Releitura da fraude contra credores à luz da teoria da ineficácia relativa


Porvinicius.pj- Postado em 22 novembro 2011

Autores: 
PINHEIRO, Frederico Garcia

RESUMO: O presente artigo científico visa a ressaltar a importância de haver mecanismos eficazes no combate às condutas fraudulentas. Partindo dessa premissa, buscou-se demonstrar a viabilidade de se adotar a teoria da ineficácia relativa dos negócios jurídicos praticados em fraude contra credores stricto sensu (fraude pauliana) – que se contrapõe à tese clássica da anulabilidade. Outrossim, em se adotando a teoria da ineficácia relativa (ou inoponibilidade perante terceiros), chegou-se à conclusão de que a sentença que julga procedente o pedido formulado na ação pauliana é de natureza meramente declaratória.

PALAVRAS-CHAVE: fraude contra credores, teoria da ineficácia relativa, inoponibilidade perante terceiros, natureza jurídica da sentença, declaratória.


TITLE: A new notion of fraud against creditors based on the relative inefficiency theory

ABSTRACT: The present article intends to point out the importance of having efficient mechanisms against fraudulent conducts. Starting from this premise, it was sought to demonstrate the viability to adopt the relative inefficiency theory of juridical business practiced in fraud against strictu sensu creditors (paulinian fraud) – that opposes to the classical annulability thesis. Furthermore, in adopting the relative inefficiency theory (or inopobility towards third parties), it was concluded that the sentence which judges proceeding the formulated petition in the paulinian law suit is of simple declaratory nature.

KEY WORDS: fraud against creditors, relative inefficiency theory, inopobility towards third parties, sentence juridical nature, declaratory.


1 INTRODUÇÃO

                  A função primordial da normatização jurídica é permitir que haja vida em sociedade, melhor dizendo, é através da regulamentação das condutas toleradas, bem como das proibidas, que se torna possível obter “o equilíbrio social, impedindo a desordem e os delitos, procurando proteger a saúde e a moral pública, resguardando os direitos e a liberdade das pessoas” (DINIZ: 1999, p. 243).

                  O sistema jurídico tem a preocupação de traçar normas de conduta e, ao mesmo tempo, mecanismos eficazes para fazer com que tais normas sejam satisfatoriamente respeitadas por todos, pois, só dessa forma, se conseguiria atingir o seu objetivo principal – a pacificação social.

               Na esteira dessa idéia de que as normas jurídicas devem ser respeitadas indistintamente por todos, por vezes, há quem, além de praticar condutas ilícitas, tenta mascarar tal prática, objetivando se esquivar de deveres e obrigações, bem como evitar possíveis conseqüências jurídicas.  Tal atitude é denominada, genericamente, fraude.

               Independentemente do tipo de fraude – se contra terceiros ou contra a coletividade – o ordenamento jurídico, através da busca pela efetividade dos direitos, como não poderia deixar de ser, se preocupa em evitar a perpetuação das fraudes, estabelecendo regras e mecanismos sancionadores das condutas fraudulentas.

               Contudo, apesar dos mecanismos existentes para se barrar a prática de fraudes, a verdade é que quanto mais evoluída é a sociedade e a inteligência humana, mais se percebe a prática de fraudes, utilizando-se de meios com acentuada criatividade lesiva, fato esse que traz, por vezes, enormes dificuldades para que se possa reprimir tempestiva e eficazmente os danos advindos do ato fraudador.

 “De fato, enquanto o agente do ilícito comum atua às claras e, com isso, permite reação da vítima a tempo de defender seus direitos e de evitar a consumação do dano, o mesmo não se passa com o agente da fraude. Aqui, a vítima é surpreendida, em regra, quando a astúcia do defraudador conseguiu, às escondidas, consumar a lesão do patrimônio alheio, tudo sob a aparência de inocente exercício de direito. Nessa altura só resta ao lesado o socorro ao processo judicial para invalidar o ato fraudulento. Para complicar mais a situação, constata-se que, como fruto de inteligência preordenada à ilicitude, a fraude sempre corresponde a uma preocupação do causador do dano de agir com cautela e segurança para encontrar na aparência de ato jurídico perfeito a principal barreira à defesa da vítima.” (THEODORO JÚNIOR: 2001, p. 61-62)

                  Diante desse quadro apresentado, o direito deve estar sempre em evolução, atualizando-se, de modo a munir as vítimas e o Judiciário de mecanismos para que se possa, em combatendo a fraude, dar efetividade às normas jurídicas. Todavia, o recém vigente Código Civil trilhou caminho retrógrado ao disciplinar a fraude contra credores stricto sensu (fraude pauliana), haja vista que a manteve disciplinada no mesmo título referente aos defeitos dos negócios jurídicos, a tratando como causa de anulabilidade.

                  A melhor doutrina, afastando-se de uma interpretação meramente gramatical do Código Civil, vem sistematizando a teoria da ineficácia relativa, a qual já fora adotada, inclusive, em alguns julgados de tribunais pátrios. Segundo entendemos, a referida teoria se mostra a mais adequada como medida de repulsa à fraude pauliana.

                  Noutro giro, dentre os adeptos de tal teoria progressista, há ainda divergências quanto à natureza jurídica da sentença que julga procedente o pedido na ação pauliana, havendo quem entenda tratar-se de uma sentença constitutiva e, outros que advogam ser uma sentença de cunho meramente declaratório.

2 fraude contra a coletividade e fraude contra terceiros

                  Conforme já mencionamos, existem duas espécies de fraude, a fraude que atinge toda a coletividade – também denominada fraude à lei – e a fraude comum, cujos lesionados são terceiros determinados ou, ao menos, determináveis.

                  Na fraude comum, contra terceiros, o ato fraudador em si, extrinsecamente, não contém nenhum vício, contudo, a fraude se localiza nos efeitos colimados pelo referido ato, pois visam lesar interesses de terceiros. A finalidade precípua do ato é adquiri vantagens, em detrimento de interesses de terceiros, mediante a prática de um ato aparentemente lícito, em outras palavras, a ilegalidade não está no ato em si, formalmente considerado, mas sim na finalidade colimada com o ato.

                  Por seu turno, na fraude à lei a ilicitude é encontrada no próprio ato em si. O ordenamento jurídico proíbe a prática do ato, independentemente dos efeitos que, eventualmente, venha produzir.

“Na fraude à lei [...] a ilicitude está no íntimo do próprio negócio jurídico, que, de maneira alguma, poderia ter sido realizado, já que sua prática esbarra numa vedação de ordem pública. O cônjuge adúltero está proibido de doar à concubina. Para fugir da proibição, simula uma compra e venda. O ato é nulo porque não houve realmente compra e venda, mas doação, que é, na espécie, interditada por mandamento legal de ordem pública. É certo que alguém pode e deve ter sido prejudicado pela referida liberalidade, fraudulentamente realizada. Mas a essência da fraude, in casu, não está nesse prejuízo, que a rigor nem precisa ser investigado ou provado. A ineficácia do ato fraudulento está no ultraje maliciosamente cometido contra a vedação legal de ordem pública.” (THEODORO JÚNIOR: 2001, p. 63)

                  Logicamente, a fraude à lei é mais grave do que a fraude contra terceiros (fraude comum), haja vista a potencialidade lesiva daquela ser a coletividade como um todo, e não um ou outro terceiro prejudicado. Exemplo típico de fraude à lei é a simulação, erigida pelo vigente Código Civil a causa de nulidade absoluta.

                  No regime civil, a fraude comum contra terceiros pode ser classificada como fraude contra credores, que em sentido lato engloba quatro espécies: fraude contra credores stricto sensu (fraude pauliana), fraude à execução, fraude à penhora. As três espécies já se encontram tradicionalmente reguladas pelo direito pátrio há tempos.

                  Alexandre Freitas Câmara (2004, p. 221) traça um interessante e didático paralelo entre as três espécies de fraude contra credores lato sensu, vejamos:

 “Verifica-se, assim, a existência de uma ‘escalada’ de situações, quanto ao nível de gravidade, entre as diversas modalidades de fraude. Da menos grave (fraude pauliana, onde se exige a redução do devedor à insolvência e o elemento subjetivo da fraude), passando pela fraude de execução (onde apenas o elemento objetivo, insolvência do devedor, é exigido), até chegar-se à modalidade mais grave (alienação de bem penhorado, onde nem mesmo a insolvência do devedor é requisito da fraude).”

