Responsabilidade do profissional da saúde no esclarecimento equivocado do paciente para obter o seu consentimento livre e esclarecido


PorThais Silveira- Postado em 03 maio 2012

Autores: 
Mônica da Costa Serra
Clemente Maia S. Fernandes

Responsabilidade do profissional da saúde no esclarecimento equivocado do paciente para obter o seu consentimento livre e esclarecido


Mônica da Costa Serra, Clemente Maia S. Fernandes

Resumo: Ao paciente é necessário fornecer esclarecimentos sobre as possibilidades terapêuticas, apresentando os riscos, benefícios, prognóstico e custos de cada alternativa possível e indicada. Esta é uma determinação ética e jurídica. Não obstante, o profissional da saúde detém o conhecimento clínico/técnico/científico, e determina quais informações serão (ou não) fornecidas. O paciente decide submeter-se a um tratamento, fornecendo o seu Consentimento Livre e Esclarecido com base nos dados a ele apresentados. Infelizmente, pode ocorrer de alguns profissionais não fornecerem todas as informações necessárias a uma tomada de decisão esclarecida ou, depois de obtido o consentimento do paciente, apresentarem-lhe informação que cause sua desistência do tratamento inicialmente aceito. Esta última informação, se pertinente, e não se tratando de fato superveniente, deveria ter sido fornecida inicialmente. Porém, a informação pode não ser de todo verdadeira, e levar o paciente a decidir baseado, por exemplo, em riscos apresentados e mensurados de forma equivocada. A reabilitação crânio-facial da Articulação Têmporo-Mandibular (ATM), por meio de prótese de ATM, é indicada em muitas situações. Amiúde, pacientes que necessitam de tais próteses apresentam problemas funcionais e estéticos; a expectativa gerada com a reabilitação é grande. Este trabalho apresenta um caso e discute questões éticas e legais, incluindo a responsabilidade civil, do fornecimento parcial e inadequado de esclarecimentos a um paciente.

Palavras-chave: Consentimento Esclarecido; Responsabilidade Civil; Má Conduta Profissional; Ética Profissional; Bioética; Biodireito; Direito à Saúde; Direito Médico.

INTRODUÇÃO

Até a década de 1960, o atendimento na área da saúde teve como característica o paternalismo hipocrático, a beneficência. Os profissionais da saúde tratavam seus pacientes da forma que entendiam ser a melhor, com a intenção de cuidar e restabelecer a saúde dos mesmos. Porém, os pacientes normalmente não tinham participação alguma no processo de decisão sobre suas possíveis alternativas de tratamento, e sequer eram informados sobre as características de seu atendimento. O entendimento predominante até aquela época – amiúde tácito – era cuidar de seus pacientes da melhor forma possível, e a obrigação destes era seguir as orientações que lhes eram fornecidas.

Porém, em determinado momento, na década de 1960, os pacientes passaram a pleitear os seus direitos – direito à informação sobre sua saúde, sobre as possíveis alternativas de tratamento, e direito à decisão sobre seus corpos, sua saúde e suas vidas. Isto provocou uma significativa mudança de paradigmas.

Com o surgimento da Bioética, no início da década de 1970, e a proposta dos quatro pilares bioéticos no final da mesma década – autonomia, beneficência, não maleficência e justiça – o adequado esclarecimento ao paciente sobre sua condição de saúde e alternativas de tratamento, para que ele possa optar pela alternativa que julgar melhor, de acordo com seus valores pessoais, passou a ser conseqüência do atendimento ao princípio bioética da autonomia.

Ao mesmo tempo, normas éticas (deontológicas) e legais surgiram, determinando o respeito à autonomia do paciente – lembrando que esta também possui limites. Assim, no Brasil, o Código de Defesa do Consumidor 3, o Código de Ética Médica 5, e o Código de Ética Odontológica 6, são exemplos de normas que obrigam o profissional ao esclarecimento de seu paciente.

O Código do Consumidor, aplicável às relações entre profissional da saúde/paciente, estatui:

“Art. 31. A oferta e apresentação de produtos ou serviços devem assegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre suas características, qualidades, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, entre outros dados, bem como sobre os riscos que apresentam à saúde e segurança dos consumidores.”

