Relação entre o pensamento jurídico e religioso da antiguidade à pós-modernidade


Porbarbara_montibeller- Postado em 27 março 2012

Autores: 
BATISTA NETO, Dilson Cavalcanti

SUMÁRIO. 1. Introdução. 2. Do Pensamento Jurídico Greco-Romano ao Jusnaturalismo Racionalista. 2.1. O Direito e Religião antes de depois do Cristianismo. 2.2. Direito e Religião no Medievo. 2.3. Renascimento, Reforma Protestante e as bases do Jusnaturalismo Racionalista. 3. Da Escola da Exegese, Positivismo Jurídico, às linhas modernas de raciocínio jurídico. 3.1. Escola da Exegese e o Republicanismo Secularista. 3.2. Proposta Positivista e os valores. 3.3. “Descoberta” da Tópica e a Nova Retórica Jurídica. 3.4. A Pós-Modernidade e as linhas contemporâneas do pensamento jurídico. 4. Conclusões. 5. Referências.

RESUMO. O presente estudo aborda o relacionamento entre o pensamento jurídico e o religioso através da história, com o intuito de esclarecer alguns dos casos difíceis envolvendo a laicidade no Brasil atualmente. Defende-se uma postura laica do Estado perante a religião, mas que não pode ser confundida com uma aversão a ela. Para tanto, buscou-se traçar a evolução do relacionamento entre o pensamento religioso e o jurídico desde a antiguidade, a fim de se tentar compreender o princípio da separação entre o Estado e a religião de maneira mais ampla. PALAVRAS-CHAVE: Laicidade, teoria do direito, religião, liberdade religiosa.

1. INTRODUÇÃO

Este artigo tentará contribuir, de maneira humildade e inicial, para o desenvolvimento das discussões sobre a laicidade e liberdade religiosa que não podem se restringir ao Direito Constitucional, mas deve buscar as origens do princípio da separação Estado-religião na Teoria Geral do Direito, na história e na filosofia. Os casos difíceis que hoje se apresentam, na verdade, podem ser melhor entendidos quando se faz uma abordagem da relação entre o pensamento religioso e o jurídico através da história. Para tanto, o trabalho foi dividido em dois capítulos.
O primeiro capítulo traça o início do relacionamento entre o pensamento jurídico e religioso desde a antiguidade, perpassando pelas formulações do cristianismo, Idade Média, até a criação do Estado Moderno. O segundo capítulo trata do surgimento do Iluminismo e sua proposta da separação entre ciência e religião, até a crítica pós-modernista e suas implicações para o direito, principalmente delineando limites para o discurso jurídico que busque a eliminação da influência religiosa do meio público.

2- DO PENSAMENTO JURÍDICO GRECO-ROMANO AO JUSNATURALISMO RACIONALISTA

2.1- O direito e religião antes de depois do cristianismo.