                  No que tange especificamente à diferença entre a fraude pauliana e a fraude de execução, Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery (2005, p. 251-252), sintetizam alguns pontos que as diferenciam:

“[a fraude de execução] consiste na alienação ou oneração de bem do devedor, na pendência de ação judicial capaz de levá-lo à insolvência. Essa ação pode ser de conhecimento ou de execução. O devedor tem ciência de que pende ação contra ele, mas, mesmo assim, aliena ou onera o bem, fraudando a execução. É ato atentatório à dignidade e à administração da justiça, muito mais grave do que a fraude pauliana. Na fraude contra credores [fraude pauliana] o prejudicado direto é o credor; na fraude de execução o prejudicado imediato é o Estado-juiz. A existência de fraude de execução enseja a declaração, pura e simples, da ineficácia do negócio jurídico fraudulento, em face da execução (Araken, Coment. CPC, VI, n. 98, p. 225). Não há necessidade de ação autônoma nem de qualquer outra providência mais formal para que se decrete a ineficácia de ato havido em fraude e execução. Basta ao credor noticiar na execução, por petição simples, que houve fraude de execução, comprovando-a, para que o juiz possa decretar a ineficácia do ato fraudulento. Nesse caso pode o juiz determinar que a penhora recaia sobre o bem de posse ou propriedade de terceiro, porque o bem vai responder pela obrigação executada. O bem continua na posse ou propriedade do terceiro, mas para a execução a oneração ou alienação é ineficaz. O bem, no patrimônio do terceiro, responde pela execução: o produto de sua alienação em hasta pública é revertido para satisfazer o crédito e o que sobejar retorna ao terceiro, proprietário do bem. Ao contrário do que ocorre com a fraude pauliana, a fraude de execução pode ser alegada e reconhecida nos embargos de terceiro.”

                  Complementando as lições supra, mister consignar que o Superior Tribunal de Justiça tem entendido que em quaisquer dos casos de fraude contra credores lato sensu é necessária a presença de má-fé por parte do terceiro-adquirente, em que pese a lei somente a ter exigido expressamente em se tratando de fraude contra credores stricto sensu (fraude pauliana).          

                  Outrossim, ressaltamos que, doravante, evitaremos o emprego da expressão “fraude contra credores”, visando não confundir o leitor, haja vista a existência da acepção lato sensu e stricto sensu da referida expressão. Optamos, assim, pela utilização do termo “fraude pauliana” quando quisermos nos referir à “fraude contra credores stricto sensu”.

3 Fraude Pauliana

3.1 Da Natureza Jurídica da Fraude Pauliana

                  A fraude pauliana é disciplinada pelo Código Civil como sendo um dos “defeitos do negócio jurídico”. Enquanto os demais vícios do negócio jurídico são classificados pela doutrina como sendo vícios de consentimento, a fraude pauliana (ou, simplesmente, “fraude contra credores”) por seu turno, é tida como vício social. Nesse sentido:

“A fraude contra credores não conduz a um descompasso entre o íntimo querer do agente e a sua declaração. A vontade manifestada corresponde exatamente ao seu desejo. Mas é exteriorizada com a intenção de prejudicar terceiros, ou seja, os credores. Por essa razão é considerada vício social.” (GONÇALVES: 2005, p. 410)

                  Mediante os negócios praticados em fraude pauliana, o devedor busca furtar-se do cumprimento de obrigações perante terceiros – credores, tendo em vista que “dilapida” seu patrimônio antes de incorrer em insolvência.

                  Quaisquer dos defeitos do negócio jurídico, previstos no Código Civil, são, em última análise, atos ilícitos. Com base na melhor doutrina, os atos ilícitos podem ser classificados em quatro categorias distintas, segundo seus efeitos ou sanções, a saber: a) caducificantes; b) invalidantes; c) autorizantes; d) indenizantes.

                  Desses atos ilícitos, somente os indenizantes é que têm como pressuposto o dano; nos demais, o dano não é essencial à verificação da ilicitude, sendo o dano, tão-somente, elemento acidental à verificação da ilicitudade, conforme doutrina Eduardo Ferreira Jordão (2006, p. 100), baseada nas lições de Felipe Peixoto Braga Netto, in verbis:

“O dano [...] não é pressuposto da ilicitude, mas da responsabilidade civil. Por isso mesmo, é característico apenas de uma das espécies dos atos ilícitos, os ‘indenizantes’. De acordo com a sua eficácia, os ilícitos podem ainda ser classificados como caducificantes (aqueles cujo efeito é a perda de um direito)[1], invalidantes (aqueles cujo efeito é a nulidade do ato)[2] e autorizantes (aqueles cujo efeito consiste na autorização jurídica do ofendido para praticar determinado ato)[3].”

                  Em sendo assim, entendemos que a fraude pauliana, ontologicamente, trata-se de um ilícito autorizante, pois permite que os lesados, eventualmente, manejem a competente ação paulina para declarar a ineficácia das conseqüentes alienações fraudulentas. Por outro lado, não se trata de um ilícito invalidante: a uma, porque produz conseqüências em torno dos efeitos dos negócios fraudulentos, e não dos requisitos de validade; a duas, ainda que se adote a tese da anulabilidade, a invalidação do negócio fraudulento não é automática, sendo necessário o manejo da ação pauliana, sob pena de convalidação da fraude.

3.2 Da Imprescindibilidade do Manejo da Ação Pauliana

                  A fraude contra credores stricto sensu é denominada, também, de fraude pauliana, justamente pelo fato de que, para seu reconhecimento, o ordenamento jurídico impõe a obrigatoriedade do manejo de uma ação judicial cognitiva autônoma, a qual recebe o nome de ação pauliana – em homenagem ao pretor romano Paulo.

                  Apesar de ser usual a utilização do termo “ação revocatória” como sendo sinônimo de ação pauliana, preferimos empregar somente o termo “ação pauliana”, pois este nos parece mais adequado considerando os fins do presente trabalho, o qual se restringe, exclusivamente, à seara do Direito Civil e Processual Civil e o termo “ação revocatória” também pode ser empregado no Direito Falimentar, indicando o meio processual de repressão a outras espécies de fraudes.

                  A jurisprudência e a doutrina não admitem, de forma alguma, que se reconheça a fraude pauliana por meio processual diverso da ação pauliana, havendo o STJ, inclusive, assentado na súmula nº 195 que: “em embargos de terceiro não se anula ato jurídico, por fraude contra credores”.

                  Por seu turno, as demais espécies de fraude contra credores lato sensu não exigem que se intente uma ação judicial específica para que sejam reconhecidas.

3.3 Dos Requisitos da Fraude Pauliana

                  A configuração da fraude pauliana requer que se prove a presença de dois requisitos: eventus damni e consilium fraudis. O primeiro é um requisito de caráter objetivo, ao passo que o segundo o é de caráter subjetivo.

                  O eventus damni é o dano provocado pela insolvência resultante da alienação de bens, em outras palavras, é o desfalque do patrimônio do devedor de modo a prejudicar a satisfação integral das suas dívidas. Destarte, é o que se verifica quando o passivo (dívidas) é superior ao ativo (créditos).

                  Importante salientar que deve haver nexo de causalidade entre as alienações fraudulentas e a insolvência do devedor e, ainda, que tal insolvência se prolongue até o momento da propositura da ação pauliana e seu desenrolar. Se, no momento da propositura da ação, o devedor não se encontra mais insolvente, ou se, durante o trâmite da mesma, cessa o estado de insolvência, há que reconhecer a ausência de interesse processual.

                  Outrossim, aduz a doutrina mais abalizada, que não cabe à parte autora o ônus de provar o eventus damni, bastando que se alegue a sua existência, ficando a cargo dos réus, mormente do devedor, provar a sua eventual inexistência. Em outras palavras, a prova da inexistência do eventus damni é ônus dos réus, constituindo-se em um dos seus meios de defesa.