O Código de Ética Médica 5 em vigor, determina:

“Capítulo IV – DIREITOS HUMANOS

É vedado ao médico:

Art. 22 – Deixar de obter consentimento do paciente ou de seu responsável legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte.

Capítulo V – RELAÇÃO COM PACIENTES E FAMILIARES

É vedado ao médico:

Art. 34 – Deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar dano, devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu representante legal.”

O Código de Ética Odontológica 6, em seu, determina:

“CAPÍTULO V – DO RELACIONAMENTO

SEÇÃO I – COM O PACIENTE

Art. 7o – Constitui infração ética:

IV . deixar de esclarecer adequadamente os propósitos, riscos, custos e alternativas do tratamento;

XII – iniciar qualquer procedimento ou tratamento odontológico sem o consentimento prévio do paciente, ou do seu responsável legal, exceto em casos de urgência ou emergência.”

Em nível internacional, a Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos 16, aprovada em Assembléia Geral pelos 192 países-membros da UNESCO em 19 de outubro de 2005, explicita, nos seus artigos 5o e 6o, a necessidade do Consentimento Livre e Esclarecido:

“Art. 5o  - Autonomia e responsabilidade individual

A autonomia das pessoas no que respeita à tomada de decisões, desde que assumam a respectiva responsabilidade e respeitem a autonomia dos outros, deve ser respeitada. No caso das pessoas incapazes de exercer a sua autonomia, devem ser tomadas medidas especiais para proteger os seus direitos e interesses.

Art. 6o  - Consentimento

1. Qualquer intervenção médica de caráter preventivo, diagnóstico ou terapêutico só deve ser realizada com o consentimento prévio, livre e esclarecido da pessoa em causa, com base em informação adequada. Quando apropriado, o consentimento deve ser expresso e a pessoa em causa pode retirá-lo a qualquer momento e por qualquer razão, sem que daí resulte para ela qualquer desvantagem ou prejuízo.”

Vale lembrar que o esclarecimento deve ser fornecido tanto em casos de assistência à saúde como em pesquisas envolvendo seres humanos. Desta maneira, depois de devidamente esclarecido, o paciente/sujeito da pesquisa consente (ou não) em se submeter a determinado tratamento ou experimento, por meio de seu Consentimento Livre e Esclarecido (CLE). A formalização do CLE dá-se por meio de um documento denominado Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) 4, 7, 13.

Como anteriormente mencionado, o profissional da saúde tem o dever bioético, ético e jurídico de esclarecer adequadamente o seu paciente, antes do início do tratamento. As alternativas, riscos, prós, contras, custos, por exemplo, precisam ser apresentados, e em linguagem simples, acessível ao nível de compreensão do paciente. Se não o fizer, poderá responder ética e legalmente pela omissão de informações. A necessidade de obtenção do consentimento após o devido esclarecimento é voz uníssona entre os autores da área 1, 4, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15.

ESCLARECIMENTO INADEQUADO PARA A OBTENÇÃO DO CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

O profissional da saúde é o detentor do conhecimento clínico/técnico/científico que deverá ser transmitido ao paciente. Na prática, ele decide o que informar – e é responsável pelos esclarecimentos fornecidos.

Há profissionais que se empenham no correto esclarecimento de seus pacientes. Todavia, infelizmente, pode haver profissionais que, deliberada e conscientemente, não fornecem todas as informações necessárias ao devido esclarecimento de seus pacientes, profissionais que manipulam as informações a seu bel-prazer, com o objetivo de induzir o paciente a tomar (ou não) uma decisão de acordo com o que os profissionais desejam, de acordo com seus próprios interesses. Nesta situação, o paciente é o grande prejudicado – confia em um profissional que lhe fornece informações inadequadas, ou mesmo não verdadeiras, e com base nestas, toma a sua decisão. Algumas vezes, a informação equivocada ou incompleta é fornecida no início do atendimento. Outras vezes, é fornecida após a obtenção do Consentimento Livre e Esclarecido (CLE), determinando a desistência de um tratamento/procedimento anteriormente aceito. Óbvio que podem ocorrer fatos supervenientes, e que devem ser informados tão logo ocorram. Não obstante, não sendo este o caso, esta última informação, se pertinente, deve ser fornecida no início do atendimento.

