Relatório técnico interprofissional no processo de apuração de ato infracional: meio de prova ou de informação?


Pormarina.cordeiro- Postado em 21 março 2012

Autores: 
NASSRALLA, Samir Nicolau

Na unidade de internação provisória, o adolescente passa por uma entrevista e avaliação técnica para situar as condições familiares e sociais. Muitas vezes, acaba sendo indagado sobre a prática do ato infracional sem a presença do defensor, promotor ou juiz.

 
Sumário: 1 – Relação do tema com as funções institucionais da Defensoria Pública do Estado; 2 – Fundamentação jurídica e alcance do relatório técnico interprofissional; 3 – Conclusão. Referências.
ASSUNTO: Tema afeto ao direito da infância e juventude. Área Infracional. Direito Penal Juvenil. Relatório Técnico Interprofissional. Devido Processo legal. Igualdade Processual. Prova Ilícita. Direito ao Contraditório e Ampla Defesa. Direito a não auto-incriminação. Nulidade Processual.
1 - RELAÇÃO DO TEMA COM AS FUNÇÕES INSTITUCIONAIS DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO:
Tanto a Lei Complementar 80/94 em seu art. 4º, inciso XI, quanto a Lei Complementar Estadual 988/2006, no art. 5º, inciso VI, alínea "c", que instituiu a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, prevêem como sua função institucional o exercício de defesa dos interesses individuais e coletivos da criança e do adolescente.
2 - FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA E ALCANCE DO RELATÓRIO TÉCNICO INTERPROFISSIONAL
O Estatuto da Criança e do Adolescente, atento à necessidade de se apurar os diversos fatores e as circunstâncias pessoais dos adolescentes em conflito com a lei, estabeleceu a necessidade de elaboração de estudo técnico por equipe multiprofissional, através da emissão de laudos a serem juntados no processo de apuração de ato infracional, a fim de auxiliar na atividade jurisdicional. É o que dispõe a seguinte norma:
Art. 151 -  Compete à equipe interprofissional dentre outras atribuições que lhe forem reservadas pela legislação local, fornecer subsídios por escrito, mediante laudos, ou verbalmente, na audiência, e bem assim desenvolver trabalhos de aconselhamento, orientação, encaminhamento, prevenção e outros, tudo sob a imediata subordinação à autoridade judiciária, assegurada a livre manifestação do ponto de vista técnico.
Na prática, tais relatórios são elaborados em conjunto por psicólogos ou assistentes sociais integrantes da equipe da unidade de internação provisória de adolescentes ou responsáveis pelo acompanhamento de medidas socioeducativas em meio aberto. Tais estudos são encaminhados previamente ao Juízo responsável e competente para o julgamento do suposto ato infracional praticado, antes da prolação da sentença.
Tal direcionamento legal decorre da necessidade de que a decisão a ser tomada pelo magistrado na escolha da melhor medida socioeducativa a ser aplicada deve levar em conta outros fatores, como a realidade social, familiar, econômica, cultural, daquele determinado indivíduo em desenvolvimento, atentando-se para a excepcionalidade da segregação de sua liberdade. É que a medida socioeducativa deve ser norteada pelo princípio da atualidade e da proporcionalidade, ou seja, deve levar em conta as atuais circunstâncias e condições de desenvolvimento do adolescente, conforme se extrai da leitura do ECA:
 