                  Por seu turno, o consilium fraudis é o intuito do devedor em furtar-se ao cumprimento de suas obrigações. Há situações em que o consilium fraudis goza de presunção absoluta (jure et de jure), em virtude de expressa previsão legal: negócios a título gratuito ou remissão de dívidas (art. 158), pagamento antecipado de dívida não vencida (art. 162) e concessão de garantia (art. 163). Em tais casos, há a necessidade de o autor alegar tão-somente o eventus damni.

                  Situação diversa ocorre quando se trata de contratos onerosos, pois não há presunção legal absoluta do consilium fraudis e, conseqüentemente, o mesmo deve ser provado pelo autor. Aqui o ônus probatório é do autor da ação pauliana, devendo este demonstrar a presença má-fé subjetiva por parte do devedor e, também, daquele que com ele contrata.

                  Primeiramente, há que se perquirir se o devedor contratante tinha, ao menos, potencial conhecimento de que o cumprimento do contrato celebrado influenciaria no seu estado patrimonial, melhor dizendo, na configuração da sua insolvência, nos termos do art. 159 do Código Civil, in verbis:

 “Art. 159. Serão igualmente anuláveis os contratos onerosos do devedor insolvente, quando a insolvência for notória, ou houver motivo para ser conhecida do outro contratante.”

                  Vale ressaltar que não é necessário que o devedor contrate com animus nocendi, ou seja, com o intuito deliberado de fraudar. Basta a prova do mero potencial conhecimento de que a execução material (cumprimento) do contrato poderia levá-lo ao eventus damni, isto é, ao desequilíbrio de suas finanças.

                  Além do requisito supra, é imprescindível, também, que o participens fraudis – aquele que contrata com o devedor – tenha agido com scientia fraudis, vale dizer, má-fé. A configuração da má-fé, no presente caso, é decorrência do simples conhecimento em potencial da possibilidade de ocorrência do eventus damni, ou seja, ciência potencial de que o devedor poderia tornar-se insolvente em decorrência da execução daquele contrato. Não há, pois, necessidade de o participens fraudis ter o real conhecimento da situação econômica do devedor, sendo bastante que, de acordo com as circunstâncias, devesse ter tal conhecimento.

                  A contrario sensu, caso o participens fraudis esteja de boa-fé subjetiva, isto é, sem razões para desconfiar do intuito fraudatório do devedor, o negócio jurídico não poderá ser atacado pela ação pauliana.

                  Percebe-se, assim, que, nos contratos onerosos, a configuração do consilium fraudis depende, impreterivelmente, do potencial conhecimento acerca do eventus damni futuro, de forma cumulativa, tanto por parte do devedor futuramente insolvente, quanto por parte do terceiro que com ele contrata.

3.4 Do Crédito Defraudado

                  Nos termos do art. 158, caput, do Código Civil, a ação pauliana somente pode ser intentada pelos credores quirografários que tiveram seus respectivos créditos defraudados. O §1º do referido artigo traz a possibilidade, também, de o credor com crédito garantido intentar a ação pauliana, desde que a garantia dada não seja capaz de solver a dívida em sua totalidade. Vejamos:

“Art. 158. Os negócios de transmissão gratuita de bens ou remissão de dívida, se os praticar o devedor já insolvente, ou por eles reduzido à insolvência, ainda quando o ignore, poderão ser anulados pelos credores quirografários, como lesivos dos seus direitos.

§1º Igual direito assiste aos credores cuja garantia se tornar insuficiente.

§2º Só os credores que já o eram ao tempo daqueles atos podem pleitear a anulação deles.”

                  Contudo, deve-se interpretar tal artigo cum grano salis, haja vista que podem existir situações em que há manifesto interesse processual de terceiros, que não sejam credores. Na jurisprudência, por exemplo, encontramos julgado que assegurara ao avalista e ao fiador, do devedor fraudador, o direito de se valerem da ação pauliana visando prevenir eventual responsabilidade pela dívida que garantiram:

“Ementa: CIVIL. FRAUDE CONTRA CREDORES. O AVALISTA QUE PAGA A DÍVIDA DO AVALIZADO SUCEDE O CREDOR NOS RESPECTIVOS DIREITOS E AÇÕES. Nota promissória avalizada. Inadimplemento do respectivo emitente, que, depois do aponte do título, vendeu o único imóvel de sua propriedade. Pagamento, pelo avalista, que, sub-rogado nos direitos do credor, ajuizou ação pauliana. Alegação de que o avalista, na data da alienação do imóvel, não era credor do avalizado. Improcedência, porque o avalista que paga a dívida assume a posição do primitivo credor, legitimando-se ao exercício dos direitos e ações deste. Recurso especial não conhecido.

(STJ, REsp 139093/PR, Terceira Turma, Rel. Min. Ari Pargendler, DJ 10/04/2001)”

                  Outra característica do crédito defraudado é que o mesmo deve ser anterior à prática da fraude pauliana, nos termos do §2º do supra-transcrito art. 158 do Código Civil. Não há a possibilidade de cabimento da ação pauliana com relação a crédito futuro, pois, segundo nos informa Humberto Theodoro Júnior (2001, p. 137), “não há em nosso Código a ressalva expressa do cabimento da revocatória em situação de alienação dolosamente realizada para frustrar crédito futuro, como se dá com códigos modernos como o português e o italiano”.

                  Outrossim, o crédito não precisa sequer estar representado em título executivo (Ex.: duplicata sem aceite juntamente com outros documentos fiscais que comprovem a compra e venda mercantil), não precisa gozar de exigibilidade, nem liquidez (Ex.: indenização com base em sentença penal condenatória). Nesse sentido, vejamos o seguinte julgado:

“Ementa: RECURSO ESPECIAL. AÇÃO PAULIANA. CRÉDITO. ANTERIORIDADE. NÃO PROVIMENTO. O parágrafo único do art. 106 do Código Civil, em interpretação atualizada do velho estatuto, não requer o crédito líquido e documentado, sendo bastante a causa geradora do direito. (STJ, REsp 10.096/SP, Terceira Turma, Rel. Ministro Cláudio Santo, DJ 25/05/1992)”

                  Por último, ressaltamos que no caso de obrigação sujeita a condição suspensiva, tal condição já deve ter sido verificada antes do ato fraudador, pois, do contrário, não se configuraria o crédito anterior ao ato fraudulento.

3.5 Do Pólo Passivo na Ação Pauliana

                  A ação pauliana deve ser proposta em face do devedor e do terceiro adquirente do bem (que deve ter contratado imbuído de má-fé), em litisconsórcio passivo necessário e unitário, apesar de a redação do art. 161 do Código Civil não ser clara nesse sentido, senão vejamos:

“Art. 161. A ação, nos casos dos arts. 158 e 159, poderá ser intentada contra o devedor insolvente, a pessoa que com ele celebrou a estipulação considerada fraudulenta, ou terceiros adquirentes que hajam procedido de má-fé.”

                  O supra-transcrito artigo não deixou claro a necessidade (parece ter apenas facultado) de se incluir no pólo passivo da ação pauliana, conjuntamente, todos aqueles que poderão ter suas situações jurídicas alteradas, a depender do resultado do julgamento proferido a posteriori.

                  Com efeito, a não observância do litisconsórcio passivo necessário e unitário supra inviabiliza a produção de efeitos por parte da sentença que julga o pedido da ação pauliana, conforme doutrina Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery (2005, p. 255):

“Caso não sejam citados para o processo pauliano todos os participantes do negócio fraudulento, a sentença eventualmente proferida terá sido dada inultilmente (inutiliter data), isto é, não fará coisa julgada material e não produzirá nenhum efeito. Porque não será acobertada pela coisa julgada material (auctoritas rei iudicatae), não há necessidade de ajuizar-se ação rescisória para desconstituir-se essa sentença.”

                  Noutro giro, no caso de ter havido sucessivas alienações há que se atentar para o fato de que somente os adquirentes que tenham operado de má-fé (scientia fraudis) podem figurar, legitimamente, no pólo passivo da demanda pauliana.

