A revogabilidade das tutelas de urgência no Direito Previdenciário


PorJeison- Postado em 18 fevereiro 2013

Autores: 
MENEZES, Raphael Vianna de.

 

A doutrina contemporânea sustenta, com acerto, que o hodierno direito processual civil deve ser analisado sob a ótica dos direitos fundamentais. Não é à toa que o epíteto “Direito Processual Civil Constitucional”, cuja fonte inspiradora seria o princípio da dignidade da pessoa humana, vem ganhando força entre os noveis processualistas.

O princípio da dignidade da pessoa humana é fundamento suficiente para que a regra da provisoriedade inerente às tutelas de urgência seja suavizada, não podendo, todavia, servir de manto hígido que leve ao desvirtuamento do sistema processual, sob pena de esvaziamento de seu conteúdo.

            O presente estudo tem por escopo examinar, à luz da jurisprudência do STJ, a tutela de urgência (cautelar ou antecipatória) que confere a célere fruição do benefício previdenciário ou assistencial pelo segurado ou beneficiário do INSS e as consequências jurídicas advindas da sua posterior revogação por decisão definitiva.

            As tutelas cautelares, como cediço, objetivam assegurar o resultado útil do processo, prevenindo o direito pleiteado pela parte, não possuindo, em regra, cunho satisfativo, já que não antecipa a prestação jurisdicional perseguida.

            Para a concessão da medida cautelar, impõe-se a comprovação de dois requisitos, a saber: o fumus boni iuris e o periculum in mora. A fumaça do bom direito traduz-se na aparência do direito cautelar, requisito, conforme se verá, menos robusto do que aqueles exigidos para o deferimento da antecipação de tutela.

            Entretanto, a tutela cautelar se mostrou, ao longo do tempo, insuficiente para atender aos anseios da sociedade.

Passou-se a defender algo mais efetivo que a medida cautelar, para antecipar, na medida do necessário à efetiva tutela jurisdicional, providências de mérito, sem as quais a tardia solução do processo acabaria por configurar indesejável quadro de “denegação de justiça (...) ( THEODORO JÚNIOR, 2008. p. 670)

            O embrião da tutela antecipada remonta ao ideal de efetividade e celeridade processual. De fato, a morosidade da tramitação processual gera injustiça flagrante, situação que não guarda compatibilidade com o princípio do acesso à justiça. A justiça atrasada não é justiça; senão injustiça qualificada e manifesta(Rui Barbosa).

            Nesse contexto, o Digesto Processual Civil quedou modificado pela lei nº 8.952/94, a qual concebeu o instituto da tutela antecipada.

            Coube à lei nº 8.952, de 13.12.94, a tarefa de construir a sistemática ampla e bem-estruturada da antecipação provisória de tutela satisfativa, já então encarada como uma das exigências do devido processo legal, em sua visão mais dinâmica e atual de pleno acesso à justiça, com a carga máxima de efetividade da prestação jurisdicional. (THEODORO JÚNIOR, 2008. p. 674)

            Sobreleva gizar, desde já, que interessa para o presente arrazoado a tutela antecipada de urgência disposta no art. 273, “caput” e 273, I, do Código de Ritos.

            A antecipação de tutela nada mais é do que a entrega célere do bem da vida, sendo um importante instrumento de acesso à justiça. Ao possuir hialino cunho satisfativo, a tutela antecipada de urgência adianta os efeitos do provimento final, possibilitando a plena fruição do direito pelo beneficiário da medida.

            Sobre o instituto em comento, colhe-se o escólio de Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery: (...) é providência que tem natureza jurídica mandamental, que se efetiva mediante execução lato sensu, com o objetivo de entregar ao autor, total ou parcialmente, a própria pretensão deduzida em juízo ou os seus efeitos.(NERY JÚNIOR e NERY, 2001, p.730).         