A reabilitação crânio-facial da Articulação Têmporo-Mandibular (ATM), por meio de prótese de ATM, é indicada em muitas situações. Amiúde, pacientes que necessitam de tais próteses apresentam problemas funcionais e estéticos; a expectativa gerada com a reabilitação é grande. Todos os esclarecimentos, tanto relacionados à prótese de ATM, como procedimento cirúrgico e seus riscos, devem ser fornecidos antes do paciente consentir em receber tal prótese. Uma informação de última hora, apresentando um risco de infecção, por exemplo, pode causar a desistência do tratamento, e com isso a frustração do paciente, quebra de suas expectativas, além de subtrair-lhe a oportunidade de um adequado, indicado e necessário tratamento reabilitador. Se este risco – causador da desistência do paciente - não houver sido bem dimensionado, causará um dano ao paciente, pois será determinante de sua desistência. O paciente somente tem condições de exercer a sua autonomia se for adequadamente esclarecido. Se o esclarecimento que recebeu for inadequado, o mesmo, na prática, estará fazendo uma escolha com base em informações que não são pertinentes, o que acarreta em perda de sua autonomia.

Os profissionais que agem desta forma – prestando informações inadequadas a seus pacientes – devem ser responsabilizados tanto ética como juridicamente. Com informações inadequadas ou não verdadeiras, induzem seus pacientes a um julgamento equivocado, prejudicando-os.

A responsabilidade jurídica cinde-se em responsabilidade civil e penal. A primeira envolve, antes de tudo, o dano, o prejuízo, o desfalque, o desequilíbrio ou descompensação no patrimônio de alguém 15.

O Código Civil 2 estatui o dever de indenizar, afirmando:  

“Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

Art. 927 – Aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.”

O Código de Defesa do Consumidor 3 determina o direito do consumidor (paciente) à informação e assegura, explicitamente, a indenização por danos morais:

“Art. 6º São direitos básicos do consumidor:

III - a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos que apresentem;

VI - a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos;”

O profissional que não esclarece adequadamente o seu paciente, fere dispositivos deontológicos de sua categoria profissional. Exemplificando com profissionais médicos e cirurgiões-dentistas, os mesmos, descumprindo respectivamente os Códigos de Ética Médica e Odontológica, ficam sujeitos às sanções de seus Conselhos profissionais.

Tirar do paciente o direito a um tratamento indicado e necessário, não lhe fornecendo informações adequadas e pertinentes, ou mesmo fornecendo-lhe informações não pertinentes, equivocadas, prejudicando o seu julgamento, é atitude que pode obrigar o profissional que assim age a indenizar o paciente, pois, com sua atitude, causa-lhe um dano moral, passível de reparação pecuniária.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O dever de somente iniciar tratamento ou realizar procedimento com o consentimento do paciente é embasado em normas deontológicas e jurídicas. Porém, este dever deve ser obtido somente após o paciente ter sido adequadamente esclarecido, pois só então estará apto a escolher. Se o profissional presta informações inadequadas, infundadas, ou mesmo não verdadeiras, equivocadas, subtrai do paciente a possibilidade de exercitar sua autonomia, e de até mesmo escolher a opção que será melhor para o seu tratamento e para a sua saúde. Agindo assim, o profissional causa sérios prejuízos ao paciente, e deve responder tanto eticamente, perante o seu Conselho profissional, como juridicamente, indenizando o paciente pelo mal que lhe causou.

 