Somente é possível analisar a relação entre direito e religião quando se vislumbre uma distinção entre elas em algum grau, o que é improvável quando se pensa nas origens do homem quando havia unidade entre o pensamento religioso, político e jurídico. Foi a partir das culturas pré-modernas (China, Índia, Grécia, Roma, etc.), quando apareceram os mercados, que se modificou o contexto primitivo no qual imperava a vontade do patriarca. Ou seja, a posição do comerciante não é mais determinada por sua família, mas por um complexo rol de interesses baseados em diversas culturas diferentes, não mais no do clã ao qual pertence o mercador. É desta forma que aparece o domínio político, localizado em centros de administração e diferenciado da organização religiosa e cultural.
Não queremos, entretanto, inferir que nas citadas culturas havia uma total distinção entre religião, justiça e direito. Ao contrário, a função do filósofo, como se verá nas lições de Sócrates, refletia sobre os fenômenos sociais enquanto reflexo de uma verdade unificadora. Mas nessas sociedades é que vamos reconhecer as primeiras formulações que tornam possível o objetivo central do trabalho: como se relaciona o pensamento jurídico e religioso através da história para se chegar ao contexto atual no Brasil.
Tomemos, pois, como ponto de partida as culturas clássicas (greco-romana) e a judaico-cristã, delineando um breve esquema de como a relação entre o pensamento metafísico, religioso e o jurídico-político foi se construindo. É de se reconhecer que existem, de igual maneira, diversos exemplos de sociedades que, antes mesmo das culturas acima elencadas, já apresentavam um grau de complexidade que rompia com o modelo de organização da sociedade em clãs (egípcios, babilônicos, orientais, entre outros), mas que não tiveram influência inconteste no Ocidente como as que enumeramos acima.
Na Grécia pré-socrática já se pode encontrar os primeiros fundamentos da discussão sobre justiça, direito e religião. O centro de tal discussão era a distinção fundamental, que é o tema de Antígona de Sófocles, entre o justo por natureza e o justo por convenção, ou seja, entre lei natural e lei positiva. O contratualismo ganha força devido a defesa feita pelos sofistas, que reduzem a justiça ao meramente convencional. O Direito parece-lhes ser uma convenção feita entre homens cansados das intempéries da vida primitiva, marcada pela violência e insegurança. Os epicuristas são, por sua vez, os maiores representantes do contratualismo no pensamento grego. Para eles, “a justiça é instrumento e não a medida do que deve caber a cada um, porém o meio de evitar a dor, jamais prejudicando a quem quer que seja.”
Para os defensores do contratualismo na Grécia, era impossível ao homem conhecer a verdade intrínseca das coisas. Contra tal convicção é que Sócrates se levantava. Ele defendia que o homem deveria conhecer a si mesmo como meio de alcançar a verdade e a felicidade. O agir ético só era possível através do conhecimento verdadeiro que prescindia as aparências e enganos que o homem era capaz de formular. A tarefa do filósofo era, então, erradicar a ignorância, por meio da educação (paideia), re-afirmando, assim, seu compromisso com a divindade.
Pelo exposto, percebe-se que a ética socrática é uma junção de elementos sociais e religiosos que se transmitiram e se consubstanciaram principalmente no pensamento de Platão para quem a justiça ideal expressava as três partes da alma: a sensibilidade, a vontade e o espírito. Sendo que a temperança é uma sensibilidade regulamentada segundo a justiça; a coragem é a justiça da vontade; e a sabedoria é a justiça do espírito. Já em uma vertente política, Platão defendia a seguinte estratificação social: os artesãos, dos quais a justiça exige a temperança; os militares, dos quais a justiça reclama a coragem; os chefes, dos quais a justiça demanda sabedoria. Em resumo, desponta a justiça como a imperativa adequação da conduta humana à ordem ideal do cosmos, constituindo ela a lei suprema da sociedade organizada.
Outro grande pensador grego foi Aristóteles, que dentre vários escritos, dedicou-se ao estudo da metafísica. Para ele, a metafísica é o estudo do “Ser enquanto Ser” , ou seja, a filosofia estuda primordialmente: 1) o ser divino, a realidade primeira da qual todo o restante procura se aproximar. “As coisas se transformam, diz Aristóteles, porque desejam encontrar sua essência total e perfeita, imutável como a essência divina. É pela mudança incessante que buscam imitar o que não muda nunca.”
O que difere no pensamento de Aristóteles para o de Platão em relação ao tema é que para o segundo a realidade tátil é uma cópia deformada, uma sombra do mundo verdadeiro (das ideias). Já Aristóteles entende que o ser divino pode ser entendido como um “primeiro motor” porque é o princípio que move toda a realidade, imutável, perfeito.
No que concerne ao pensamento jurídico, Aristóteles, como não poderia deixar de ser, também propôs uma organização e classificação. Primeiramente entre justiça natural e legal. Natural sendo aquela objetiva e imutável, e o legal sendo a lei positivada. A Legal divide-se em geral e particular. A particular divide-se em distributiva e justiça corretiva. E esta se divide em comutativa e reparativa.
Em suma, pode-se perceber, na relação entre a religião e a justiça na Grécia, um sucessivo avanço da filosofia ao criticar a mitologia e construir, com base em argumentos de natureza cosmológica e antropológica, entre o plano sensível e o ideal trabalhados em Platão e posteriormente Aristóteles, uma vinculação do divino às ideias de razão e lei natural. Malgrado não se chegue a abandonar a matriz politeísta tradicional, a religião mitológica de outros tempos dá agora lugar a uma religião racionalizada e oficializada ainda que desprendida de intenção proselitista como o Cristianismo possui, como veremos adiante.
Entretanto antes de analisarmos o Cristianismo, passemos a abordar as discussões sobre direito e religião em outro povo que foi crucial para a formação do pensamento contemporâneo sobre o tema: o romano. Destaque-se, de início, que o direito em Roma não era estudado apenas por moralistas, por filósofos, teólogos ou sacerdotes, surgindo a figura importante do jurisconsulto. Este era um profissional de uma nova Ciência ou Arte , que era dar sentido prático (voluntas) ao fenômeno jurídico, não o tratando simplesmente como uma parte teórica da sabedoria. Forma-se, então, das atividades concretizadoras do jurisconsultos a palavra que até os dias atuais é usada: a jurisprudência. Tal expressão era uma das utilizadas pelos romanos, ao lado de scientia, ars, notitia, para designar que o saber jurídico liga-se, desta forma, ao que a filosofia grega chamava de fronesis (discernimento). Para que a fronesis se exercesse eficazmente, era necessario o desenvolvimento de uma arte (ars, techne) que é similar ao que Aristóteles chamava de dialética.
No que concerne à religião em Roma, esta era compreendida como parte integrante do jus publicum, sendo as funções pontifícias e sacerdotais (atos de cultos), consideradas como serviço público. Ou seja, era um setor da administração pública, da responsabilidade dos funcionários estaduais. Malgrado a relação intima entre o Estado e a religião politeísta, assim como ocorria na Grécia, a religião romana era não-dogmática, eclética e inclusiva. Por se tratar de um largo império, era comum e saudável a aceitação da existência de outras religiões e práticas religiosas advindas de contextos culturais distintos, contexto tal que deixava poucas margens para conflitos. A religião era vista como amalgama a serviço da eficácia de um sistema jurídico.
Para Cícero, as virtudes são estimuladas por uma lei natural, já os vícios são repreendidos por ela. Observando-se a natureza humana, deve-se buscar, segundo o filósofo romano, o alcance de um grau de afinidade e harmonia com as leis que rege o todo, de forma a que tudo se governe de acordo com uma razão divina. Esta percepção tem como foco a liberdade humana perante o estoicismo grego (contratualismo).
Outra grande influência para o pensamento jurídico ocidental foi o cristianismo. Antes, porém, de abordarmos as contribuições do pensamento cristão, é importante traçar um panorama sobre a cultura judaica. Esta se assentava numa concepção de matriz teocrática que não deixava margem para uma clara distinção entre finalidades políticas e religiosas.
O poder político judeu estava legitimado em premissas transcendentais, nas quais o que se buscava efetivamente era a vontade de Deus. Isso porque a sociedade devia se aperfeiçoar para que fosse possível re-estabelecer a conexão perdida com o Criador quando o homem decidiu pecar. Nesse contexto, ganha importância o papel dos profetas, patriarcas e sacerdotes. A esta classe cabia a função reformista de exortar os monarcas para não se afastarem da lei de Deus e buscarem conformar a sociedade dentro do quadro das instituições existentes. Tais instituições eram marcas que distinguiam, muitas vezes, os próprios cidadãos. Na teocracia hebraica não havia espaço para liberdade de consciência individual, sendo a sociedade entendida como um corpo orgânico. E, diferentemente do contexto greco-romano, a coerção e a perseguição religiosa era a regra.
Fora a percepção de que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus – ideia base para futuras formulações jurídicas que imbuem o homem de um dignidade intrínseca – outra herança judaica que persiste aos dias atuais é a ideia de um dia de descanso semanal. Atualmente tal descanso está ligado ao direito trabalhista , mas por mais que o descanso semanal, nos dias de hoje, tenha um caráter eminentemente constitucional-trabalhista, o aspecto religioso, contudo, ainda permanece na escolha do dia da semana a ser interrompido, ao se adotar a fórmula “preferencialmente aos domingos”, bem como na fixação de alguns feriados religiosos.
Mas para os judeus, bem como para uma pequena parte dos cristãos, o dia de descanso não é o domingo, mas o sábado (shabat). O nome do sétimo dia da semana é derivado do hebraico - Shabat - que significa simplesmente cessar de trabalhar. O Shabat não é somente um dia de descanso para os judeus: é um dia de santidade, quando as pessoas podem, por um curto período de tempo, deixar de lado suas preocupações e objetivos materiais da vida, e devotar-se para a renovação espiritual e para a atividade religiosa. O Shabat é totalmente observado quando há ambos, descanso físico e recreação espiritual. Esta combinação de elementos do Shabat é enfatizada nos Dez Mandamentos e em outras partes da Torá, onde ambos os aspectos, o social e o religioso, são descritos.
O cristianismo trouxe inúmeras mudanças de paradigmas ao judaísmo e todo o pensamento religioso até então existente. Não cabe fazer aqui uma abordagem exaustiva teológica, histórica e filosófica sobre o cristianismo, mas trazer a lume dois pontos principais que o distingue: 1) proposição de uma igualdade entre os seres humanos independente das suas origens; e 2) a separação entre o pensamento político e o religioso.
Sobre o primeiro ponto, percebe-se desde a antiguidade clássica até os judeus que há a orientação de respeito ao homem. Porém este deveria ser identificado como pertencente ao mesmo clã, classe, profissão, para ser digno de tratamento igual. O cristianismo amplia a dignidade da pessoa humana vinda da criação à imagem de Deus para toda a humanidade, não somente para os judeus. Para o cristianismo, o perdão dos pecados só é possível através da aceitação da morte de Cristo como válida para apagar os pecados, já que “o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus, nosso Senhor”.
Já que todos podem ter acesso à justiça divina em Cristo, não pode haver mais divisão de origens e classes. Afirma Paulo: “Pois, em um só Espírito, todos nós fomos batizados em um corpo, quer judeus, quer gregos, quer escravos, quer livres. E a todos nós foi dado beber de um só Espírito.” É certo que nos primórdios da igreja cristã esta mudança de paradigma foi tão radical, que gerou discussões, à princípio, dentro do próprio movimento cristão, mais precisamente entre Pedro e Paulo. Mas o que importa aqui reforçar é que a igualdade concebida pelo cristianismo foi o motor de diversas formulações jurídicas posteriores, inclusive na contemporaneidade, como veremos adiante no momento oportuno.
Outro ponto que interessa-nos é a separação proposta por Cristo entre os objetivos políticos e religiosos. Num epsódio, Jesus foi questionado quanto ao pagamento de tributos à César (já que a judéia fazia parte do império romano). Cristo respondeu proferindo a famosa frase: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.” Além deste epsódio, por diversas vezes Jesus falava de um “reino do céu”, e em nenhum relato bíblico mostrou-se favorável a uma tomada de poder político a fim de fundamentar e fortalecer suas ideias. Ao contrário, a ordem que aparece nos finais dos evangelhos cristãos é para fosse ensinado suas lições para todo o mundo, não fazendo alusão a qualquer ordem de sujeição política. Malgrado tal postura, a história do cristianismo foi ligada ao pensamento político através do que se chama de cristanização do Império Romano.
Em Roma, como já afirmado, os cultos religiosos faziam parte da competência dos funcionários públicos e havia uma tolerância em relação a outras práticas diferentes das romanas. Mas tal tolerância somente ocorria desde que se aceitasse o culto ao Imperador, considerado sumo pontífice, digno de adoração. Esta imposição não era aceitável para o cristianismo primitivo. Malgrado procurassem respeitar as autoridades, mostrando-se cidadãos exemplares , os cristãos eram objeto de perseguição e incriminação. Tal fato de dirigirem a sua lealdade suprema a outra pessoa que não ao Imperador os levavam à morte, por muitas vezes, nas arenas de gladiadores.
Com o começo do declínio do Império, percebe-se o potencial socialmente integrador do cristianismo que o torna a religião oficial romana, fazendo que a nova fé sirva de coluna vertebral de uma homogeneizante religião civil. Os propósitos de tal mudança consistiam em assegurar pax terrena, ou seja, a legitimação e legitimidade do poder, a estabilidade das instituições e a integração e coesão do tecido social.
Da perspectiva da liberdade religiosa, tal mudança trouxe uma inversão das perseguições: os cristãos de perseguidos passaram para um posição política e juridicamente privilegiada na qual o paganismo são punidos com a pena capital. Foi ordenada, ainda, a destruição de todos os locais e objetos do culto não-cristão, sendo os seus bens confiscados e atribuídos às igrejas.
A cristianização do Império Romano realmente alterou a história do Ocidente, já que, com a queda do Império, a Igreja Católica Apostólica Romana, no ponto de vista jurídico, sustentará que o Papa era, não apenas sucessor de Pedro e da cristandade, mas também sucessor de César, ou seja, herdeiro direto da dignidade imperial. Isto se deu, entre outros fatores, por força da doação que Constantino fez à Igreja . No plano político e teológico, a Igreja reclama, nos séculos que se seguirão, a superioridade intrínseca do seu discurso teológico relativamente a todos os aspectos da vida, inclusive no direito. A partir desta perspectiva, passa-se a construir toda cultura ocidental a partir da ótica teocêntrica, mais especificamente, refletindo a posição de superioridade da verdade objetiva encarnada na doutrina e na prática da Igreja , como veremos no próximo tópico.

