A repartição vertical de receitas tributárias: um modelo que se torna obsoleto à luz de um federalismo fiscal cooperativo


Pormathiasfoletto- Postado em 01 abril 2013

Autores: 
BRUM, Francisco Valle

 

 

O presente trabalho tem por objetivo demonstrar, de forma sucinta, que o nosso modelo de repartição de receitas tributárias (arts. 157 e ss. da CF), a despeito deste autor ser fiel ao entendimento da necessidade de se respeitar as normas constitucionais, mostra-se ultrapassado, ainda mais quando se tem em mente a idéia de um federalismo fiscal cooperativo adotado (?) pela nossa Carta Política de 1988.

Antes de adentrar a discussão acerca da repartição tributária, mister ter presente que, pelo menos em tese, o nosso constituinte pretendeu adotar uma forma de Estado federativo qualificado por uma verdadeira cooperação entre os entes políticos. Esse tipo de federalismo, na esteira do magistério de Konrad Hesse (HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha, p. 189), caracteriza-se por ser uma tentativa de solucionar alguns dos problemas advindos da repartição de competências no Estado Federal. Como o próprio nome diz, aqui há uma verdadeira cooperação entre os entes federados, se aproximando, nesse ponto, do clássico federalismo norte-americano (dual ou dualista, adotado antes da crise da bolsa de 1929), que pretendia uma união de coordenação entre os Estados e a União (uma verdadeira relação horizontal, sem qualquer subordinação). Para o atual ministro do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, “a nova Carta Magna adotou o ‘federalismo cooperativo’, em que se registra um entrelaçamento de competências e atribuições dos diferentes níveis governamentais (...) caracterizado por uma repartição vertical e horizontal de competências, aliado à partilha dos recursos financeiros” (LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo. Pressupostos materiais e formais da Intervenção Federal no Brasil. São Paulo: RT, 1994, p. 20-21).

Em que pese o modelo de federalismo cooperativo se distanciar um pouco do antigo modelo norte-americano, uma vez que nele há uma parcela maior de competência atribuída à União (um verdadeiro privilégio à idéia de competências verticais), indubitavelmente o escopo do legislador constituinte foi buscar (ou, pelo menos, deveria ter sido buscado) uma relação de paridade entre as entidades políticas, e não tornar os Estados-membros e os Municípios vassalos do poder da União. Alexandre de Moraes assevera que “o federalismo cooperativo, portanto, trouxe como idéia central a necessidade de coordenação entre o exercício das competências federais e estaduais, sob a tutela da União” (MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada. São Paulo: Atlas, 2003, p. 625).

Pois bem.

Sem querer ser repetitivo, reitere-se que, não obstante essa tutela da União, não se pode pensar em um modelo fiscal cooperativo em que a União seja, quase que integralmente, a detentora das competências constitucionais em matéria fiscal. Na precisa lição de Kiyoshi Harada, “[j]á se tornou tradição entre nós a Constituição, após outorgar competência tributária privativa para cada uma das entidades políticas, prever o mecanismo de participação de uma entidade no produto da arrecadação de impostos de outra entidade. Esse critério visa, antes de mais nada, assegurar recursos financeiros suficientes e adequados às entidades regionais (Estados-membros) e locais (Municípios) para o desempenho de suas atribuições constitucionais. Entretanto, apesar do sempre enfatizado princípio federativo, insuscetível de supressão por emenda constitucional (art. 60, § 4º, I, da CF), não há como deixar de reconhecer o gigantismo do poder central” (HARADA, Kiyoshi. Direito financeiro e tributário. São Paulo: Atlas, 2008, p. 42). É aqui, pois, que reside o cerne da discussão. Será que esse modelo de repartição vertical, onde a União arrecada quase que integralmente os impostos e depois repassa o produto aos demais entes federados, seria o mais profícuo? Ou será que atribuir maiores competências tributárias aos Estados e Municípios não seria uma solução mais consentânea com um verdadeiro federalismo por cooperação? Trazendo à baila novamente os ensinamentos de Kiyoshi Harada “[à] primeira vista, pode parecer que o mecanismo de participação no produto de arrecadação de imposto alheio favorece as entidades políticas participantes, à medida que as livra dos custos de implantação, de fiscalização e de arrecadação. Na realidade, porém, tolhem as autonomias dessas entidades, porque inúmeros entraves burocráticos, inclusive os de natureza política, se interpõem, dificultando o recebimento oportuno dessas participações, sem contar as limitações e condicionamentos previstos na própria Carta Política e na legislação infraconstitucional, impondo o direcionamento dos recursos que lhes são transferidos” (HARADA, Kiyoshi. Direito financeiro e tributário. São Paulo: Atlas, 2008, p. 42).