                  Logicamente, caso o adquirente esteja de boa-fé, em alguma dessas alienações, não será compelido a responder pela fraude pauliana. Não há que se falar no caso de aplicação do art. 42, §3º, do Código de Processo Civil[4], pois o direito material (e não o processual) tratou de proteger o subadquirente de boa-fé, consoante já decidiu, certa vez, o Superior Tribunal de Justiça:

“Ementa: AÇÃO PAULIANA. TERCEIRO ADQUIRENTE. BOA-FÉ. O terceiro adquirente de boa-fé não é atingido pelo efeito de sentença de procedência de ação pauliana, satisfazendo-se o interesse dos credores, contra os fraudadores, em cobrar-se sobre o equivalente do valor do bem. Art. 109 do CC. Recurso conhecido e provido. (STJ, REsp 102401/MG, Quarta Turma, Rel. Ministro Ruy Rosado de Aguiar, DJ 31/03/1997)”

                  Por seu turno, considerando que o débito (shuld) e a responsabilidade (haftung) não se confundem, conclui-se que os adquirentes que tiverem operado de má-fé (scientia fraudis) devem integrar o pólo passivo da demanda, na condição de responsáveis tão-somente pelo valor do bem alienado em fraude pauliana. Tais sujeitos são responsáveis, mas não devedores, pois se, ad absurdum, também fossem considerados devedores, a responsabilidade estender-se-ia por todas as dívidas do insolvente.

                  Por fim, o art. 160 do Código Civil prevê a possibilidade de o terceiro adquirente (participens fraudis) evitar a ação pauliana, caso deposite em juízo, com citação dos interessados, o valor aproximado do bem (quando o preço estipulado no contrato tenha sido aproximado do corrente) ou do próprio valor real (caso o preço estipulado no contrato tiver sido bem inferior ao valor real do bem), in verbis:

“Art. 160. Se o adquirente dos bens do devedor insolvente ainda não tiver pago o preço e este for, aproximadamente, o corrente, desobrigar-se-á depositando-o em juízo, com a citação de todos os interessados.

Parágrafo único. Se inferior, o adquirente, para conservar os bens, poderá depositar o preço que lhes corresponda ao valor real.”

4 Anulabilidade ou ineficácia do negócio jurídico praticado em fraude pauliana

                  Para que o ato jurídico alcance os efeitos programados por seu agente, deve passar, primeiramente, pelos três planos do mundo jurídico: existência, validade e eficácia. Sinteticamente, pode-se dizer que o plano da existência representa a materialidade fática do ato. O plano da validade se relaciona com a presença dos requisitos legais essenciais para que determinado ato esteja apto a produzir efeitos. Já plano da eficácia se refere à capacidade, desde logo, da produção ou não dos efeitos programados.

                  Todo ato inexistente ou inválido será também ineficaz, contudo, nem todo ato existente e válido é eficaz. Em que pese o ato jurídico ser válido e estar apto a produzir efeitos, nem sempre tais efeitos são produzidos, desde já ou por completo. Pode ser que haja alguma causa de ineficácia absoluta (Ex.: ato jurídico sujeito à condição suspensiva) ou causa de ineficácia relativa (Ex.: fraude pauliana, fraude à execução, fraude à penhora, desconsideração da personalidade jurídica em decorrência de abuso).

                  Segundo Alexandre Freitas Câmara (2004, p. 214), as questões atinentes à ineficácia relativa do ato jurídico se referem aos efeitos secundários do referido ato, e não ao efeito programado ou principal. A ineficácia relativa é, pois, uma forma de se proteger interesses de terceiros, alheios ao ato jurídico praticado:

“Há casos, porém, em que – como forma de se proteger a esfera patrimonial de terceiros – exclui-se a aptidão do ato jurídico para produzir o efeito secundário (embora o ato continue apto a produzir seu efeito programado). Assim, por exemplo, na alienação de bem em fraude contra credores, o efeito programado se produz, e o bem alienado passa a pertencer ao adquirente. Não se produz, porém, o efeito secundário, o que significa dizer que aquele bem, embora tenha saído do patrimônio do devedor permanece incluído no campo de incidência da responsabilidade patrimonial, isto é, embora não mais pertença ao devedor, será possível sua apreensão (no patrimônio de terceiro que o adquiriu), para que com ele se assegure a realização do direito de crédito do terceiro prejudicado pela alienação.”

                  Em que pese a melhor doutrina pregar a ineficácia relativa do negócio jurídico praticado em fraude contra credores stricto sensu (fraude pauliana), conforme visto, o atual Código Civil continuou a regulá-la dentro do capítulo referente aos defeitos dos negócios jurídicos. Tal localização do tema é extremamente criticável, pois suas características e efeitos não se assemelham à dos vícios de consentimento, elencados sob o mesmo título.

                  Primeiramente, a doutrina majoritária considera a fraude pauliana como sendo um vício social, tal como a simulação, ao passo que os demais defeitos negociais (erro, coação, dolo, lesão, estado de perigo) seriam vícios de consentimento[5]. Enquanto o vício de consentimento atinge o negócio jurídico em si, pois compromete um de seus elementos essenciais – a vontade negocial –, o vício social refere-se aos fins colimados pelo negócio jurídico, quando buscarem frustrar direitos de terceiros, no caso da fraude pauliana, ou da própria sociedade, no caso da simulação.

                  Quando há vício de vontade, o negócio jurídico se torna passível de anulação, caso tal providência seja requerida judicialmente por algum prejudicado. Situação muito diferente ocorre no caso da fraude pauliana, em que o negócio jurídico não é viciado em nenhum de seus elementos essenciais, não sendo, pois, passível de anulação. Neste caso, o negócio jurídico subsiste, contudo, não estará apto a produzir efeitos, haverá ineficácia relativa perante determinados credores (os que intentarem e obtiverem êxito com a ação pauliana).

“O Novo Código Civil [...] cometeu, todavia, um desserviço ao direito civil brasileiro, ao manter a fraude contra credores dentre as causas de anulabilidade do negócio jurídico (arts. 158 a 165), já que os rumos traçados pelo direito comparado contemporâneo e a lição da doutrina nacional desde muito catalogam a impugnação pauliana no âmbito da ineficácia, e não da invalidade.

Além de atribuir efeitos impróprios à natureza dos negócios viciados, reúne o Código fenômenos heterogêneos sob a denominação única de ‘defeitos do negócio jurídico’. Na verdade, nada há em comum entre os vícios de consentimento (ou de vontade) - erro, dolo, coação etc. e os vícios funcionais (ou sociais), como a fraude contra credores.” (THEODORO JÚNIOR: 2002, p. 01-02)

                  Pois bem, além de disciplinar a fraude pauliana ao lado dos defeitos negociais relativos aos vícios de consentimento, o vigente Código Civil lhe atribuiu, a priori, segundo interpretação literal dos artigos 158, 159, 165 e 171, inciso II, os mesmos efeitos sancionatórios dos vícios de consentimento – a anulabilidade do negócio jurídico. Todavia, numa interpretação teleológica, baseada, sobretudo, nos princípios constitucionais, infere-se que a fraude paulina é causa, na verdade, de ineficácia relativa, e não de anulabilidade.

                  No Brasil, a doutrina civilista clássica[6] ainda prega uma interpretação conforme a literalidade dos dispositivos supra-mencionados, isto é, atribuindo à fraude pauliana o efeito de possibilitar a anulação do negócio jurídico. Por seu turno, vários doutrinadores de peso vêm defendendo a tese da ineficácia relativa[7].

                  Na jurisprudência, encontramos alguns julgados que adotaram a teoria da ineficácia relativa, inclusive no Superior Tribunal de Justiça, in verbis:

“Ementa: Direito civil e Processo civil. Recurso especial. Ação pauliana. Acórdão. Omissão. Inexistência. Reexame de prova. Prequestionamento. Afronta ao art. 106 do CC. Alienações sucessivas no tempo. Ausência de interesse de agir.

- Afronta o art. 535, II do CPC apenas o acórdão omisso, não necessitando o Tribunal a quo tecer comentários sobre todos os argumentos levantados pelas partes.

- É inadmissível o recurso especial se não houve o prequestionamento do direito tido por violado e dependa a sua análise de reexame de prova.