            Os requisitos para concessão da medida antecipatória estão presentes no art. 273, “caput” e 273, I, do CPC, verbis:

Art. 273. O juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que, existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da alegação e: (Redação dada pela Lei nº 8.952, de 1994)

I - haja fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação; ou (Incluído pela Lei nº 8.952, de 1994)

            Prova inequívoca é prova tão robusta que não permite equívocos ou dúvidas, infundindo no espírito do juiz o sentimento de certeza e não mera verossimilhança. Convencer-se da verossimilhança, ao contrário, não poderia significar mais do que imbuir-se do sentimento de que a realidade fática pode ser como a que descreve o autor” (DINAMARCO, 1995, p. 143).

A verossimilhança das alegações, por sua vez, corresponde à aparência da verdade, onde o magistrado, por meio de juízo de probabilidade, forma seu convencimento acerca da situação fática narrada no processo.

Demais disso, impõe-se a presença do periculum in mora, consubstanciado pelo risco iminente de dano irreparável ou de difícil reparação.

Como requisito negativo, o art. 273, par. 2º, do Código de Ritos prevê que não se concederá a antecipação da tutela quando houver perigo de irreversibilidade do provimento antecipado.

            Questão inçada de controvérsia, ao menos no espectro previdenciário, concerne à revogabilidade das tutelas de urgência (antecipada ou cautelar) cassada posteriormente em sentença.

            De chofre, impende destacar que o art. 811 do CPC se aplica subsidiariamente à tutela antecipada, motivo pelo qual as tutelas de urgências acarretam, em regra, a responsabilização da parte beneficiada pela execução da medida. Cuida-se da teoria do risco-proveito, inerente à precariedade de ambas.

            Ser provisória significa que a tutela de urgência tem um tempo de duração predeterminado, não sendo projetada para durar para sempre. A duração da tutela de urgência depende da demora para obtenção da tutela definitiva, porque, uma vez concedida ou denegada, a tutela de urgência deixará de existir (NEVES, 2011, p. 1146).

            Com efeito, a tutela de urgência revogada a posteriori por decisão definitiva deveria implicar o retorno das partes ao status quo ante, visto que o instituto em testilha possui natureza precária, não podendo se sobrepor, desta feita, à decisão definitiva, máxime porque esta queda exarada após aperfeiçoada a cognição exauriente.

            Entretanto, a tendência moderna do direito processual civil não se coaduna com a mera aplicação literal das regras processuais, impondo-se que o exegeta interprete a norma processual com esteio, sobretudo, nos direitos fundamentais insculpidos na Carta Política de 88.

            Por ilação, a regra da precariedade, inerente às tutelas de urgência (antecipada e cautelar), não pode ser aplicada de forma absoluta, sob pena de manifesta violação ao princípio da estabilidade das relações jurídicas e, em última análise, ao princípio da dignidade da pessoa humana.

            No caso concreto, o magistrado deve sopesar os direitos fundamentais que eventualmente se encontram em colisão, sacrificando parcialmente determinado bem em prol de outro. Para tal desiderato, cai como uma luva o princípio constitucional implícito da proporcionalidade, este corolário do estado democrático de direito.

            Nessa senda, imperioso notar que o princípio da proporcionalidade possui dupla função: 1) impede as arbitrariedades perpetradas pelo Poder Público (faceta negativa) e 2) assegura proteção ao vulnerável (faceta positiva).

            Não se pode olvidar, outrossim, que a proporcionalidade em sentido estrito (lei da ponderação) serve como importante instrumento de interpretação e aplicação do direito.