2.2 - Direito e religião no medievo

Após a queda do Império Romano, a Igreja passa a adotar a distinção romana entre auctoritas e potestas, ou seja, reclamava para si a primeira e deixando a segunda, que não mais pertencia aos cidadãos romanos ou ao imperador, mas aos príncipes seculares que representavam os povos bárbaros que agora passaram a dominar a Europa. A situação política se resumia em que o poder político era somente um poder, mas não era a autoridade, não tinha a última palavra, esta pertencia aos que se diziam representante de Cristo na terra que era responsável para adequar a realidade política, jurídica, artística, científica em geral à vontade de Deus. No presente esquema histórico, a dinâmica entre a Igreja e os príncipes marca uma separação entre o pensamento religioso e jurídico nunca antes teorizado. Os filósofos da idade média, pertencentes ao chamado Jusnaturalismo Teológico, são pioneiros na análise da relação entre religião e o direito já que foram herdeiros da proposição cristã de separação entre o religioso e o político. Sendo assim, dois grandes movimentos surgem na Idade Média: a patrística e a escolástica.
A patrística foi o movimento liderado por padres dos séculos I e II, que filosoficamente buscavam fundamentar os dogmas católicos, tendo como principal expoente Santo Agostinho. Ele defendia a existência de duas concepções em relação ao Estado: o helênico, pagão, e a segunda sendo composto por almas libertas do pecado e próximas de Deus. A base que marcava tal dicotomia era a diferença entre a Lei Eterna, criada por Deus e a Lei Natural, insculpida no homem.
A filosofia agostiniana, apesar de inteiramente orientada para a metafísica e para a teologia, traz uma série de orientações para a construção de um sistema sobre o governo das almas, ou seja, no campo político. Agostinho pregava que a vida terrena devia ser valorizada como meio de correção dos rumos de cada alma em particular, tudo a partir dos praecepta divinos.
Foi exatamente de tal divisão entre o plano divino e o terreno com implicações políticas, que Agostinho trouxe-nos a famosa distinção entre a Cidade de Deus (Civitas Dei) e a dos Homens. O objetivo maior dos pensadores da patrística é a de, num mundo repleto de iniqüidades, aproximar o homem de Deus e, para tanto, devem reinar em todas as relações humanas os princípios divinos insculpidos no coração humano, fazendo com que a se faça reinar também na Terra a Cidade de Deus. Para Agostinho, nesta dicotomia, podem-se identificar dois amores: um primeiro, ou seja, o amor de si e o desprezo de Deus, que deu origem a cidade terrestre; um segundo, ou seja, o amor de Deus, e o desprezo de si, a cidade celeste.
Já a Escolástica teve como principal representante Tomás de Aquino, que considerava que existia a divisão entre lei eterna, natural e humana, mas que estas não podem ser estanques, sendo que todas devem se complementar ao máximo. Dividia a lei natural em duas espécies: a propriamente dita, que governa a natureza dos animais, e o direito natural das gentes, sendo que a ordem jurídica não deve se restringir a uma conjunto de normas, já que a justiça é uma virtude.
A teoria de Tomás de Aquino encontra-se desenvolvida especialmente na Summa Theologica. Nesta obra, o grande filósofo medieval trata da questão da lei e da justiça, destrinchando problemas jurídico-políticos. Aquino traça algumas categorias de leis. A primeira é a lei eterna. Esta foi promulgada por Deus e tudo ordena, em tudo está; a segunda é a lei natural: trata-se de uma lei comum a homens e animais. Outra categoria é a da lei comum a todas as gentes: trata-se de uma lei racional, extraída da lei natural, entretanto, comum somente a todos os homens; e, por último e a mais volátil da escala, a lei humana: trata-se de uma lei puramente convencional e relativa, assim como altamente contingente, e que deve procurar refletir a essência das leis eterna e natural.
A teoria tomista sobre a justiça traz implicações vastas para o pensamento teorético-jurídico. Com esta classificação mais larga da lei e da justiça, Aquino tenta responder ao problema da justiça de maneira mais completa e racional. Sua contribuição reside em seu jusnaturalismo. Como vimos, sua teoria admite uma lei natural mutável, e que, portanto, não se encontra nos ombros estreitos do que e absoluto. Ademais, sua concepção aponta para uma lei maior do que a natural: a lei divina. Desse modo, todo conteúdo de direito positivo (contratual, volátil) deve-se adequar às leis e prescrições que lhe são superiores: o direito natural e o direito divino. Com o advento do Renascimento e do Iluminismo, como veremos adiante, o apego e fundamentos teológicos para a explicação do justo, base do pensamento tomista, tenderá a diminuir entre os filósofos e teóricos do direito. O que importa aqui frisar é que após a contribuição de Tomás de Aquino, o direito natural, que já era uma teoria defendida na corrente socrático-aristotélica e na estóica, bem como na obra de Cícero e de jurisconsultos romanos, adquire um sentido diverso, não apenas por tornar-se uma lei da consciência, uma lei interna à consciência humana, mas também por ser considerada inscrita no coração do homem por Deus.
Saindo do campo eminentemente filosófico para o político, a Igreja Católica, durante a Idade Média, aprofunda sua pretensão teológica exclusiva de corporizar a verdade objetiva e buscava, a despeito do que pregava o cristianismo primitivo, a supremacia política. Para tanto, formula o conceito da libertas eclasiae, baseada num juízo da Igreja Católica sobre o mérito teológico da sua própria doutrina que viria a assumir um papel crucial no desenvolvimento ulterior do posicionamento dela perante o Estado. A luta entre o poder temporal e o poder espiritual prolongar-se-ia durante quase todo o medievo, fazendo com que vários princípes fossem destituídos por não acatarem a vontade da Sumo Pontífice. Como reação, e com o apoio da classe ascendentede dos burgueses e devido a diversos fatores – como veremos no próximo tópico-, os princípes acabaram por estruturar a separação no mundo ocidental entre o poder espiritual e o poder político, delineando-se assim claramente as atribuições de cada um.
Destas relações conflituosas é que surgem as primeiras concordatas, sendo que a Concordata de Worms de 1122, é geralmente considerada como o primeiro exemplo seguro de uma concordata. Do ponto de vista curialista , o objetivo é favorecer, ao menos em princípio, o ideal do Estado Cristão, aliado e subordinado à Igreja e às suas específicas concepções de verdade objetiva e de liberdade eclesiástica.
O sistema do direito na Idade Média, centrado no soberano, está ligado ao mecanismo de apossamento da terra, sendo que o servo poderia usá-la com algumas contraprestações, que geralmente eram desmedidas ao ponto do soberano ter poder de vida ou morte. Mas, por mais que seja verdade que a soberania era o direito basilar da ordem jurídica, ela era limitada pela ideia de soberania divina, ou seja, de um poder político que encontrara sua fonte e seu limite em Deus. Como nos referimos acima, a potestas deriva-se dessa suprema auctoritas, que atuava conforme o ensinamento da Igreja que, por sua vez, atuava como limitadora do poder político.

2.3 – Renascimento, Reforma Protestante e as bases do jusnaturalismo racionalista.