- Não possui interesse de agir aquele que, em ação pauliana, interpõe recurso especial por ofensa ao art. 106 do CC, pugnando pela validade de alienação anterior a outra, se o Tribunal a quo decidiu que, em alienações sucessivas no tempo, deve-se primeiro declarar a ineficácia da alienação mais próxima para, somente após, caso permaneça o estado de insolvência, declarar-se a ineficácia da alienação mais remota.

- Recurso especial a que não se conhece.

 (REsp 214087 / SP; 3ª Turma; Rel. Nancy Andrigui; DJ 25.06.2001)” [grifo nosso]

“Ementa: EMBARGOS DE TERCEIRO – FRAUDE CONTRA CREDORES

Consoante a doutrina tradicional, fundada na letra do Código Civil, a hipótese é de anulabilidade, sendo inviável concluir pela invalidade em embargos de terceiro, de objeto limitado, destinando-se apenas a afastar a constrição judicial sobre bem de terceiro. De qualquer sorte, admitindo-se a hipótese como de ineficácia, essa, ao contrário do que sucede com a fraude de execução, não é originária, demandando ação constitutiva que lhe retire a eficácia.

(REsp 40805 / RJ; 3ª Turma; Min. Eduardo Ribeiro; DJ 08.05.1995)” [grifo nosso]

“Ementa: PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. ALÍNEA C. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DO DISSÍDIO. FRAUDE CONTRA CREDORES. NATUREZA DA SENTENÇA DA AÇÃO PAULIANA. EXECUÇÃO. EMBARGOS DE TERCEIRO. DESCONSTITUIÇÃO DE PENHORA SOBRE MEAÇÃO DO CÔNJUGE NÃO CITADO NA AÇÃO PAULIANA.

1. O conhecimento de recurso especial fundado na alínea c do permissivo constitucional exige a demonstração analítica da divergência, na forma dos arts. 541 do CPC e 255 do RISTJ.

2. A fraude contra credores não gera a anulabilidade do negócio — já que o retorno, puro e simples, ao status quo ante poderia inclusive beneficiar credores supervenientes à alienação, que não foram vítimas de fraude alguma, e que não poderiam alimentar expectativa legítima de se satisfazerem à custa do bem alienado ou onerado.

3. Portanto, a ação pauliana, que, segundo o próprio Código Civil, só pode ser intentada pelos credores que já o eram ao tempo em que se deu a fraude (art. 158, § 2º; CC/16, art. 106, par. único), não conduz a uma sentença anulatória do negócio, mas sim à de retirada parcial de sua eficácia, em relação a determinados credores, permitindo-lhes excutir os bens que foram maliciosamente alienados, restabelecendo sobre eles, não a propriedade do alienante, mas a responsabilidade por suas dívidas.

4. No caso dos autos, sendo o imóvel objeto da alienação tida por fraudulenta de propriedade do casal, a sentença de ineficácia, para produzir efeitos contra a mulher, teria por pressuposto a citação dela (CPC, art. 10, § 1º, I). Afinal, a sentença, em regra, só produz efeito em relação a quem foi parte, "não beneficiando, nem prejudicando terceiros" (CPC, art. 472).

5. Não tendo havido a citação da mulher na ação pauliana, a ineficácia do negócio jurídico reconhecido nessa ação produziu efeitos apenas em relação ao marido, sendo legítima, na forma do art. 1046, § 3º, do CPC, a pretensão da mulher, que não foi parte, de preservar a sua meação, livrando-a da penhora.

5. Recurso especial provido.

(STJ, REsp 506312 / MS, Primeira Turma, Rel. Ministro Teori Albino Zavascki, DJ 31.08.2006)” [grifo nosso]

                  Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery (2005, p. 251) estão entre os poucos que, além de adotar a posição clássica da anulabilidade, se preocuparam a justificar sua opção. Ao tratarem sobre o regime jurídico da fraude pauliana (fraude contra credores stricto sensu), dispõem:

“Regime Jurídico da fraude contra credores. É dado pela lei. A norma sob comentário dá o regime da anulabilidade ao negócio jurídico celebrado em fraude contra credores. As considerações feitas por parte da doutrina, de que o negócio jurídico seria válido, mas ineficaz (teoria da inoponibilidade) – copiando o direito italiano, sem reservas –, devem ser consideradas de lege ferenda. Vide o exemplo da simulação, que no regime anterior era causa de ‘anulabilidade’ (CC/1916 102 e 147 II) e no regime novo é causa de nulidade do negócio jurídico (CC 167). Portanto, é a lei que dá o regime jurídico dos defeitos dos negócios jurídicos. Anulado o negócio jurídico por fraude contra credores, o bem alienado volta ao patrimônio do devedor, para a garantia do direito dos credores (CC 165). Caso se desse à fraude contra credores o tratamento da ineficácia, reconhecida essa o bem alienado continuaria no patrimônio do adquirente, fazendo com que apenas aquele que entrou com a ação pauliana tivesse o beneficio do reconhecimento da ineficácia, mantendo-se íntegro o ato fraudulento em face dos demais credores.

Por essa razão é que o CC 165 determina que, procedente o pedido pauliano, ou seja, anulado o negócio jurídico fraudulento, o bem objeto do negócio retorna ao patrimônio do devedor, protegendo-se todos os credores. [...]

O regime legal da fraude contra credores – anulabilidade, portanto, afigura-se-nos o mais adequado para a realidade brasileira e para o escopo a que se propôs o Código Civil: proteger os credores e não apenas aquele credor que ajuíza a ação pauliana.”

                  Data venia, ousamos discordar dos ilustres doutrinadores que pregam a teoria da anulabilidade. In casu, a interpretação literal dos dispositivos que tratam da fraude pauliana no Código Civil não é a única, nem a mais plausível. A utilização do método teleológico indica que as conseqüências advindas do reconhecimento da fraude pauliana se assemelham mais à ineficácia relativa do que à anulabilidade.

“É claro que o intérprete não pode revogar a lei nem eliminar os critérios do legislador, substituindo-os por outros critérios pessoais que, sem motivo plausível, se distanciem do direito positivo e dos princípios gerais do direito reconhecidamente inspiradores do ordenamento positivo. Pode, e deve, no entanto, afastar-se do anacrônico positivismo jurídico, para conscientizar-se de que o direito não está apenas na letra da norma legislada. Ao contrário, tem de orientar-se, para chegar a bom termo no labor interpretativo, segundo critérios valorativos que revelam horizontes muito mais amplos do que os imediatamente divisados no texto da norma positiva.” (THEODORO JÚNIOR: 2001, p. 186)

                  O caput do art. 165 do Código Civil dispõe que: “Anulados os negócios fraudulentos, a vantagem resultante reverterá em proveito do acervo sobre que se tenha de efetuar o concurso de credores”. Ao analisar os efeitos da anulação do negócio fraudulento, segundo a literalidade do referido art. 165, percebe-se que tal anulação é “meramente relativa”, ou seja, a restauração do status quo ante imposta pela referida anulação se opera simplesmente quanto a todos os credores (e não com relação aos devedores).

                  A “anulação relativa” do art. 165 mais se assemelha à ineficácia relativa (inoponibilidade perante os credores), distanciando-se da anulação tradicional (desconstituição in totum do negócio jurídico, com recomposição do status quo ante). A doutrina clássica não consegue, satisfatoriamente, explicar os efeitos dessa “anulabilidade relativa”, conforme percebido e criticado por Alexandre Freitas Câmara (2004, p. 211-212):

“[...] no caso de anulação de um ato praticado em fraude contra credores, deveria o bem alienado fraudulentamente retornar ao patrimônio do devedor que o alienara. Tal, porém, não ocorre. Basta ver a afirmação de um notável civilista pátrio, defensor da posição tradicional (Carvalho Santos, Código Civil Brasileiro Interpretado,vol. II, p. 451), segundo a qual o ato praticado em fraude contra credores seria anulável, mas que, ao analisar os efeitos da sentença proferida na ‘ação pauliana’ (ou seja, na demanda destinada a atacar o ato praticado em fraude contra credores), afirma que ‘a revogação a que conduz a ação pauliana, como se vê, é puramente relativa, no sentido de que não se verifica senão em proveito dos credores do devedor e nunca em proveito do próprio devedor. Entre este e os terceiros que decaíram na ação pauliana o contrato permanece válido, subsistindo inteiramente. Exemplo: no caso de uma doação fraudulenta, quando os credores fizeram anular essa doação e foram pagos com o produto dos bens que voltaram ao patrimônio do devedor (o doador), como conseqüência da anulação pleiteada, se o preço apurado é superior ao valor total dos créditos, o excedente será restituído ao donatário’.