Registre-se, por oportuno, que não se está criticando, inadvertidamente, os preceitos constitucionais. Uma regulação por um ente (no caso, a União) sobre os demais se mostra, em determinados casos, até salutar, como, v.g., na supracitada desvinculação dos custos de fiscalização e arrecadação dos tributos. Ocorre que algumas vezes não há um verdadeiro respeito a essa repartição constitucionalmente assegurada às entidades, por assim dizer, subordinadas. Nessa toada, mostra-se imprescindível a atuação do Poder Judiciário, notadamente do Supremo Tribunal Federal, para que se evitem abusos cometidos por algumas unidades políticas em detrimento das demais. Foi o que ocorreu em recente decisão da Corte Suprema, onde houve uma protelação de repasse financeiro (de um Estado para um Município) a pretexto da concessão de benefícios fiscais a empresas locais (RE 572.792-6). Em lúcido voto, o ministro Ricardo Lewandowski entendeu que, malgrado a Constituição de 1988 ter estendido em muito a autonomia dos entes federados, notadamente em matéria fiscal, as pessoas políticas não podem condicionar (salvo expressa determinação constitucional – art. 160, parágrafo único) o repasse das verbas públicas ao implemento de condições unilateralmente criadas por um ente federal. Ora, é cediço que não há hierarquia entre as pessoas políticas. O fato de, v.g., um Estado deter competência tributária em relação ao ICMS não lhe confere superioridade em relação a um Município no que tange à participação no produto da arrecadação desse imposto. Além disso, por expressa disposição constitucional, alguns impostos já nascem com dois titulares no que concerne ao produto da arrecadação (por exemplo, art. 158, I, CF) (HARADA, Kiyoshi. Vinculação, pelo município, das cotas do ICMS para garantia de operações de crédito: efeitos. In repertório IOB Jurisprudência, nº 3, fevereiro/99, p. 97). É o caso, também, do art. 158, IV, CF, que, embora o imposto seja arrecadado pelo Estado, integra de jure o patrimônio do Município, não podendo o ente maior dela dispor a seu talante, sob pena de grave ofensa ao pacto federativo, de resto, sanável, mediante o emprego da ultima ratio do sistema, qual seja, o instituto da intervenção federal, prevista, para tais hipóteses, no art. 34, V, “b”, da CF (excerto do voto do min. R. Lewandowski no RE 572.792-6).