Após séculos de predominância do pensamento religioso sobre os demais (inclusive jurídico), a Europa, como já demonstrado acima, passa a viver grandes transformações sociais e políticas. Antes de trazermos o pensamento dos juristas sobre o direito e a religião, primeiramente trataremos do Renascimento Cultural, que repercutiu em todos os ramos do conhecimento científico; depois abordaremos a Reforma Protestante, que modificou o cenário religioso europeu.
Enquanto na Idade Média existia um sistema ético subordinado a uma ordem transcendente, o homem renascentista procura explicar o mundo humano tão-somente segundo exigências humanas. Portanto, Maquiavel e Hobbes, por exemplo, tentam explicar o Direito e o Estado sem transcender o plano do simplesmente humano.
O homem passa a colocar-se no centro do universo (humanismo), indagando da origem de tudo aquilo que faz parte da sua realidade. A preocupação dos cientistas das mais diversas áreas do renascimento é não se contentar com explicações fora da verificação racional. Para tanto, sujeita tudo a uma verificação de ordem racional, dando valor essencial ao problema das origens do conhecimento, a uma fundamentação segundo verdades evidentes.
O período histórico em comento chama-se “renascimento” por tentar trazer de volta a postura clássica de valorizar a Razão com meio de se chegar ao conhecimento verdadeiro. Só ela, como denominador comum do humano, parecerá manancial de conhecimentos claros e distintos, capazes de guiar a espécie humana. Tal mudança de postura, com o veremos adiante, fará nascer um Jusnaturalismo distinto do de cunho teológico: não mais ligado a uma lei insculpida por Deus no coração humano, ou simplesmente presente na natureza, mas que tenha o homem como ponto de partida. Enquanto para Tomás de Aquino parte-se da a lei para depois se pôr o problema do agir segundo a lei, para o Jusnaturalismo Racionalista põe-se primeiro o indivíduo com suas capacidades, para depois se pôr a lei.
O Jusnaturalismo do Renascimento nada mais é do que uma reação ao racionalista a situação teocêntrica na qual o Direito se encontrava o medievo. Na prática, antes de estar ligado à filosofia cristã medieval, o Direito tinha na Igreja, e em suas tradições, sua única fonte válida. Trata-se da acentuada passagem do pensamento teocêntrico ao antropocêntrico. Saliente-se que para esta nova visão do Jusnaturalismo não é a natureza que dá aos homens o entendimento sobre o justo; mas por meio do uso da razão o homem apreende o conhecimento e coloca em prática na sociedade.
A reação contra a predominância do catolicismo não vai surgir somente nos meios artístico e científico, mas dentro do próprio cristianismo. A Reforma Protestante trouxe uma verdadeira quebra do cristianismo que repercutiu tanto em mudanças doutrinárias, como na construção do Estado Moderno. Além disso, é da Reforma Protestante que nasce as primeiras formulações sobre liberdade religiosa para proteger uma minoria protestante diante das perseguições feitas pela até então maioria católica. Ela vai comprometer decisivamente as aspirações de unidade teológico-política da Cristandade, colocando sob forte pressão o conceito de libertas ecclesiae.
Num contexto de lutas intensas pela disputa do poder entre a Igreja Católica e os príncipes, a Reforma passou a ser uma aliada destes a fim de legitimar suas intenções. Inevitavelmente, diversos conflitos religiosos passaram a ocorrer já que as confissões religiosas emergentes da Reforma de igual forma reivindicavam para si o estatuto da verdadeira religião, e pretendiam ver tal status devidamente reconhecido pelos poderes públicos.
Foi esta junção de situações que impulsionou os teóricos do direito e do Estado formularem soluções institucionais que permitissem a coexistência, no seio da uma comunidade política, de confissões religiosas que estavam em rota de colisão. Da ideia de volta do império da Razão, comum aos renascentistas, que se formulou boa parte das soluções. Entre elas estão a criação do Estado Moderno, como veremos adiante, e no pensamento jurídico, passa-se a se desenvolver uma teoria capaz de promover uma certa neutralidade, visando dirimir os intensos conflitos. O direito passa a preocupar-se mais com as questões técnicas, conduzindo a doutrina jurídica a uma racionalização e formalização do direito. Tal formalização é que vai ligar o pensamento jurídico ao chamado pensamento sistemático, o qual, juntamente com a herança do dogmatismo medieval, servirá de base para as futuras formulações do positivismo jurídico.
Por hora, permaneçamos na análise do jusnaturalismo racionalista que, como diz o próprio nome, com base no antropocentrismo, há uma inversão do fundamento da justiça de Deus para a Razão. Para Grotius, o direito natural era imanente ao homem e regulava moralmente os demais direitos (chamados de voluntários) como os da família, do Estado etc.
Para Pufendorf, a lei natural não seria interior, como dizia Grotius, mas resultava de forças exteriores, unindo os homens em sociedade, pois o homem tem a necessidade de conviver em sociedade. Samuel Pufendorf é personagem importante por incorporar a proposta protestante de quebra com a tradição católica. Para ele, o jusnaturalismo foi um produto da luta contra a cultura representada pelos Católicos.
Já Locke entendia que as leis naturais não são inatas, não se encontram impressas na mente humana dadas por Deus, mas, através da razão pode-se apreendê-las da natureza. Locke, diferentemente de Hobbes, não possui uma visão pessimista do estado de natureza. Para ele, o estado de paz só seria quebrado pela ausência de um ente que dirimisse os conflitos. Para Locke, somente o pacto social, ou seja, o Estado liberal-democrático poderia garantir o direito natural.
Hobbes, por sua vez, concebia que a natureza humana era individualista. Para ele, o Estado-Leviatã deveria ser constantemente obedecido, em consequência de uma abertura de liberdades individuais, fato este decorrente de uma vontade geral de forma um pacto social para que os direitos naturais sejam resguardados. Como afirmamos acima, para o pensamento de Hobbes, o estado de natureza humano propiciava o amplo uso da liberdade, o que levava a ponto de uns lesarem aos outros, ou seja, ele tinha visão negativa do estado de natureza anterior ao Estado. Nesse sentido, para Hobbes, a ditadura de um é preferível à ditadura de todos.
De todos os pensadores do Jusnaturalismo até então citados, nenhum foi tão perspicaz no que tange a busca de desvincular o pensamento jurídico - e filosófico em geral - do religioso foi Immanuel Kant. Para ele, o conhecimento só era possível aliando as experiências às práticas formais da Razão. Formulou o imperativo categórico (age somente segundo uma máxima tal que possas querer, ao mesmo tempo, que se torne uma máxima universal). A razão prática é legisladora de si, “definindo os limites da conduta humana.” O ser humano age moralmente quando não visa outro fim a não ser o ato em si que está a praticar. Kant não buscou definir o que era justiça, mas pode ser considerado um jusnaturalista já que admitia a existência de normas jurídicas anteriores ao direito positivo.
No panorama até aqui feito tem se mostrado como o pensamento jurídico e religioso tem se relacionado através da história, desde os primórdios da humanidade, até as formulações humanistas, racionalistas advindas do Renascimento. Ocorre que os ideais humanistas formulados até o Renascimento estão, em sua maioria, baseados na Bíblia, inclusive a ideia de que todas as pessoas têm igual valor. Ou seja, usava-se muitas vezes a mesma fonte de inspiração da Igreja Católica – a Bíblia - para criticá-la, como observa-se na obra dos teólogos e filósofos da Reforma Protestante. Sendo que a primeira vertente do humanismo foi de base cristã.
Os teóricos renascentistas, em sua maioria cristãos, criticaram o poder eclesiástico e a intolerância religiosa, enquanto ressaltavam as necessidades religiosas do homem. Já no Iluminismo, o humanismo ganhou novos contornos, sendo usado para descrever uma filosofia de vida que se opunha a todas as formas de religião. Veremos no próximo capítulo que a religião e o direito, a partir do Iluminismo, nunca mais se encontrarão formalmente já que o ateísmo e o agnosticismo serão parte das formulações científicas nas mais diversas áreas, inclusive a jurídica. Ressalte-se que o termo usado acima foi “formalmente”, já que a discussão sobre direito e religião ganhará uma nova roupagem, já conformada com os novos tempos de tolerância religiosa, na qual a dicotomia central é a segurança jurídica versus a justiça. Na verdade, trata-se de uma disputa que já ocorria desde a Grécia: entre o justo por natureza e o justo por convenção.
Entretanto, a partir da Escola da Exegese, influenciada pelo Republicanismo Secularista gerado pela Revolução Francesa, a doutrina teorética-jurídica ocidental não mais admitirá ligação formal com qualquer denominação ou linha religiosa. Portanto, o que se discutirá a partir de então de conteúdo religioso no campo jurídico vestirá a roupagem da axiologia, ou nas formulações sobre liberdade religiosa dos cidadãos. Veremos que algumas linhas de pensamento político-jurídica tentarão, a partir da revolução francesa, retirar toda influência religiosa do meio público. E a base para tal atitude será, justamente, a substituição da religião revelada, pela Razão humana. Percebe-se, desta forma, que haverá, a partir da Escola da Exegese, duas posturas: na primeira, uma negação à religião em nome do império da Razão humana (posteriormente apoiado, de igual forma, por teóricos evolucionistas); e, a segunda estará preocupada com a tolerância aos valores em geral (que incluem os religiosos) na formulação das linhas de pensamento da teoria do Direito.

3- DA ESCOLA DA EXEGESE, POSITIVISMO JURÍDICO ÀS LINHAS MODERNAS DE RACIOCÍNIO JURÍDICO.

3.1- Escola da exegese e o republicanismo secularista.