Parece estranho que um ato anulado permaneça válido entre as pessoas que o praticaram, como afirma textualmente o trecho citado acima. Da mesma forma, é no mínimo estranho que, uma vez expropriado o bem que havia sido alienado em fraude contra credores (depois de ter sido anulada a alienação), e havendo saldo em razão de ter sido obtida quantia em dinheiro superior ao valor do crédito exeqüendo, pertencer tal saldo ao adquirente, se o bem não mais integrava o seu patrimônio (e sim o do alienante) quando foi expropriado. Tais dificuldades para explicar as conseqüências da fraude pauliana desaparecem, porém, se abandonarmos a posição clássica e afirmarmos que o ato praticado em fraude contra credores é válido, mas ineficaz.” (CÂMARA, 2004, p. 211-212)

                  Daí que melhor seria, então, atribuir como conseqüência da fraude pauliana a ineficácia relativa das alienações fraudulentas, isto é, os credores poderiam “alcançar” o patrimônio do terceiro adquirente (participens fraudis), dado que o negócio fraudulento seria inoponível àqueles. Ao mesmo tempo, caso o patrimônio transferido em fraude pauliana seja superior ao crédito do credor-autor da ação pauliana, o restante do patrimônio continuaria com o participens fraudis, de modo que já lhe serviria como atenuação do quantum que lhe caberá face o devedor-alienante, numa futura ação regressiva.

                  A teoria da anulabilidade foi adotada pelo Código Civil de 1916 tendo em vista que este sequer tratou do instituto da eficácia dos atos jurídicos porque, à época em que foi editado, não havia ainda um desenvolvimento sedimentado na ciência do direito sobre o plano da eficácia dos atos jurídicos, conforme crítica de Humberto Theodoro Júnior (2002, p. 02):

“Como explicar, então, o agrupamento de figuras tão díspares como os vícios de consentimento e os vícios sociais no mesmo segmento dos defeitos do negócio jurídico? Simplesmente porque, na ótica do Código de 1916, todos eles conduziriam a uma só sanção: a anulabilidade.

Mas, tão diferentes eram os dois fenômenos, que mesmo submetendo-os ao regime comum das anulabilidades, não pôde o Código velho deixar de reconhecer que a invalidade teria conseqüências não uniformes, conforme o vício fosse de vontade ou social. No primeiro caso, a proteção era para o agente vítima do defeito, de maneira que a invalidação seria decretada em seu benefício; no segundo, a anulação operaria em favor dos terceiros lesados e não do agente do ato defeituoso.

Ora, esse tratamento promíscuo de fenômenos irredutíveis entre si só se justificava pelo fato de ao tempo da elaboração do Código velho não se dominar, ainda, com segurança, a distinção, entre anulabilidade e ineficácia relativa. Num Código do Século XXI, todavia, é inaceitável que se mantenham coisas tão díspares sob regime nominalmente igual, mas de conseqüências substancialmente diversas. A impropriedade é gritante e será, na prática, fator de muita confusão e prejuízos, pelos reflexos que certamente acarretará à segurança jurídica.”

                  Atualmente, a ciência jurídica já se desenvolveu de forma satisfatória para diferenciar os planos de validade e eficácia, não havendo mais razão para que o atual Código Civil 2002 adotasse a mesma teoria do antigo Código Civil de 1916, praticamente repetindo os dispositivos deste Código, ao tratar da fraude pauliana.

                  Registre-se, ainda, que a Comissão Revisora do Código Civil de 2002 se negou, expressamente, a alterar a disciplina da fraude pauliana, consoante relata Carlos Roberto Gonçalves (2005, p. 418-419), in verbis:

“Durante a tramitação do Projeto de Código Civil na Câmara Federal foi apresentada uma emenda, a de n. 193, pretendendo que a fraude contra credores acarretasse a ineficácia do negócio jurídico fraudulento em relação aos credores prejudicados, e não a sua anulação. A isso respondeu a Comissão Revisora, em seu relatório:

‘O Projeto segue o sistema do Código Civil (de 1916), segundo o qual a fraude contra credores acarreta a anulação. Não se adotou, assim, a tese de que se trataria de hipótese de ineficácia relativa. Se adotada esta, teria de ser mudada toda a sistemática a respeito, sem qualquer vantagem prática, já que o sistema do Código (de 1916) nunca deu motivos a problemas, nesse particular. Ademais, o termo revogação, no sistema do Código Civil (de 1916) e do Projeto, é usado para a hipótese de dissolução de contrato pela vontade de uma só das partes contratantes (assim, no caso de revogação de doação, por ingratidão). E nesse caso a revogação opera apenas ex nunc, e não ex tunc. Nos sistemas jurídicos que admitem a revogação do negócio jurídico por fraude contra credores, admite-se que o credor retire a voz do devedor (revogação), ao passo que, em nosso sistema jurídico, se permite que o credor, alegando a fraude, peça a decretação da anulação do negócio entre o devedor e terceiro. São dois sistemas que se baseiam em concepções diversas, mas que atingem o mesmo resultado prático. Para que mudar?’”

                  Contudo, há que se considerar que “os tipos, diferentemente dos conceitos, não se criam ou se inventam – somente se descobrem; nem se definem em seus próprios termos – apenas se descrevem” (LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. Trad. Portuguesa, Lisboa, 1978, p. 506 et seq. apud THEODORO JÚNIOR, 2001, p. 184), razão pela qual deve o intérprete do Código Civil de 2002 evoluir na interpretação da disciplina da fraude pauliana, pois, ainda que o legislador do atual Código Civil tenha se furtado de disciplinar, explicitamente, o instituto da ineficácia, tal fato não é justificativa, por si só, para se adotar uma interpretação literal e cega.

“O apego dos juristas ao tradicional e sua correlata aversão ao novo é apenas um eufemismo com que se procura mascarar a sua verdadeira causa: a lei do menor esforço. [...] A aversão ao novo é, assim, a aversão ao estudo; o apego ao passado é, nada mais, nada menos, que expediente para evitar o esforço de meditar sobre as novas normas jurídicas.” (BILAC PINTO, 1983, p. 29 a 31 apud THEODORO JÚNIOR, 2001, p. 26)

                  Outrossim, apesar de Nelson Nery Jr. e Rosa Maria Andrade Nery (2005, p. 251) entenderem que o regime aplicado pelo atual Código Civil à fraude pauliana é decorrente da vontade do legislador de proteger o interesse, conjuntamente, de todos os credores (e de mais ninguém!), tal posicionamento, data venia, se nos afigura, no mínimo, injusto e, também, incentivador da prática de fraudes.

                  Primeiramente, abstraída a questão da “anulabilidade relativa”, se se admitir a possibilidade de anular in totum o negócio jurídico fraudulento, credores, que não o eram anteriormente à prática do referido negócio jurídico, serão beneficiados, mesmo sem ter intentado a competente ação pauliana. Nesse sentido, dispôs Teori Albino Zavascki:

“A fraude contra credores não gera a anulabilidade do negócio — já que o retorno, puro e simples, ao status quo ante poderia inclusive beneficiar credores supervenientes à alienação, que não foram vítimas de fraude alguma, e que não poderiam alimentar expectativa legítima de se satisfazerem à custa do bem alienado ou onerado.” (trecho da ementa do julgamento do REsp 506312 / MS, já integralmente transcrito acima)

                  Pois bem, a teoria da ineficácia relativa, além de não tolhe quaisquer direitos dos credores pretéritos, tem a vantagem de, eventualmente, preservar parte dos direitos do terceiro adquirente (participens fraudis), pois se entende que, “uma vez expropriado o bem, e obtida uma quantia em dinheiro superior ao crédito exeqüendo, o saldo restante deva reverter para o adquirente do bem, e não para o devedor que o alienara fraudulentamente.” (CÂMARA, 2004, p. 214).