Referências
1. BAÚ, M.K. Capacidade jurídica e consentimento informado. Bioética, v.8, 285-96, 2000.
2. BRASIL. Código Civil. Lei no 10.406, 10 de janeiro de 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm Acesso em 10 de setembro de 2011.
3. BRASIL. Código de proteção ao consumidor. Lei no 8.078, 11 set. 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078.htm Acesso em 10 de setembro de 2011.
4. CLOTET, J.; GOLDIM, J.R.; FRANCISCONI, C.F. Consentimento informado e a sua prática na assistência e pesquisa no Brasil.  Porto Alegre: Edipucrs, 2000. 130p.
5. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA Código de Ética Médica. Resolução CFM 1.931, de 17 de setembro de 2009. Disponível em: http://www.portalmedico.org.br/novocodigo/integra.asp Acesso em 10 de setembro de 2011.
6. CONSELHO FEDERAL DE ODONTOLOGIA  Código de Ética Odontológica. Resolução CFO 42, de 20 de maio de 2003. Disponível em: http://cfo.org.br/wp-content/uploads/2009/09/codigo_etica.pdf  Acesso em 10 de setembro de 2011.
7. FRANÇA, G.V. Medicina Legal. 8.ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan. 2008. 629p.
8. GARCÍA AZNAR, A. sobre el respeto a la autonomía de ls pacientes. In: CASADO, M. (Coord) Estudios de bioética y derecho.  Valencia: Tirant lo Blanch, 2000. p. 197-212.
9. GAUDERER, E.C. Os direitos do paciente. São Paulo: Círculo do Livro, 1991. 251p.
10. KFOURI NETO, M.  Responsabilidade civil do médico. 2. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, 580p.
11. MUÑOZ, D.R., fortes, P.A.C.  O princípio da autonomia e o consentimento livre e esclarecido. In: COSTA, S.I.F., OSELKA, G., GARRAFA, V.  Iniciação à bioética. Brasília: Conselho Federal de Medicina, 1998. cap. 2, p.53 – 70.
12. OLIVEIRA M.L.L. Responsabilidade Civil Odontológica. Belo Horizonte: Del Rey, 2000. 349 p
13. SERRA, M.C. Responsabilidade profissional em odontologia: cuidados observados por cirurgiões-dentistas com a documentação odontológica, em consultórios particulares Araraquara, 2001. 248p. Tese (Livre-Docência em Odontologia Legal) Faculdade de Odontologia, Universidade Estadual Paulista.
14. SIMÓN P. El Consentimiento Informado. Madrid: Editorial TriaCastela, 2000.  479 p.
15. STOCO, R. Tratado de Responsabilidade Civil. Doutrina e jurisprudência. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2007. 1949p.
16. UNIVERSAL DECLARATION ON BIOETHICS AND HUMAN RIGHTS. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0014/001461/146180E.pdf Acesso em 10 de setembro de 2011.

O Âmbito Jurídico não se responsabiliza, nem de forma individual, nem de forma solidária, pelas opiniões, idéias e conceitos emitidos nos textos, por serem de inteira responsabilidade de seu(s) autor(es).

Informações Sobre o Autor

Mônica da Costa Serra
Cirurgiã-dentista pela FOAr/UNESP, Advogada pela UNIARA, Licenciada em Letras pela FCLAr/UNESP, Especialista em Odontologia Legal pelo CFO, Mestre e Doutora em Odontologia pela FOAr/UNESP, Pós-Doutora em Bioética pela Universidad Complutense de Madrid, Pós-Doutoranda em Direito Internacional da Saúde pela USP, Livre-Docente em Odontologia Legal pela FOAr/UNESP, Líder do Núcleo de Ciências Forenses, Bioética, Biodireito e Ética em Ciência e Tecnologia de Araraquara, Departamento de Odontologia Social, Faculdade de Odontologia de Araraquara, UNESP Clemente Maia S. Fernandes
Cirurgião-dentista pela FO-UFPE, Graduando em Direito pela UNIARA, Especialista em Odontologia Legal pela UFPE e em Cirurgia e Traumatologia Bucomaxilofacial pela FOP-UPE e pela FO-UFPE, Mestre em Prótese Bucomaxilofacial pela FOUSP, Doutor em Ciências Odontológicas pela FOUSP, Pós-Doutorando em Direito Internacional da Saúde pela USP, Coordenador do Curso de especialização em Odontologia Legal da APCD-Araraquara, “Fellowship” pela Université Pierre et Marie Curie (Paris VI), Hôpital Pitié-Salpêtrière, Líder do Núcleo de Ciências Forenses, Bioética, Biodireito e Ética em Ciência e Tecnologia de Araraquara, Departamento de Odontologia Social, Faculdade de Odontologia de Araraquara, UNESP.

Informações Bibliográficas

SERRA, Mônica da Costa. FERNANDES, Clemente Maia S.. Responsabilidade do profissional da saúde no esclarecimento equivocado do paciente para obter o seu consentimento livre e esclarecido. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, 93, 01/10/2011 [Internet].
Disponível em http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_.... Acesso em 03/05/2012.