No capítulo anterior, vimos que a justiça primitiva (clássica e cristã) foi condicionada por uma postura de conformidade com as fórmulas sacras. Ou seja, tratava-se da santificação de costumes ou de fórmulas reveladas pelos porta-vozes de uma divindade. Até então, quando se construíam teorias jurídicas, o justo confundia-se com o piedoso e o sagrado. Acreditava-se, de maneiras diferentes, que havia uma lei, eterna e inalterável, que regia toda a humanidade, em todas as épocas. Esta lei eterna pressupunha a existência de uma divindade que a promulgou e a sancionou. Aquele que não a obedecesse, estava negando automaticamente sua natureza humana.
A partir do Renascimento, houve uma mudança de postura entre os teóricos do Estado e do Direito. Com a herança da dogmática e hermenêutica canônica, passou-se a elaborar um sistema de direito justo, universal, só que desta vez inteiramente fundada em princípios racionais, independente do meio social, cultural. Havia, à época, um entusiasmo científico devido aos progressos efetuados pelas ciências naturais, que propunha que Deus teria criado o mundo inspirando-se nas matemáticas, o que motivou os juristas a elaborarem sistemas de jurisprudência universal. Como vimos anteriormente, apesar de serem cristãos, muitos juristas como Pufendorf e Grotius, passaram a buscar uma laicização do direito natural, concebendo-o como um sistema de direito puramente racional.
No campo político, a Europa neste contexto vive sobre a dominação dos monarcas. Com a formação dos Estados Modernos, a busca da solução justa tinha seu alicerce em um mosaico teórico do qual faziam parte o direito, a moral e a religião. Acontece que, diferentemente do que ocorreu na Idade Média, o monarca aqui detinha o poder temporal e exercia grande influência sobre o religioso. Neste contexto, no campo jurídico a situação era catastrófica, já que não havia, por exemplo, necessidade de motivar as sentenças, as fontes do direito eram imprecisas, o sistema do direito era pouco elaborado e as decisões da justiça quase não eram levadas ao conhecimento do público.
Tal cenário não se restringia ao Direito, mas havia uma insatisfação da maioria da população. Os regimes absolutistas eram apoiados pelas religiões, sendo que a maioria ainda era ligada ao papado. Fato este que impulsionou uma mudança no racionalismo com a queda das monarquias absolutistas na Europa. O racionalismo antes da ascensão dos burgueses ao poder era formulado por pensadores cristãos em sua maioria. Mas com tal mudança política, era necessário, de igual modo, a negação ou esterilização da influência no meio público da religião que sustentava os regimes depostos: o cristianismo num sentido amplo. Esta pretensão foi materializada com as formulações dos pensadores do Republicanismo Laicista. Mas, antes de traçar a influência de tais pensadores, é importante abordarmos a escola jurídica que foi herdeira da Revolução Francesa: a Escola da Exegese.
Após a Revolução Francesa, os burgueses que assumiram as rédeas da nação foram influenciados pelas construções doutrinárias racionalistas que tinham na ideia de sistema uma forma de criação de um corpo de normas que fosse capaz de uniformizar o direito, suprimindo a obscuridade, a ambigüidade, a incompatibilidade e a redundância. Sob a ótima de tal racionalismo, surge, na França, em 1804, o Código Civil Francês, conhecido como Código de Napoleão. E o movimento doutrinário ao qual pertencia os grandes comentaristas do novo código ficou conhecido como a Escola da Exegese.
Uma preocupação entre os integrantes da Escola da Exegese era a firmar o novo regime que se instaurou na França pós-revolução. Havia um temor de que os que compunham o poder judiciário tivessem ainda ligações com a classe nobre. Propugnou-se, então, uma atuação restrita do poder judiciário por meio de um apego excessivo às palavras da lei. A atividade dos juízes, até então comprometidos com o Antigo Regime, seria controlada pela observação radical da lei feita pelo povo, em cujo conteúdo representa a vontade geral.
O sistema de direito proposto pela Escola da Exegese, e posteriormente modernizado pelo positivismo, tinha basicamente duas pretensões: a completude e a coerência. Ou seja, seria necessário que para cada situação dependente da atuação jurisdicional houvesse uma regra de direito aplicável, uma resposta pronta, isenta de toda ambiguidade. O juiz não poderia, portanto, deixar-se levar por suas convicções morais ou religiosas. A neutralidade do magistrado reflete uma tendência filosófica da época que repercutirá no fenômeno religioso: o republicanismo laicista. Este foi formulado por revolucionários (jacobinos) que pretendiam acabar com o poder da religião sobre a cultura francesa.
Na verdade, os conflitos religiosos na França já era uma constante que, certamente, fortificou a postura do republicanismo laicista. Diversos eventos como o massacre da noite de São Bartolomeu, gerou anos mais tarde um relativo desconhecimento, pelas forças revolucionárias de Paris, do cristianismo igualitário e congregacional, em algum medida associado aos ideais da República de Cromwell e à independência dos Estados Unidos.
O republicanismo laicista de inspiração francesa é marcada por uma intenção de retirada total do pensamento religioso sobre a vida pública. Sendo, inclusive, uma das antigas propostas do jacobinismo radical, adotadas pelos bolsheviques, a descristianização total da sociedade, através de redenominação das cidades, vilas, aldeias e ruas, da remoção de todos os símbolos religiosos do espaço público, etc.
Embora essa postura tenha sido afastada pelo modelo de secularização francesa, vez por outra ainda torna-se a ver sua influência, por exemplo, quando se proíbe o uso do véu islâmico nas salas de aula. Além desta visão, há o do liberalismo político, que também parte de dois pressupostos que veem a religião negativamente: 1) O primeiro entende que a religião é um resíduo do passado caracterizado pelo dogmatismo irracional, cego, que já foi superado através da racionalização da política e do direito. É de se notar que por traz deste entendimento está uma filosofia evolucionista da história que vê a religião como pertencendo a uma fase inicial do desenvolvimento humano, sendo ela algo nocivo para o progresso científico; 2) O segundo diz respeito à posição de vantagem epistemológica à razão, às razões e às justificações secularizadas, em detrimento da razão religiosa, obrigando os crentes a colocarem as suas convicções religiosas entre parêntesis quando entram na esfera de discurso público.
Como nos referimos acima, o sistema jurídico que foi formado na Escola da Exegese partia das construções racionalistas que vislumbravam a possibilidade da construção de um sistema coeso e completo, capaz de solucionar as contingências da sociedade. Ocorre que, os teóricos do Direito passam, através dos séculos, a abandonar o jusnaturalismo por entenderem, influenciados pelo crescente evolucionismo, que não era possível existir uma lei eterna, imutável, à qual deveria o sistema jurídico buscar validade. Passou-se, então, a se fazer uma distinção entre a causalidade natural e a jurídica. A causalidade natural se baseia em leis naturais, ao passo que a causalidade jurídica se funda em leis humanas, sendo que estas últimas em certo sentido são produto duma criação arbitrária. Ou seja, a consequência jurídica concreta não pode se achar predeterminada.
Além da crítica ao republicanismo laicista, outra importante é que o tipo de Estado concebido pela Escola da Exegese estava centrado no texto legal. Ou seja, o poder do Estado nunca deve ser exercido contra os cidadãos individuais, a não ser em conformidade com regras explicitamente especificadas num conjunto de normas públicas à disposição de todos. A crítica está no fato de que esta perspectiva de Estado é bastante asséptica, já que não estipula nada a respeito do conteúdo das regras que podem ser colocadas no texto jurídico. A vontade geral pode tornar-se, desta maneira, um engodo político para se impor atitudes antidemocráticas.

3.2- Proposta positivista e os valores.

O positivismo, que teve sua formulação mais sofisticada em Kelsen, trouxe algumas mudanças no que tange a relação entre o direito e a religião. Devemos relembrar que desde a mudança do jusnaturalismo teológico, para o racionalista, nas discussões que envolvem religião no campo jurídico, ela faz parte da mesma categoria da ética, moral, etc. Esta mudança de paradigma teve o seu ápice na proposta positivista que é de dar cientificidade ao Direito através da sua separação em relação à moral e à ética.
Para Kelsen , o Direito pode até ser moral. Mas não tem necessariamente de o ser. Dessa forma, ordem social que não é moral, ou seja, justa, pode, no entanto, ser Direito. O que ele refuta é que deva, necessariamente, existir a exigência de que o Direito deve ser moral, isto é, deve ser justo.
O positivismo entende que a moral não pode justificar o Direito, já que se não pode pressupor que apenas uma Moral é a única válida, absoluta, eterna e imutável. A exigência de uma separação entre Direito e Moral, Direito e Justiça, significa que a validade de uma ordem jurídica positiva é independente desta Moral absoluta, única válida. Isso não quer dizer, necessariamente, que o conceito de Direito não caiba no conceito de bom. Para Kelsen, o conceito de “bom” não pode ser determinado senão o de “deve ser”, e não algo que “é”. O positivismo kelseneano não exclui a existência da moral, da ética, da religião, mas simplesmente entende que elas não podem fundar o ordenamento jurídico. Para ele, trata-se de uma ilusão querer encontrar um fundamento absoluto, justo e eterno para o Direito:

Na verdade, quando se trata de efetuar essa escolha ou opção, as diferentes doutrinas do direito natural dão respostas tão variadas e divergentes como o positivismo relativista. Elas não poupam o individuo, não o libertam da responsabilidade da escolha. Porém, cada uma destas doutrinas jusnaturalistas dá ao individuo a ilusão de que a norma de justiça que ele escolhe ou pela qual opta provem de Deus, da natureza ou da razão, pelo que é dotada de validade absoluta, excluindo a possível validade de uma outra norma de justiça que a ela se oponha ou contradiga - e, por esta ilusão, muitos fazem um total sacrifidum intellectus.