                  Ora, se o terceiro adquirente se tornará, posteriormente, um credor do devedor-alienante, por que não resguardar parte de seus direitos, desde já?

                  Com efeito, a teoria da anulabilidade não é justa, haja vista que, no exemplo acima, prega que seja o valor restituído ao devedor-alienante, fato este que dificultaria, ainda mais, a efetividade do direito regressivo do terceiro-adquirente em face do devedor-alienante-fraudador, o qual teria nessa “brecha legal” um verdadeiro incentivo a dar continuidade à perpetração de fraudes – um verdadeiro privilégio a quem age de má-fé!

                  A nosso viso e a título de arremate, temos que sempre se deve privilegiar a interpretação do Código Civil que vá ao encontro dos princípios constitucionais, norteadores, portanto, de todo o sistema jurídico. Daí que, numa interpretação constitucional do problema, a teoria da ineficácia relativa se nos afigura a mais adequada aos princípios da boa-fé (implícito na CF/88), da função social da propriedade (art. 5º, XXIII e art. 170, III, ambos da CF/88), bem como da solidariedade social (art. 3º, III, CF/88).

                  Quanto à boa-fé, importante destacar que não há como vislumbrar, salvo ad absurdum, a existência de uma sociedade, cujo ordenamento jurídico não contemple, de alguma forma, o princípio da boa-fé, nesse sentido:

“Afirmar o acolhimento, por um ordenamento jurídico específico, do princípio da boa-fé, é afirmar que, a partir da interpretação de seus dispositivos, pode-se haurir a valorização das condutas de boa-fé, em detrimento das condutas opostas. Por via de conseqüência, afirmar o seu não acolhimento é defender que de nenhuma forma se pode extrair deste ordenamento a desvalorização das condutas maliciosas.

Não se trata de hipótese teoricamente impossível, mas tampouco se trata de hipótese razoável. Abstraídas as ilações ad absurdum, dissemos e repetimos que nunca houve qualquer ordenamento que não acolhesse o princípio da boa-fé. Por esta razão, nunca houve um ordenamento no qual os atos abusivos fossem atos lícitos.” (JORDÃO: 2006, p. 105)

                  A teoria da ineficácia relativa privilegia a boa-fé, na medida em que, conforme já exposto, nos parece mais adequada para desestimular a prática de atos em fraude pauliana, pois evita a possibilidade de, eventualmente, o devedor-alienante-fraudador se locupletar à custa do terceiro-adquirente.

                  Noutro giro, considerando que uma das funções da propriedade é servir de garantia ao pagamento das dívidas de seu titular, a teoria da ineficácia relativa, ao impedir que o bem alienado volte in totum ao patrimônio do devedor-alienante-fraudador, já reduz o débito deste para com o terceiro-adquirente.

                  Por fim, a solidariedade social impõe que se adote uma interpretação mais adequada a resguardar os interesses da maioria dos membros da sociedade. Se a anulabilidade resguarda os interesses dos credores, consoante doutrina Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery, a teoria da ineficácia relativa, por seu turno, além de resguardar os interesses dos credores, eventualmente, estará acautelando, também, interesses do terceiro-adquirente, sem prejuízo dos interesses daqueles.

5 A Natureza jurídica da sentença na ação pauliana

                  A doutrina costuma apresentar diversas classificações com relação às sentenças no processo civil. Dentre as referidas classificações, a mais utilizada é a que classifica tais decisões de açodo com seu conteúdo.

                  Tradicionalmente, as sentenças podem ser classificadas em: declaratória, constitutiva ou condenatória. Há, ainda, os que adicionam a tal classificação as sentenças mandamental e executiva lato sensu, contudo, essas duas últimas espécies não são adotadas de modo unânime na doutrina, pois há quem entenda que as mesmas são simplesmente sentenças condenatórias. [8]

                  Em se adotando a teoria da ineficácia relativa, no que se refere à natureza jurídica da sentença que julga procedente o pedido na ação pauliana, a divergência supra não tem relevância prática, haja vista que nessa seara a discussão doutrinária reside em saber se se trata de uma sentença constitutiva ou declaratória.

                  Cândido Rangel Dinamarco (2004, p. 387) e Alexandre Freitas Câmara entendem tratar-se de uma sentença constitutiva, tendo em vista que só a partir da sentença é que operaria a ineficácia relativa da alienação em fraude pauliana. Aduzem, pois, que tal ineficácia seria “sucessiva”, e não “originária”:

“O que se busca aqui é saber o seguinte: praticado o ato em fraude contra credores, é ele ab origine incapaz de produzir efeitos (ineficácia originária), ou será o ato capaz de produzir efeitos até que seja proferida sentença pauliana (ineficácia sucessiva)? Sendo correta a primeira resposta, a sentença pauliana será meramente declaratória; correta a segunda, será constitutiva. [...] A pergunta a ser respondida, assim, é a seguinte: pode ser penhorado um bem que tenha sido alienado em fraude pauliana independentemente da propositura da ‘ação pauliana’? A nosso juízo a resposta é negativa. O bem alienado em fraude contra credores sai do patrimônio do devedor e, por conseguinte, fica fora do campo de incidência do art. 591 do CPC.” (CÂMARA: 2004, p. 215)

                  Contudo, data maxima venia, entendemos tratar-se de uma sentença declaratória. Com efeito, o simples fato de a ineficácia relativa do negócio jurídico fraudador depender de uma sentença que a reconheça, não é, por si só, capaz de indicar tratar-se de um provimento de natureza constitutiva.

                  A sentença que reconhece a fraude pauliana não tem o condão de criar nenhuma nova relação jurídica de direito material, como o fazem as sentenças constitutivas, a novidade introduzida pela mesma é de incidência processual tão-somente, no âmbito da penhorabilidade. “A fraude ocorreu antes do processo e fez, por ela mesma, com que o adquirente tivesse de suportar, a partir de então, a garantia patrimonial pelos débitos que o alienante insolvente deixou a descoberto” (THEODORO JÚNIOR: 2001, p. 240)

                  É o ordenamento jurídico que impõe a imprescindibilidade do manejo da ação para reconhecimento de certas situações. Contudo, o fato de o processo judicial ser imprescindível, não muda a natureza do provimento judicial, que continua a ser meramente declaratório como, por exemplo, no caso das sentenças que julgam procedente o pedido nas seguintes ações: investigatória de paternidade (sentença declaratória de paternidade), consignação em pagamento (sentença declaratória de que se extinguiu determinada obrigação), usucapião (sentença declaratória de que houve aquisição da propriedade em decorrência da prescrição aquisitiva).

                  Na fraude pauliana ocorre o mesmo, tendo em vista que o ordenamento jurídico impõe a obrigatoriedade do manejo da ação pauliana, conforme explica Humberto Theodoro Júnior (2001: p. 241-242):

“Esse acertamento somente pode ser feito pela sentença, por imposição da lei, não pra criar ou modificar situação jurídica entre as partes, mas sim e apenas para assentar os fatos e suas conseqüências já operadas no plano do direito material.

Tanto não é a sentença que cria a responsabilidade executiva do terceiro adquirente que este, antes da ação pauliana, pode elidir seus eventuais efeitos, depositando em juízo, à ordem dos credores, o preço da aquisição do bem alienado pelo devedor insolvente (CC, art. 108) [atual art. 160]. Também, voluntariamente, pode o credor extinguir a pauliana já em curso mediante resgate do crédito do autor, independentemente de sentença de reconhecimento da fraude. Em tais situações, os efeitos da fraude, sem dúvida, terão operado, no plano do direito material, sujeitando o terceiro adquirente a suportar a responsabilidade patrimonial pela dívida do alienante, sem o pressuposto do acertamento por via de sentença judicial. Evidencia-se, assim, que não é a sentença que gera sua responsabilidade, mas o fato mesmo da aquisição do bem de alguém que se achava em estado de insolvência.”