É nesse ponto que os temas se convergem. Partindo-se da premissa de que um federalismo cooperativo pressupõe uma coordenação entre os entes, mas, ao mesmo tempo, tendo em vista que em determinados casos não há o repasse constitucionalmente outorgado aos entes políticos, não seria o momento de se criar uma repartição horizontal de competência tributária (e, conseqüentemente, das suas receitas), atribuindo aos Estados e Municípios a implementação e arrecadação direta de alguns tributos deferidos à União? Parece-me que sim. A medida, para mais de beneficiar as pessoas políticas que menos arrecadam, contribuiria para o desafogamento do Poder Judiciário, mormente da Suprema Corte. Fazendo uma comparação entre os modelos adotados em alguns países, Rogério Leite Lobo, em passagem brilhante, afirma que “(...) em dinâmica diametralmente oposta às políticas que vêm sendo adotadas nos outros Estados federais para sanar a crise centrípeta que terá acometido as bases do Federalismo Fiscal desses países (nos Estados Unidos da América e na Alemanha, ao menos (...), tem-se procurado estimular a arrecadação de tributos próprios dos entes locais, com a diminuição dos repasses verticais, ‘grants-in-aid’, subsídios, etc.), o Brasil vem apostando no incremento das transferências intergovernamentais (...)” (LOBO, Rogério leite. Federalismo Fiscal Brasileiro: discriminação das rendas tributárias e centralidade normativa. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006, p. 162. Trecho também citado no voto do min. Ricardo Lewandowski no RE 572.792-6).

Pelas razões expostas, passando ao largo da discussão referente à implementação de um imposto único, que, vagarosamente, está sendo debatido no âmbito do Congresso Nacional, repartir horizontalmente a competência para instituir e arrecadar os impostos parece ser uma medida mais acessível na tentativa de superação da brutal diferença de competências atribuídas aos entes políticos. Outrossim, enquanto não implementado um mecanismo idôneo para resolver esse impasse, o entendimento do min. Ricardo Lewandowski é o de que “para que a autonomia política concedida pelo constituinte aos entes federados seja real, efetiva, e não apenas virtual, cumpre que se observe com rigor a sua autonomia financeira, não se permitindo no tocante à repartição de receitas tributárias, qualquer condicionamento arbitrário por parte do ente responsável pelos repasses a que eles fazem jus”. Continua o ministro do Pretório Excelso, diante do caso concreto, afirmando que “[i]sso é exatamente o que se ocorre com a parcela do imposto a que se refere o art. 158, inc. IV, da Lei Maior, a qual não constitui receita do Estado, mas, sim, dos Municípios, aos quais pertencem de pleno direito” (passagem do voto no RE 572.792-6). A despeito do voto em análise debater o tema entre Estado e Município, parece que a verdadeira iniqüidade está mesmo entre a União e os demais entes. Os fundamentos expendidos no voto do eminente ministro poderiam ser, naturalmente, transladados para um debate de indevida retenção, pela União, de produtos de impostos que caberiam, constitucionalmente, às demais pessoas políticas.

Por derradeiro, consigne-se, novamente, que o desiderato deste pequeno artigo não é o de criticar o poder da União ou dos demais entes federados, mas sim uma tentativa (já muito debatida e até hoje sem solução) de aumentar a arrecadação dos entes menores, uma vez que somente atribuir competência material não basta, sendo, por óbvio, imprescindível que a eles sejam atribuídos produtos/arrecadações condizentes com o difícil trabalho de implementação de políticas públicas determinadas constitucionalmente. No dizer de Dalmo de Abreu Dallari, “quem confere competências, na verdade, está transferindo encargos, sendo imprescindível ao ente político as rendas adequadas para que possa desempenhá-las satisfatoriamente”, afirmando, ainda, que “sem autonomia financeira, a autonomia política de que, por definição, é dotado o membro da federação, será apenas nominal, porquanto não pode agir com independência aquele que não possui recursos próprios” (apud. LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo. Pressupostos materiais e formais da Intervenção Federal no Brasil. São Paulo: RT, 1994, p. 18). Por alguns desses motivos é que Kiyoshi Harada afirmou ser esta (repartição horizontal - sem, contudo, adotar esta nomenclatura) “a única forma de assegurar a independência político-administrativa às entidades componentes da Federação (conferindo-lhes autonomia financeira), por meio de tributos próprios, o que importa na reformulação da discriminação constitucional de rendas, e que torna cada vez mais difícil qualquer idéia de implantação do chamado imposto único” (HARADA, Kiyoshi. Direito financeiro e tributário. São Paulo: Atlas, 2008, p. 42).

 

 

 

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