A questão central para Kelsen é fundamentar sua Teoria Pura do Direito em uma norma que seja capaz de distinguir o Direito da Moral. A norma fundamental, segundo Kelsen, não pode ter um conteúdo específico. Caso o tenha, todo o sistema estaria vinculado a tal mandamento específico. Essa tentativa de fundamentação não foi pioneira de Kelsen. Hobbes, por exemplo, põe como fundamento da sua teoria do Direito e do Estado a máxima Pax est quaerenda (A paz deve ser procurada), e com isso procura entender que o postulado ético fundamental do homem é a necessidade de evitar a guerra e procurar a paz. Dessa regra fundamental, Hobbes tenta deduzir todas as principais regras da conduta humana, que chama de leis naturais. Todas essas leis formam um sistema jurídico, uma vez que são deduzidas da primeira. Este referido sistema, para Kelsen, seria estático, já que num sistema desse gênero as normas estão relacionadas entre si no que se refere ao seu conteúdo. Diferente de um sistema estático, Kelsen indentifica a ordem jurídica como tendo um caráter dinâmico. Isso quer dizer que uma norma jurídica não vale porque tem um determinado conteúdo, mas porque é criada por uma forma determinada.
O positivismo jurídico, avesso a qualquer teoria do direito natural, filiado ao positivismo filosófico, negou os valores como meio de fundamentação da ciência. Foi, sem sombra de dúvida, a escola jurídica predominante no Ocidente até o fim da Segunda Guerra Mundial. Trata-se de uma teoria que busca descrever o Direito, e identificar sua cientificidade não importando a sociedade em que se encontre. Tenta eliminar, portanto, do direito qualquer referência à ideia de justiça e, da filosofia, qualquer referência a valores, procurando modelar tanto o direito como a filosofia pelas ciências, consideradas objetivas e impessoais e das quais compete eliminar tudo o que é subjetivo, portanto arbitrário, incluindo-se aqui prioritariamente, os valores religiosos.
Tais formulações legitimaram ao longo da história do Ocidente, segundo os críticos do positivismo, experiências sociais muitas vezes trágicas, a exemplo dos arbítrios cometidos contra a humanidade pelos regimes totalitários do século XX, legitimados por uma ordem jurídica válida, mas injusta. A certeza e segurança são, de fato, essenciais para a consecução da justiça, mas a positivação não pode ser suficiente, já que o sistema normativo está em constante mudança, exigindo a apropriação de novos valores e fatos na experiência jurídica de maneira intensa.
Após a Segunda Guerra Mundial, durante o processo de Nuremberg, a ideia que preponderou entre os julgadores foi a de que os crimes cometidos pelos dirigentes da Alemanha nazista não podiam escapar à justiça, mesmo na ausência de disposições legais expressas, a menos que fossem consideradas tais as regras do direito internacional público. O problema era que devia ser respeitada a máxima de que não há crime sem lei prévia que o defina, a fim de que fosse feito um julgamento coerente. A solução encontrada foi a de defender a existência de um princípio geral reconhecido pelas nações civilizadas, concernente ao respeito da dignidade da pessoa humana. A partir desta postura, os tribunais em todo o mundo passaram a recorrer com frequência cada vez maior e mais abertamente aos princípios gerais do direito.

3.3- “Descoberta” da tópica e a nova retórica jurídica.

Desde o fim das atrocidades ocorridas na Segunda Guerra Mundial, os juristas passaram a trazer os valores como base das suas formulações, embora não se tenha abandonado completamente a perspectiva sistemática do juspositivismo, num movimento impulsionado pela utilização das fórmulas persuasivas chamadas de topoi. Trata-se de um rol de lugares-comuns da argumentação jurídica, válidas para todos os envolvidos no processo, ou presentes no auditório. Esta busca pelo justo foi, indiscutivelmente, o principal objeto de investigação da ciência jurídica na segunda metade do século XX, cabendo à jurisprudência mostrar suas possibilidades de uso a fim de se chegar a uma resposta mais próxima da correção e da justiça.
Theodor Wiehweg (1907-1988) foi o “descobridor” da tópica moderna. Na verdade, a tópica foi formulada desde a Antiguidade. Mas foi Wiehweg, após descobrir uma biblioteca escondida dentro de um claustro, que iniciou uma minuciosa pesquisa que teve como produto final Tópica e Jurisprudência (publicado em 1953), apresentado à Universidade de Munique para obtenção do título de livre-docência. O autor se reporta à scientiarum instrumenta, portanto, aos métodos científicos, dos quais Vico caracteriza ao antigo método conhecido como retórica (tópica). Esse método antigo tem como o ponto de partida o senso comum, que procede por verossimilhança, alterna pontos de vista segundo os cânones tópica retórica e, em particular, atua principalmente com quantidade de silogismos.
Wiehweg entende que a tópica jurídica se trata de uma técnica do pensamento que está orientada para o problema a ser resolvido juridicamente. Mas não se trata de qualquer problema jurídico, mas do que o jurista chama de aporia, que indica questão que se coloca e a qual não se esclarece, significa uma “falta de um caminho”. A tópica pretende, portanto, proporcionar orientações sobre o modo como se deve comportar numa determinada situação em que não se queira ficar sem uma resposta satisfatória.
O pensamento tópico trouxe à tona uma discussão mais profunda do que a crítica ao positivismo. Wiehweg ataca o próprio pensamento sistemático do Direito, construído desde as formulações jusnaturalistas racionalistas. Para Atienza, Viehweg exagera na contraposição entre pensamento tópico e pensamento sistemático (lógico-dedutivo), já que não propõe um modelo que possa substituir o sistemático. Para o referido autor, “afirmar que a jurisprudência deve buscar soluções justas a partir de conceitos e proposições extraídos da própria Justiça. Mas isso só pode ser qualificado, na melhor das hipóteses, como uma trivialidade que, evidentemente, não contribui muito para fazer avançar a jurisprudência”
Uma das críticas mais contundentes feita ao pensamento tópico foi a de Canaris. Este autor aponta as insuficiências da Tópica, mas reconhece que ela tem, sim, utilidade para o Direito. Embora a Tópica não possa abarcar eficazmente o fundamento a estrutura da Ciência do Direito, há, no entanto, áreas nas quais ela tem uma função legítima a desempenhar. Para Canaris, quando surge a falta de valorações legais durante a atividade jurídica, não havendo, portanto, espaço para o pensamento sistemático, é que a Tópica se mostra importante. Em suma, a oposição entre o pensamento sistemático e a tópica não é, assim, exclusivista. Há entre as formas de pensamento uma complementariedade.
De qualquer forma, deve-se reconhecer que no pensamento da tópica jurídica inaugurada por Viehweg, apesar de não fornecer uma base sólida sobre a qual se possa edificar uma teoria da argumentação jurídica, há o mérito fundamental de ter descoberto um campo para a investigação. Um dos que aprofundou a contribuição de Wiehweg, foi o belga Chaïm Perelman.
Na verdade, Perelman foi um dos percussores da valorização da linguagem e argumentação na ciência jurídica. Para ele, deve-se partir da premissa de que o contato dos espíritos exige uma linguagem comum que possa ser compreendida pelos ouvintes, que lhes seja mesmo familiar. Percebe, na linha de Wiehweg, que na práxis jurídica (e argumentativa no geral) o que ocorre é uma tentativa de persuasão do auditório destinatário. Nenhum problema ocorre ao orador caso se dirija a ouvintes que têm a mesma formação profissional, religiosa, etc. Mas o grande desafio ocorre quando o meio é desconhecido, ou se procura obter a adesão de um auditório não especializado.
Destarte, Perelman traça algumas regras argumentativas para persuadir o auditório. O primeiro ponto é conhecê-lo. Mais precisamente, conhecer as teses que ele admite que sirvam de base para argumentação. É importante frisar que não só conhecer quais são as teses admitidas pelos ouvintes é fundamental, mas também a intensidade da adesão do auditório. Na prática argumentativa, prevalecerá a tese à qual se confere maior peso, à qual se adere com maior intensidade. Ressalta Perelman que “vincular uma argumentação a premissas às quais se concede uma adesão apenas de fachada é tão desastroso como pendurar um quadro pesado a um prego mal fixado à parede: tudo corre o risco de vir abaixo”.
A importância de Wiehweg e Perelman para o presente estudo é crucial. Eles buscaram um rompimento da proposta positivista kelseniana de separar a Moral (consequentemente, os valores da religião) do fenômeno jurídico. Para Perelman, especificamente, o positivismo além de tentar eliminar do Direito toda referência à Justiça, entende que ele é a expressão arbitrária da vontade do soberano, valorizando a coação como o que caracteriza o Direito, esquecendo de que para funcionar com eficácia o Direito deve ser aceito, e não apenas imposto por meio da coação, como comprova a insatisfação geral que marcou as grandes revoluções.
Não estamos inferindo que simplesmente superou-se o positivismo. Mas, certamente, provocou-se uma mudança na postura positivista. Para Perelman, o discurso religioso tinha papel importante na práxis argumentativa. Ele, entretanto, não vislumbra uma volta ao jusnaturalismo teológico prevendo que o discurso religioso deva vincular a persuasão do auditório, não levando a nenhuma decisão concreta, mas serve para fortalecer os valores, criando, entretanto, uma disposição preliminar, essencial para orientar certas escolhas futuras.
A crítica que se faz a Perelman é ele que traça como pressuposto argumentativo o equilíbrio entre opiniões contrapostas, que se associa à noção de racionabilidade, pode sempre ser conseguido. Nem sempre isso será conseguido. Inclusive o Direito tem a função de jurisdição, ou seja, pressupõe muitas vezes um desarcordo, expectativas contrárias. O que se conhece como casos difíceis (hard cases) é um exemplo disso. Neles a opinião pública está notadamente dividida de maneira tal que não é possível tomar uma decisão capaz de satisfazer a uns e a outros. Perelman, portanto, não chega a propor critérios adequados para a solução dos casos difíceis.