            Especificamente em relação ao direito previdenciário, é assente o posicionamento do STJ no sentido da impossibilidade de devolução dos valores recebidos pelo segurado ou beneficiário da autarquia previdenciária por força de tutela antecipada posteriormente revogada, verbis:

PREVIDENCIÁRIO. BENEFÍCIO RECEBIDO DE BOA-FÉ. IMPOSSIBILIDADE DE RESTITUIÇÃO. CARÁTER ALIMENTAR.   INTERPRETAÇÃO DE LEI FEDERAL. 1. Esta Corte Superior entende que, em se tratando de verbas de natureza alimentar, como as decorrentes de benefícios previdenciários, os valores pagos pela Administração Pública por força de antecipação de tutela posteriormente revogada, não devem ser restituídos. 2. Não há que se falar em declaração de inconstitucionalidade do art. 115 da Lei 8.213/91, porquanto o Superior Tribunal de Justiça entendeu que ele regula somente os descontos de benefícios pagos a maior por força de ato administrativo do INSS, não se aplicando à hipótese de valores percebidos por força de decisão judicial. 3. Agravo regimental não provido. (AgRg no Resp  1343286/SP, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, julgado em 18/10/2012, DJe 26/10/2012)

            Orientando-se pelo mesmo norte, a Turma Nacional de Uniformização (TNU) editou a Súmula 51: Os valores recebidos por força de antecipação dos efeitos de tutela, posteriormente revogada em demanda previdenciária, são irrepetíveis em razão da natureza alimentar e da boa-fé no seu recebimento.

            É que, em casos deste jaez, os princípios da efetividade da jurisdição, da proporcionalidade, da dignidade da pessoa humana e da boa-fé mitigam sobremaneira outros direitos fundamentais objeto de colisão, como, à guisa de ilustração, o direito fundamental à higidez do patrimônio público.

            Deveras, admitir-se a revogabilidade da medida de urgência, no campo  previdenciário, traria gravame insuportável ao autor da demanda ajuizada contra o ente previdenciário, eis que, além de se ver privado do benefício outrora incorporado a seu patrimônio, seria compelido a proceder sua devolução ao erário, conquanto os benefícios previdenciários, como visto, ostentem caráter alimentar. Assim sendo, o perigo de irreversibilidade do provimento cede espaço, mormente, ao direito à vida.

            Algumas situações, contudo, merecem tratamento diferenciado, sob pena de banalização da regra da provisoriedade, inerente às tutelas de urgência.

            Compulsando a jurisprudência pátria, entrevê-se que o entendimento esposado no aresto do STJ supracitado e na Súmula 51 da TNU é adotado irrestritamente em quaisquer hipóteses envolvendo benefícios previdenciários ou assistenciais deferidos por meio da tutela de urgência (cautelar ou antecipatória) posteriormente revogada.

            Em que pese o caráter alimentar dos benefícios previdenciários e assistenciais, a irrepetibilidade da verba não deve ser aplicada de modo absoluto, o que poderia, à evidência, levar o sistema previdenciário à bancarrota.

            Com efeito, nas situações em que a tutela de urgência quedar deferida ex officio pelo Juiz, independentemente de requerimento formal da parte, não é crível que haja a devolução da quantia auferida, mesmo que a medida seja depois revogada. Conquanto  tenha havido, na situação ventilada, o proveito econômico indevido, a parte autora não assumiu o risco da futura revogabilidade, à míngua de pedido nesse sentido. 

            A possibilidade de concessão de ofício da medida cautelar, assevere-se, é abarcada pela Lei dos Juizados Especiais Federais (Lei 10.259/2001), consoante se depreende do art. 4º (O Juiz poderá, de ofício ou a requerimento das partes, deferir medidas cautelares no curso do processo, para evitar dano de difícil reparação).

            Estando a previsão de concessão de ofício, expressamente, contida na legislação de regência dos Juizados Especiais Federais, os quais têm por norte, sobretudo, a celeridade, não é razoável exigir que o poder geral de cautela do magistrado seja interpretado em desfavor da parte beneficiada com o deferimento da cautela, máxime porque, por vezes, o postulante sequer se encontra assistido por patrono.