Art. 100. Na aplicação das medidas levar-se-ão em conta as necessidades pedagógicas, preferindo-se aquelas que visem ao fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários.
VIII – proporcionalidade e atualidade: a intervenção deve ser necessária e adequada à situação de perigo em que a criança ou o adolescente se encontram no momento em que a decisão é tomada; (Incluído pela Lei n.º 12.010, de 2009).
A melhor doutrina de SARAIVA ressalta a indispensabilidade de tais relatórios técnicos, mormente no que se refere aos casos de privação de liberdade:
O perfil interdisciplinar do processo de apuração de ato infracional decorre da própria aplicação da Doutrina da Proteção Integral. A existência de um laudo técnico, com a intervenção de operadores de outras áreas do conhecimento visa a dar condições ao Juiz de melhor decidir a questão e avaliar com segurança sobre a medida socioeducativa adequada, até porque deverá, fundamentadamente, explicitar os motivos da escolha da medida socioeducativa imposta (art. 112, §1º, e art. 122, §2º). [01]
Ocorre que, muitas vezes, tem-se observado na prática que o relatório técnico da equipe multiprofissional ingressa no mérito do cometimento ou não do ato pelo adolescente, bem como os motivos que o levaram a supostamente praticá-lo. Assim, dentro da unidade de internação provisória, o adolescente passa por uma entrevista e avaliação técnica, que além de situar as condições familiares e sociais do jovem, acaba por indagá-lo sobre a prática ou não do ato infracional (equiparado ao crime) de que é acusado, o que termina por constar expressamente no relatório técnico enviado ao Juiz, antes da audiência de apresentação (momento que seria adequado para que o adolescente apresente sua versão sobre os fatos, na presença de Defensor, Promotor e Juiz).
Ao que parece, tal questionamento, fora do âmbito do contraditório, sem a presença da defesa técnica e sem previsão legal, viola o direito da não auto-incriminação, previsto no Pacto de São José da Costa Rica. Saliente-se o fato de não haver previsão expressa no ECA, autorizando tal procedimento, que somente franqueia a livre manifestação "do ponto de vista técnico".
A expressão "livre manifestação do ponto de vista técnico", prevista no artigo 151 do Estatuto, deve ser compreendida em consonância com a finalidade legal, de modo a propiciar a avaliação das atuais condições sociais, psicológicas, físicas, familiares, econômicas do adolescente, que se submete à apuração de ato infracional. Neste sentido, entende-se que pode a equipe técnica, inclusive, recomendar o tipo de medida adequada à ressocialização do adolescente. No entanto, a análise da Lei não autoriza a interpretação de que tal relatório vá ao ponto de questionar ao representado acerca do cometimento ou não do ato infracional, como verdadeiro meio de prova, assemelhando-se ao interrogatório extrajudicial.
Aliás, também ao que parece, a própria obrigação ética do sigilo profissional impede que as informações prestadas pelo adolescente ao profissional de psicologia ou assistência social sejam repassadas formalmente ao Juízo de apuração.
A simples juntada de tal parecer aos autos, que muitas vezes aponta a confissão do jovem a respeito dos fatos, influencia precocemente e de forma irreversível a opinião do julgador, maculando os atos posteriores, inclusive a própria audiência de apresentação, ocasião em que, de fato, exerce seu direito de defesa pessoal. Assim, faz-se justa e necessária a nulidade dos atos posteriores, por derivação, determinando-se sua repetição através de oportuna impugnação, com base na conhecida teoria dos frutos da árvore envenenada. [02]
CURY ensina que:
A equipe não só assessorará o juiz, funcionando nas perícias e laudos, mas a lei de organização judiciária poderá atribuir-lhe outras funções. Como, p. ex., acompanhar as medidas de proteção, realizar tratamento social, orientar-se e supervisionar a família; promover o entrosamento dos serviços do juizado com os técnicos do Conselho Tutelar; acompanhar a execução das medidas sócio-educativas, etc. Quando atua processualmente, seus laudos podem ser impugnados, cabendo os mesmos princípios que informam a prova judiciária. Trata-se de garantia do princípio do contraditório (grifo nosso). [03]
A Constituição Federal é expressa no sentido de garantir a igualdade processual entre adolescentes e adultos, na qual prescreve:
Art. 227, § 3º O direito a proteção especial abrangerá os seguintes aspectos: IV – garantia de pleno e formal conhecimento da atribuição de ato infracional, igualdade na relação processual e defesa técnica por profissional habilitado, segundo dispuser a legislação tutelar específica;
Já o Pacto de São José da Costa Rica – Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969), dispõe sobre diversas garantias processuais, em especial o direito a não auto-incriminação, nos seguintes termos:
Artigo 8º - Garantias judiciais
2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:
g) direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada; e
3. A confissão do acusado só é válida se feita sem coação de nenhuma natureza.
Ainda sobre o tema da confissão, SARAIVA, citando um julgamento do Supremo Tribunal Federal, ressalta seu caráter relativo, ainda quando tomada em depoimento judicial, quanto mais se obtida por meio de relatório técnico. É o que se extrai do seguinte trecho:
É que não se pode atribuir valor absoluto à confissão, porque esta nem sempre é ditada por amor da verdade, como enuncia o Ministro Cezar Peluso, senão por motivos imagináveis, não raro patológicos, e por outros inimagináveis. (...) Pretender construir proposta de uma ação socioeducativa na idéia da confissão se faz de uma maneira "moderna" o reconstruir do modelo inquisitorial medieval, de natureza religiosa, onde a confissão se fazia imprescindível à remissão do pecado. O adolescente tem direito a calar e ninguém pode vir a ser obrigado a produzir prova contra si mesmo. Nem mesmo (ou especialmente) o adolescente em nome de um suposto projeto pedagógico. [04]
Assim, apesar do indispensável trabalho da equipe multiprofissional, para apuração das circunstâncias pessoais do adolescente a fim de iluminar o trabalho judicial, a indagação específica acerca do mérito do ato infracional neste momento do procedimento, por ausência de previsão legal, bem como pela ausência de Defesa Técnica no ato, fere o direito ao Devido Processo Legal, que deve nortear os processos de apuração de ato infracional.
III - CONCLUSÃO
Apesar da inexistência de dados estatísticos acerca da quantidade de relatórios técnicos elaborados com o questionamento acerca do cometimento ou não do ato infracional, é certo que a realidade prática da Defensoria Pública na tutela de adolescentes em conflito com a lei, tem demonstrado que muitas vezes o adolescente assume a prática do ato ilícito perante a equipe interprofissional e posteriormente nega tal fato em Juízo, quando da sua oitiva em audiência de apresentação, sendo tal instrumento erroneamente utilizado como verdadeiro meio de prova.
A título de exemplo, seria como se no processo penal, antes do interrogatório do réu, fosse colhida a versão dos fatos perante um psicólogo, que lançaria um parecer sobre o cometimento ou não do crime, funcionando como uma verdadeira "maquina da verdade".
Com efeito, ainda que impugnado após sua juntada, a declaração do adolescente acerca dos atos a si imputados que implica confissão, induz irreversívelmente o espírito tanto do órgão do Ministério Público, como do julgador, impedindo a produção das demais provas de forma livre e imparcial.
Caso não desentranhada tal prova ilícita, em tempo, sustenta-se que haja a nulidade dos atos posteriores, com a necessidade de sua repetição, agora de forma isenta.
Frise-se que não há diretrizes concretas e padronizadas nacionalmente acerca do formato ideal para elaboração dos relatórios técnicos pelas unidades de internação e a independência técnica dos profissionais da equipe e o desejo de melhor colaborar para melhor medida ao adolescente faz com que tais relatórios ingressem no mérito do cometimento ou não do ato infracional, o que flagrantemente exorbita da finalidade legal.
Portanto, o presente artigo tem por objeto provocar o questionamento acerca do alcance de tais relatórios técnicos interdisciplinares elaborados dentro dos processos de apuração do ato infracional pelas equipes das unidades de internação provisória ou responsáveis pela medida em meio aberto, em atenção ao princípio do Devido Processo Legal. Não se pode outorgar aos órgãos estatais excessivo ou ilimitado poder de apuração dentro do procedimento de apuração de atos infracionais, em detrimento aos direitos legais, constitucionais e normas internacionais de proteção dos adolescentes com sujeitos em desenvolvimento, sob o argumento de suposto projeto pedagógico.
A superação dos ultrapassados conceitos do "menorismo ou da situação irregular", em que o adolescente é mero objeto da intervenção do Estado, já há muito tempo cedeu espaço para a doutrina da proteção integral (Constituição Federal de 1988 e Estatuto da Criança e do Adolescente: art. 1º e 3º), em que é considerado com sujeito de direitos. A igualdade processual efetiva, sem dúvida, é um dos principais termômetros dessa mudança de mentalidade a ser constantemente buscada.
REFERÊNCIAS:
- PLANALTO. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em 21 de janeiro de 2012.
- PLANALTO. LEI Nº 8.069, DE 13 DE JULHO DE 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm>. Acesso em 21 de janeiro de 2012.
- CURY, Munir (Coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado. Comentários Jurídicos e Sociais. 10ª Ed. São Paulo: 2010.
- FILGUEIRAS, Isaura Meira Cartaxo. Teoria da Árvore dos Frutos Envenenados. Disponível em: < http://jusvi.com/artigos/29900>. Acesso em: 10 de agosto de 2011.
- SARAIVA, João Batista Costa. Direito Penal Juvenil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.
- TRATADO INTERNACIONAL PGE. CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (1969) (PACTO DE SAN JOSÉ DA COSTA RICA). Disponível em: < http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/.... Acesso em: 21 de janeiro de 2012.
Notas
SARAIVA. João Batista Costa. Compêndio de Direito Penal Juvenil. Adolescente e Ato Infracional. 4ª Ed. Porto Alegre: 2010, p. 257.
Tal teoria advém do direito norte americano a "fruits of poisonous tree", decorrendo do preceito bíblico de que a árvore envenenada não pode dar bons frutos, ou seja, a prova ilícita originária ou inicial contaminaria as demais provas decorrentes. Entretanto, esta teoria não é absoluta sob a ótica do Direito Americano havendo limitações a sua aplicação. A Constituição Federal de 1988 ao tratar sobre as provas ilícitas ou ilegítimas estabelece em seu art. 5°, inciso LVI, que são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos. (FILGUEIRAS, Isaura Meira Cartaxo. Teoria da Árvore dos Frutos Envenenados. Disponível em: < http://jusvi.com/artigos/29900>. Acesso em: 10 de agosto de 2011.
CURY, Munir (Coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado. Comentários Jurídicos e Sociais. 10ª Ed. São Paulo: 2010, p. 739.
SARAIVA. João Batista Costa. Compêndio de Direito Penal Juvenil. Adolescente e Ato Infracional. 4ª Ed. Porto Alegre: 2010, p. 248.