3.4- A pós-modernidade e as linhas contemporâneas do pensamento jurídico.

A modernidade é uma construção que envolve todas as áreas do conhecimento humano e teve suas bases lançadas no contexto do Iluminismo, espalhando-se por todo o Ocidente desde então. O ideal da modernidade consiste numa formação social que multiplica sua capacidade produtiva através do desenvolvimento técnico e científico, de modo que as necessidades sociais possam ser preenchidas, com o uso mais rigoroso e sistemático da razão, libertando a humanidade da irracionalidade dos mitos, das superstições, das religiões.
A perspectiva pós-moderna é, por sua vez, uma formulação filosófica que tem por meta indicar a falência das promessas modernidade, quais seja, a liberdade, o progresso, a igualdade, e a felicidade acessíveis a todos. Chegou-se à conclusão de que ao direito moderno foi atribuída a tarefa de assegurar a ordem exigida pelo capitalismo e a verdade é fruto da interpretação, do processo comunicativo, e não mais fruto de uma Razão universal atingível através da neutralidade científica.
A racionalidade, na pós-modernidade, é inserida no processo comunicativo. “A verdade resulta do diálogo entre atores sociais. Essa nova razão brota da intersubjetividade do cotidiano, operando numa tríplice dimensão. A racionalidade comunicativa não só viabiliza a relação cognitiva do sujeito com as coisas (esfera do ser), mas também contempla os valores (esfera do dever ser) e emoções (esfera das vivências pessoais).”
O direito, sob a influência do pós-modernismo, passa a ser plural, reflexivo, prospectivo, discursivo e relativo. Plural, pois cada vez mais surgem microssistemas jurídicos, como o direito do consumidor. Reflexivo, pois “já não se concebe o ordenamento jurídico com um sistema hermético, mas como uma ordem permeável aos valores e aos fatos da realidade cambiante.” Prospectivo, pela textura aberta dos dispositivos, exigindo do legislador a necessidade de descrever nos textos normativos os cânones hermenêuticos e as propriedades axiológicas, os contornos da tutela da pessoa humana e os aspectos centrais da identidade cultural que se pretende proteger. Discursivo, já que o direito é uma manifestação da linguagem humana, “a realização do ordenamento jurídico exigem o uso apropriado dos instrumentos lingüísticos da semiótica ou semiologia” , devem-se buscar as significações do direito no contexto de interações comunicativas. E finalmente é relativo, já que não se podem conhecer verdades jurídicas absolutas.
Em relação ao pensamento religioso, a pós-modernidade trouxe uma mudança de perspectiva em relação ao modelo proposto pelo Iluminismo. Este apontava para um individualismo radical que tinha seu enfoque no sujeito auto-reflexivo, autodeterminante, e autônomo que se situa fora de toda tradição ou comunidade. Por mais que o cristianismo tenha um discurso voltado ao indivíduo, a vida em comunidade, e não o indivíduo é o enfoque da maioria das religiões. Desta forma, o pós-positivismo, apesar de não propor que exista uma verdade absoluta, não nega o valor das tradições, pré-compreensões, na atividade científica.
Não estamos querendo afirmar que o pós-modernismo é uma volta ao pensamento teológico, longe disso. Mas a postura pós-moderna sobre a ciência, a epistemologia, contra a neutralidade científica, dá para o pensamento religioso uma abertura à discussão pública. Ressalte-se, entretanto, que as religiões são cosmovisões que têm a pretensão de verdade exclusiva, o que a coloca em total oposição ao conceito de verdade pós-moderna.
A pós-modernidade, juntamente com as críticas trazidas por Perelman, Wiehweg, de que a ciência jurídica deveria ter como método o pensamento problemático, e não o sistemático, fez com que o positivismo jurídico e o constitucionalismo de cunho iluminista passassem por grandes reformulações.
O novo paradigma proposto - pós-positivismo - concebe a ordem jurídica como um sistema plural, dinâmico e aberto aos fatos e valores sociais. Tal postura gerou uma mudança à maneira como o positivismo concebia os valores. Estes deixaram de ser simples normas secundárias na hora da decisão, para se tornarem normas que fundamentam o ordenamento, passando a vincular a atuação do juiz e de todo agente público. O pós-positivismo, desta forma, amplia o status de norma, que até então era exclusiva das regras prontas, aos princípios jurídicos. Estes são fruto do pluralismo e marcado pelo seu caráter aberto, que é justamente uma extensão do ideal pós-moderno no direito. Esta nova teorização é avessa à lógica que governa a aplicação das regras e à hierarquização, características do positivismo.
Tal mudança de perspectiva estabeleceu ao Estado um dever de proteção dos direitos fundamentais, independentemente de quem seja seu destinatário. Diante deste, fica o Estado obrigado a proteger os direitos fundamentais mediante prestações normativas (normas) e fáticas (ações concretas) Com o pós-positivismo há uma obrigação, por parte do jurista, de não mais de apenas revelar a vontade da lei, mas projetar uma imagem, corrigindo-a, adequando-a aos princípios de justiça e aos direitos fundamentais. Sendo que quando essa correção ou adequação não for possível, só lhe restará demonstrar a inconstitucionalidade da lei.
No campo do neoconstitucionalista, uma das principais consequências deste novo entendimento foi a de que os princípios – forma jurídica da maioria dos direitos fundamentais – devem irradiar para todo o ordenamento, vinculando a atuação de todo os órgãos de direção política (Executivo e Legislativo), sendo que, inclusive, as normas programáticas passam a ser vinculativas, a despeito de sua abertura ou indeterminabilidade.
Essas novas linhas do pensamento jurídico de caráter aberto, discursivo, fez com que, nos últimos anos, viessem à público vários questionamentos e reivindicações por parte de diversos setores da sociedade. Este fenômeno foi tão rápido que nem o próprio Legislativo não está conseguindo acompanhá-lo com êxito, fazendo com que o Judiciário, por muitas vezes, passe a uma posição ativa nas decisões políticas. Questões que antes eram tabus vieram a integrar as discussões públicas , e o objetivo deste trabalho é levantar a importância das questões envolvendo o princípio da laicidade. Malgrado já ter ocorrido alguns julgamentos sobre o tema, o tema ainda é muito controverso, principalmente por envolver questões limites com a proteção à cultura, à memória e à história do Brasil.
Sem querer adentrar na discussão entre Alexy e Dworkin sobre a possibilidade de respostas corretas em direito, fundados na idéia de abertura do discurso da pós-modernidade, concluímos que existem alguns limites para o discurso da laicidade que não podem ser violados, sob pena se comprometer os objetivos do Estado de Direito. É importante que se frise que tal laicidade não pode ser confundida com a proposta do republicanismo secularista que pretendia retirar a influência religiosa do contexto público.
Além das linhas de pensamento jurídico citadas nos capítulos anteriores, encerraremos o presente capítulo analisando mais duas linhas que tentam promover a marginalização do pensamento religioso com o intuito de não se possa confundir laicidade com laicismo, ou secularismo. São elas, a teoria jurídica homossexual e o novo ateísmo.
A primeira tem como base a ideia na qual o matrimônio não possui qualquer fundamento ontológico, devendo-se retirar dele apenas os valores da amizade, do companheirismo, da intimidade, da confiança, entre outros. Do mesmo modo, outra base de tal pensamento é que as instituições sociais são apenas criações sociais e estaduais e não reflexos de uma qualquer ordem ontológica da criação pré-existente, com acolhimento no direito natural.
Sem querer desmerecer a luta travada pelos defensores de tal teoria, mas deve-se olhar com cuidado algumas das propostas feitas, pois elas podem resvalar em marginalização e silenciamento dos argumentos religiosos, do próprio direito fundamental à liberdade religiosa. Assim como qualquer minoria que busca seus direitos, a teoria homossexual tenta proibir a liberdade de expressão religiosa sobre essas matérias.
Um exemplo da proposta da referida teoria está no Projeto de Lei 122/2006, conhecido como a Lei da Homofobia. Esta lei trata da homofobia em diversas situações, entre elas a trabalhista, a fiscal, etc. O ponto de choque com a liberdade religiosa ocorre é que o projeto de lei quer criminalizar condutas nas quais podem se enquadrar claramente a atividade religiosa (privada ou pública), como por exemplo: “impedir ou restringir a expressão e a manifestação de afetividade em locais públicos ou privados abertos ao público, em virtude das características previstas no art. 1º desta Lei; (...) proibir a livre expressão e manifestação de afetividade do cidadão homossexual, bissexual ou transgênero, sendo estas expressões e manifestações permitidas aos demais cidadãos ou cidadãs”. Sabemos que a presente questão é tema para outro trabalho monográfico, mas, apenas a título de reflexão, caso tal lei seja sancionada, as religiões estariam proibidas de ensinarem que o homossexualismo é uma conduta desaprovada, de acordo com a Bíblia. Ou seja, imagine-se que um Pastor ou Padre, por exemplo, podem ser, caso a lei seja aprovada nos termos propostos, processados por citarem versos bíblicos em seus púlpitos.
Reitere-se que todas minorias devem encontrar proteção num Estado que se diz pluralista. Reiteramos que não somos aqui contrários ao projeto da Lei da Homofobia. A homofobia é, sem dúvida, uma atitude que transgride os direitos humanos e deve ser extirpada da sociedade. Mas para tanto, não se pode simplesmente sacrificar a liberdade de expressão dos grupos religiosos, classificando-a como crime de opinião.
Já para o novo ateísmo não existe qualquer fundamento metafísico para as noções de Homem, direito, e direitos humanos. Este movimento tem como propósito a destruição de todo o lastro judaico-crsitão que está na base dos direitos fundamentais. A religião, para os defensores do novo ateísmo, é percebida como raiz de todos os males e a causa de todos os conflitos ao longo da história.
Para os novos ateístas, a solução para os problemas do mundo está numa nova intolerância religiosa, exemplificada na posição de Dawkins sobre a educação religiosa das crianças. Ele entende que ensinar religião para elas pode ser equiparada ao abuso sexual de menores, e o ensino da doutrina da criação deve ser liminarmente proibido no espaço público. O que, à princípio, pareçe um discurso de proteção à liberdade religiosa individual feito por Dawkins , quando diz:

Num capítulo anterior, generalizei o tema da conscientização, começando pela conquista das feministas de fazer com que fiquemos incomodados ao ouvir um termo como homens de boa vontade em vez de pessoas de boa vontade. Aqui quero conscientizar de outra maneira. Acho que todos nós devemos nos sentir incomodados quando ouvirmos uma criança pequena sendo rotulada como pertencente a uma ou outra religião específica. Crianças pequenas são jovens demais para tomar decisões sobre suas opiniões a respeito da origem do cosmos, da vida ou da moral. O simples som do termo criança cristã ou criança muçulmana deveria soar como unhas arranhando uma lousa.

não passa de uma tentativa de marginalizar a religião, colocando-a como um fato histórico, sem influência, sem qualquer utilidade para a sociedade, quando diz que:

Não vou martelar o assunto. Provavelmente já disse o suficiente para convencer pelo menos meus leitores mais velhos de que uma visão de mundo ateísta não é justificativa para excluir a Bíblia, e outros livros sagrados, de nossa educação. E é claro que podemos manter uma lealdade sentimental às tradições culturais e literárias, por exemplo, do judaísmo, do anglicanismo ou do islã, e até participar de rituais religiosos como casamentos e enterros, sem aderir às crenças sobrenaturais que historicamente acompanham essas tradições. Podemos abrir mão de acreditar em Deus sem perder contato com uma história valiosa.

Existem outros defensores eminentes do novo ateísmo como Peter Singer , Christopher Hitchens , que mereceriam um tramento mais adequado. Mas o que importa destacar aqui é que o desprezo contra a religião no campo político não é algo novo. A atitude encontrada nas obras dos defensores no novo ateísmo foi colocada em ação por algumas vezes na história da humanidade. E em todas elas foram acompanhadas de genocídios e destruição das estruturas da sociedade. Além das guerras como a dos Trita Anos, II Guerra Mundial, alguns estadistas como Stalin, Mao Tsé-Tung, Pol Pot, são exemplos da do que a intolerância religiosa aplicada ao Estado pode fazer.
É de se reconhecer que a religião, por sua vez, foi, e ainda é responsável por inúmeros massacres em todo o mundo. Entretanto, o que se quer destacar no presente trabalho é que, pela importância dela na vida das pessoas, a liberdade de religião deve ser protregida através da postura laica do Estado. No caso brasileiro e Ocidental, o cristianismo serviu de inspiração para as bases das construções jurídicas mais modernas, como, por exemplo, o paradigma da dignidade da pessoa humana que se reflete em todo o ordenamento. Independente da cosmovisão dominante em cada época histórica, em cada região, o jurista deve ter sempre em mente a importância de proteger a religião como um meio de realizar cada vez mais o valor da dignidade da pessoa humana, valor-fonte de todos os demais valores jurídicos.

4- CONCLUSÕES

Desde a antiguidade, o pensamento jurídico e religioso teve uma estreita relação. Sendo que, até o surgimento das grandes civilizações, não se podia vislumbrar a diferença entre elas. Foi com os gregos que surgiram as primeiras formulações sobre a distinção fundamental entre o justo por natureza e o justo por convenção. O que se convencionava, portanto, deveria refletir a justiça cosmológica. Com o avançar dos séculos, o cristianismo foi quem propôs uma separação entre a religião e o Estado, baseando sua doutrina numa ética na qual se via todos os seres humanos como iguais. Esta visão fez com que o evangelho messiânico se espalhasse tão rapidamente, que acabou sendo incorporado ao Estado Romano, que por sua vez, após o seu fim, teve um herdeiro durante a Idade Média: a Igreja Católica Apostólica Romana.
Durante o medievo, a Igreja, apesar do poder temporal dos príncipes, tinha a autoridade final sobre todos os tipos de conhecimentos (inclusive o jurídico) já que se julgava a representante de Deus na terra e buscava conformar toda a realidade à teologia cristã. Tal domínio gerou uma insatisfação tanto dos príncipes quanto dos religiosos. Com a Reforma Protestante, houve uma quebra da unidade cristã na Europa, surgindo, consequentemente, diversos conflitos e guerras religiosas. Tal cenário, juntamente com as formulações do jusnaturalismo racionalista, formaram a base intelectual para o surgimento dos Estados Modernos.
Pode-se perceber que até aqui o pensamento jurídico e religioso estão intimamente relacionados. Tal aproximação foi rompida com o fortalecimento do Iluminismo, que tinha na Razão um substituto para a religião, já que esta se mostrava instável, e fonte de guerras e disputas. A partir da Revolução Francesa, o republicanismo laicista radical dos jacobinos tentou retirar toda influência religiosa do meio público, o que acabou não se concretizando formalmente em França. Mas é importante frisar que o pensamento jurídico e religioso, a partir de então, passaram a ser tratados distintamente. Desde a Escola da Exegese, tendo como base a Razão Humana, passou-se a se construir um sistema jurídico cada vez mais sofisticado e afastado dos valores (inclusive religiosos), processo que teve como ápice o positivismo jurídico.
Após a II Guerra Mundial, os juristas fizeram críticas ferrenhas ao positivismo, já que este tenta afastar a justiça do fenômeno jurídico, ou seja, permite que líderes inescrupulosos possam legitimar seus regimes juridicamente através do positivismo. Neste desiderato, com o resgate da tópica grega, e a contribuição da Nova Retórica de Perelman, a ciência jurídica passa a se voltar para o discurso, a argumentação, sem deixar completamente - é importante que se diga - a ideia de sistema. Esta mudança de paradigma atinge seu ponto alto através das críticas feitas pelos filósofos da pós-modernidade à Modernidade iluminista. Esta entende que é possível conhecer verdades científicas, através da Razão. Mas para pós-modernidade ela será dialógica, ou seja, as verdades são construídas através da interação dos atores sociais, que trazem em si toda uma carga valorativa. Desta forma, o conhecimento científico não pode ser neutro.
No campo jurídico, tal mudança de postura gerou a proposição dos neo-constitucionalistas no sentido de se “positivar os valores”, fato este que representou um avanço à perspectiva do positivismo jurídico. Os princípios deixaram de ser simples critérios secundários na hora da decisão, para se tornarem normas que fundamentam o ordenamento, passando a vincular a atuação do juiz e de todo agente público.
O posicionamento laicista radical tem sido responsável, em várias épocas, por propostas e tentativas no sentido de se restringir a prática religiosa individual e coletiva. Deve-se, portanto, reconhecer a importância do pensamento religioso para a sociedade, sendo um meio de coesão de pacificação, formulando proposições jurídicas que tenham uma concepção de liberdade religiosa e laicidade que levem a sério a consciência individual e as convicções e práticas religiosas. Tudo isso, evidentemente, sem comprometer o essencial dos princípios do Estado Constitucional

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