                  Salvo melhor juízo, talvez o motivo para que alguns doutrinadores, não obstante serem adeptos da teoria da ineficácia relativa, defendam a natureza constitutiva da sentença de reconhecimento da fraude pauliana, decorre do intuito de se buscar manter a sistematização do Código Civil.

                  Pois bem, o fato de o referido Codex ter adotado literalmente a teoria da anulabilidade, implicou no estabelecimento de prazo decadencial para a propositura da ação pauliana (art. 178), o qual seria “preservado” caso de admitisse que a sentença na ação pauliana, mesmo em se adotando a teoria da ineficácia relativa, teria natureza constitutiva.

                  Contudo, como nos parece mais lógico e razoável que a sentença na referida ação tem natureza meramente declaratória, inevitavelmente o reconhecimento da fraude pauliana não estaria sujeito a nenhuma espécie de prazo, seja prescricional ou decadencial. Devendo ser peremptoriamente desconsiderado o dispositivo que impõe prazo decadencial para o manejo da ação pauliana.

                  Todavia, apesar da imprescritibilidade da ação pauliana, há de se reconhecer que não haveria interesse processual no seu manejo caso o crédito dos credores já estivesse prescrito. Daí que se pode concluir que o manejo eficaz da ação pauliana depende da existência contra o devedor-alienante de crédito defraudado e não prescrito.

6 CONCLUSÃO

                  O vigente Código Civil ficou muito tempo em tramitação legislativa, fato este que lhe foi muito prejudicial, haja vista que em diversos temas já entrou em vigor fora de sintonia com a sociedade que pretende regular. Sem desmerecer as várias inovações positivas do referido estatuto civil, em diversos pontos, contudo, o mesmo não foi capaz de reproduzir o desenvolvimento jurídico visualizado no cenário internacional. Como exemplo, podemos citar a conservação do mesmo regramento contido no Código Civil de 1916 no que concerne à fraude contra credores stricto sensu (fraude pauliana).

                  Promulgado o Código Civil de 2002, ao intérprete compete a tarefa de buscar, dentro das possibilidades, atualizar a sua leitura, com respeito à Constituição Federal, bem como aos paradigmas norteadores do Direito Civil moderno (eticidade, operatividade e socialidade).

                  No que tange à fraude pauliana, uma interpretação meramente gramatical, pela qual se adotaria a teoria da anulabilidade, não é a que melhor se adequa ao ideal de justiça e de repulsa às práticas fraudulentas, mormente tendo em vista os princípios constitucionais, tais como o da boa-fé (implícito na CF/88), o da função social da propriedade (art. 5º, XXIII e art. 170, III, ambos da CF/88), bem como o da solidariedade social (art. 3º, III, CF/88).

                  Ademais, todos os princípios constitucionais supra-mencionados promovem a eticidade (v.g. princípio da boa-fé), socialidade (v.g. princípios da boa-fé, da função social da propriedade e da solidariedade social), além da operatividade (conceitos abertos, que devem ser concretizados, prudentemente, pelo intérprete, que os atualiza de acordo com as conjunturas sociais).

                  Conforme visto, o art. 165 do Código Civil deve ser interpretado de modo a conferir à fraude pauliana o efeito de tornar os negócios jurídicos, fraudulentamente praticados, ineficazes perante os credores que obtiverem êxito no manejo da ação pauliana.

                  Outrossim, em se adotando a teoria da ineficácia relativa, chega-se à conclusão de que a sentença na ação paulina é meramente declaratória. Deve-se abandonar a tese de que se trataria de uma sentença constitutiva, como pregam alguns, talvez visando preservar a idéia de que a ação pauliana está sujeita ao prazo decadencial de quatro anos do art. 178.

                  Um jurista que se propõe a dar maior operabilidade ao Código Civil deve, por vezes, desconsiderar dispositivos que contrariem a lógica jurídica, como, por exemplo, o art. 178 que impõe prazo decadencial para o exercício de uma ação de caráter nitidamente declaratório tão-somente.

                  As fraudes estão, cada vez mais, sendo aperfeiçoadas por aqueles que buscam se esquivar do cumprimento dos deveres a todos impostos pelo ordenamento jurídico. Deve o jurista, igualmente, aperfeiçoar as interpretações das leis vigentes, de modo a operacionalizá-las no sentido de que possam ser aplicadas eficazmente na repressão a tais condutas. Para tanto, mister se faz despir-se de preconceitos e lançar mão de métodos interpretativos que vão além da simples compreensão gramatical, pois o Direito tem de evoluir!

 


REFERÊNCIAS

CAHALI, Yussef Said. Fraude Contra Credores. 2. ed. São Paulo: RT, 1999.

CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. 9. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. v. 1.

______. Lições de Direito Processual Civil. 8. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. v. 2.

DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. v. 4.

DINIZ, Maria Helena. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 1999;

______. Curso de Direito Civil Brasileiro. . São Paulo: Saraiva, 2000. v. 1.

FARIAS, Cristiano Chaves de.; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil – Teoria Geral. 5. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. 

FIUZA, César. Direito Civil: Curso Completo. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.

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______. Fraude Contra Credores: a Natureza da Sentença Pauliana. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.


Notas:

[1] “A sonegação de bens da herança por parte do herdeiro é um ilícito cujo efeito é a perda do direito que lhe cabe. É o que se depreende do art. 1992 do código civil: ‘O herdeiro que sonegar bens da herança, não os descrevendo no inventário quando estejam sem seu poder, ou, com o seu conhecimento, no de outrem, ou que os omitir na colação, a que os deva levar, ou que deixar de restituí-los, perderá o direito que sobre eles lhe cabia’”.

[2] “A renúncia à decadência prevista em lei é um ilícito cujo efeito é a nulidade do ato praticado, por força de previsão expressa do art. 209 do código civil: ‘É nula a renúncia à decadência fixada em lei’”.

[3] “A ingratidão do donatário é um ilícito cujo efeito é a autorização, ao doador, para revogar a doação. É o que se depreende do art. 557 do código civil: ‘Podem ser revogadas por ingratidão as doações: (i) se o donatário atentou contra a vida do doador ou cometeu crime de homicídio doloso contra ele; (ii) se cometeu contra ele ofensa física; (iii) se o injuriou gravemente ou o caluniou; (iv) se, podendo ministrá-los, recusou ao doador os alimentos de que este necessitava’”.

[4] Art. 42. A alienação da coisa ou do direito litigioso, a título particular, por ato entre vivos, não altera a legitimidade das partes.

[...]

§3º A sentença, proferida entre as partes originárias, estende os seus efeitos ao adquirente ou ao cessionário.

[5] Divergindo em parte, por não considerar a lesão e o estado de perigo como sendo vícios de consentimento, FIÚZA (2004, p. 227 e 230): “A vontade do lesado embora, sem dúvida prejudicada, não nasce viciada por engano quanto às circunstâncias, nem por violência ou esperteza de terceiro. Não se pode equiparar a lesão aos vícios do consentimento, mesmo porque, o fundamento da invalidade do negócio não é a dissonância entre a vontade real e a vontade declarada. [...] O estado de perigo é bastante semelhante à lesão e à usura. Na verdade, o que diferencia os três institutos é que naquele o perigo é mais pujante, quase sempre imediato.”

[6] São adeptos da teoria clássica da anulabilidade, dentre outros: Maria Helena Diniz (2000, p. 315), Silvio Rodrigues (2003, p. 238), Silvio Salvo Venosa (2005, p. 489), Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery (2005, p. 251).

[7] Adotam a tese da ineficácia relativa, por exemplo: Humberto Theodoro Júnior (2002, p. 01-02), Cândido Rangel Dinamarco (2004, p. 387), Alexandre Freitas Câmara (2004, p. 211), Carlos Roberto Gonçalves (2005, p. 419), Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2006, p. 457), Yussef Said Cahali (1999, p. 385).

[8] Considerando a sentença mandamental e a executiva lato sensu como espécies autônomas da sentença condenatória: Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart (2005, p. 408-409). Contra, advogando a tese de que há somente três espécies de sentenças: Alexandre Freitas Câmara (2003, p. 437).