAVIDES, Paulo. Ciência política, p. 112.

[6] Conforme se extrai das lições do professor Nilo Batista in BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro, p.66.

[7] In GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – parte geral, 14ª ed. p. 28.




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