            Situação diversa exsurge quando a parte autora, devidamente representada por advogado, postula a antecipação da prestação jurisdicional na Justiça Comum. Nessa situação específica, é natural que se assuma o ônus da devolução dos valores auferidos indevidamente, não sendo justificativa suficiente a impossibilidade de repetição do montante recebido indevidamente ao argumento da natureza alimentar do benefício, impondo-se a responsabilização objetiva do beneficiado pela execução da medida nos moldes do art. 811 do Digesto Processual Civil.

            Entendimento contrário, à toda evidência, desvirtuaria o sistema processual vigente, privilegiando demasiadamente a tutela de urgência (a qual é deferida, via de regra, através de cognição sumária e initio litis) em detrimento da sentença, havendo manifesta banalização do instituto. Ao assumir o risco do pleito antecipatório, o demandante encontra-se previamente ciente da possibilidade de revogação do provimento de urgência a qualquer tempo.

            Saliente-se, por oportuno, que a prática forense demonstra que as tutelas antecipada e cautelar, ao menos na órbita previdenciária, quase sempre são pleiteadas na peça vestibular, não sendo incomuns decisões genéricas concessivas da tutela de urgência, que sequer fazem alusão ao caso concreto.

            Não se critica o fato da padronização de decisões, medida esta que, nas demandas de massa, mostra-se recomendável, desde que, por óbvio, haja o exame criterioso da situação posta em juízo.

            A censura reside, em verdade, na aplicação do denominado “princípio do tadinho” por alguns juízes:

Alguns magistrados mais sensíveis concedem benefícios apenas com base no 'princípio do tadinho', Outros, porém, sentem-se os 'donos do cofre' e acreditam que eventual flexibilização de alguns rigores da norma, ainda que seja para atender aquelas situações de extremada gravidade, levarão necessariamente o sistema ao colapso por falta de recursos. Há também a manipulação inadequada do princípio do retrocesso, os quais podem servir de 'falso fundamento', tanto para negar quanto para reconhecer direitos previdenciários e sociais. Esta falta de critérios racionais nas decisões gera insegurança jurídica e multiplicação de demandas por falsas e ilusórias expectativas criadas para a população. (LUGON. LAZZARI- Org. 2007, p. 19).

            O beneplácito pretoriano culmina por obstar que o INSS recupere o montante irregularmente incorporado ao patrimônio do segurado/beneficiário, mesmo nos casos em que houve seu requerimento expresso. Isso acaba por incentivar toda sorte de pedidos envolvendo a antecipação célere da prestação jurisdicional.

            À guisa de conclusão, constatamos que:

1)      O direito processual civil moderno deve ser examinado sob o viés constitucional;

2)      A regra da provisoriedade inerente às tutelas de urgência (antecipatória ou cautelar), de acordo com a jurisprudência pátria, não se aplica ao direito previdenciário, já que os benefícios previdenciários e assistenciais ostentam natureza alimentar, não estando, pois, sujeitos à repetição;

3)      O exagerado ativismo judicial desvirtua o sistema processual vigente, causando, ademais, danos ao patrimônio público, razão  pela qual seria salutar a alteração do paradigma jurisprudencial em comento com o fito de viabilizar, ao menos, a recuperação dos valores pecuniários pagos àqueles que pleitearam (assumindo, portanto, o risco) o provimento de urgência posteriormente revogado.

            REFERÊNCIAS

            DINARMARCO. Cândido Rangel.  A Reforma do Código de processo Civil. São Paulo, Malheiros, 1995, p. 143.

            LUGON, Luiz Carlos de Castro; LAZZARI, João Batista. Curso Modular de Direito Previdenciário, Editora Conceito, Florianópolis: 2007.

            NERY JÚNIOR, Nelson, NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado e Legislação Processual Civil Extravagante em Vigor: Atualizado até 22.02.2001. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p.730.

             NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. São Paulo: Método, 2011. p. 1146.

             NUNES, Elpídio Donizetti. Curso Didático de Direito Processual Civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.

            THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. V. 2. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 670.

            .  Curso de Direito Processual Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 674.

 

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