"A Súmula 696 do STF e a proposta de suspensão condicional do processo criminal "


Porgiovaniecco- Postado em 25 setembro 2012

Autores: 
LEAL, João José.

 

 

1. Introdução

Ninguém esquece do entusiasmo unânime com que a doutrina brasileira recebeu a vigência da Lei Nº 9.099/95. E não poderia ser diferente, pois foi ela promulgada na esteira de idéias e princípios processuais verdadeiramente inovadores: simplicidade, informalidade e celeridade na atividade da prestação jurisdicional. Com fundamento nessas idéias, a Lei dos Juizados Criminais trouxe consigo uma nova forma de justiça criminal, que considera a conciliação e a transação penais formas política e juridicamente mais adequadas de solução dos conflitos gerados pelas condutas delituosas de menor potencial ofensivo.

Hoje, pode-se dizer que, com a promulgação Lei 9.099/95, ficou superada a concepção de uma processualística armada apenas para decidir sobre conflitos necessariamente antagônicos e irreconciliáveis. E isto é indiscutivelmente positivo. Porém, ninguém desconhece as inúmeras dúvidas e divergências que emergiram da interpretação e aplicação de suas normas: natureza jurídicopenal da transação; procedimento cabível no caso de não pagamento da multa aplicada por transação, etc.

Uma crítica levantada ao texto da Lei dos Juizados Criminais, desde o primeiro momento de sua vigência, refere-se à forma lacônica e insuficiente com que foi disciplinada a Suspensão Condicional do Processo Criminal. Instituto verdadeiramente inovador e de grande impacto despenalizador, pela natureza de maior gravidade das condutas ali referidas e por seu vasto campo de abrangência, a suspensão condicional do processo mereceu, do longo texto da Lei 9.099/95, apenas o artigo 89 e seus sete parágrafos.

 

Há uma contradição evidente entre a forma minuciosa com que o legislador disciplinou o procedimento relativo aos institutos da composição e da transação, de competência do Juizado Especial Criminal e o laconismo ou lacunismo com que tratou da Suspensão Condicional do Processo, instituto este da competência da justiça criminal comum e que beneficia os autores das infrações de médio potencial ofensivo.

Em conseqüência dessa sumariedade normativa, aconteceu o inevitável: relevantes questões de natureza procedimental e mesmo material foram completamente negligenciadas pelo legislador. Entre tantas outras, podemos mencionar as seguintes: forma, alcance e conteúdo da proposta de suspensão; possibilidade ou não de concessão de um segundo benefício; forma, quantum e, principalmente, momento ou prazo para o ressarcimento do dano; procedimento ou alternativa processual cabível, no caso de recusa ou omissão do Promotor de Justiça em formular a proposta de suspensão. Isto sem mencionar a ausência completa de qualquer referência à pessoa da vítima, principal interessada no resultado do acordo sobre o ressarcimento do dano por ela sofrido.

Sem qualquer justificativa para essa economia normativa, ficou a explicação de que o instituto em apreço estava disciplinado em outro projeto de lei, mas sua inserção no corpo do projeto da então futura Lei 9.099/95 se fez no último momento e, por isso, de forma atropelada, para aproveitar a oportunidade de uma irrecusável carona legislativa.
Neste trabalho, pretendemos resgatar um pouco das discussões e divergências ocorridas na doutrina e jurisprudência, até a publicação, em 09.10.2003, da Súmula 696, do STF sobre a faculdade conferida ao representante do Ministério Público para propor a suspensão condicional do processo criminal.

2. Suspensão Condicional do Processo como Direito Subjetivo do Acusado

A norma que trata da matéria (art. 89, caput, da lei em referência) está assim redigida: “O Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo, por dois a quatro anos” (...).

É sabido que o sentido semântico do verbo poder passou a ter um significado próprio na linguagem jurídicopenal. Tanto para a doutrina quanto para a jurisprudência, poder não tem mais o significado de faculdade para agir ou decidir com liberdade ou completa discricionariedade sobre o solução processual mais adequada ao caso concreto.

A doutrina penal, na atividade hermenêutica de estabelecer o sentido de certas normas concessivas de benefícios penais e processuais penais, consagrou o entendimento de que o verbo poder, empregado em seu tempo presente (pode) ou futuro (poderá), tem o sentido de um condicionante poder-dever. A mesma compreensão tem sido adotada pela práxis judiciária. Em conseqüência, reunidas as condições ou pressupostos estabelecidos na lei positiva material ou instrumental, o sentido facultativo contido no verbo poder transforma-se em dever, cabendo ao juiz conceder o benefício ao acusado ou condenado. Tem sido esta a interpretação atribuída às normas reconhecedoras dos benefícios previstos nos arts. 21, caput (2ª parte), 26, parágrafo único, 29, § 1º e 77, caput, entre outros.

Se a redação do art. 89, caput, da Lei 9.099/95, estabelece que “o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo”, para boa parte da doutrina, a interpretação deste dispositivo não tem como ser diferente: trata-se, aqui também, de um poder-dever. Para esses doutrinadores, na análise da questão específica sobre a oferta da proposta de suspensão, deve ser reiterada a leitura hermenêutica dispensada aos demais favores legais acima referidos: a suspensão condicional do processo criminal é, portanto, um direito subjetivo público do acusado.

Em conseqüência, preenchidos os requisitos ou pressupostos estabelecidos na referida norma, surge um direito subjetivo para o acusado e isto torna obrigatória a oferta da suspensão pelo representante do Ministério Público. Não o fazendo, caberá ao juiz, de ofício ou por provocação do acusado, ofertar a proposta de suspensão do processo. (Neste sentido, ver: GOMES, Luiz Flávio. Suspensão Condicional do Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 169; BITENCOURT, Cezar Roberto. Juizados Especiais Criminais e Alternativas à Pena de Prisão. Porto Alegre: 1995, p. 118; LOPES, Maurício Antônio Ribeiro e FIGUEIRA JUNIOR, Joel Dias. Comentários à Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996, p. 390-1; GRINOVER, Ada Pellegrini Grinover et allii. Juizados Especiais Criminais - Comentários à Lei 9.099, de 26.09.1995. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996, p. 210; ANDRADA, Doorgal Gustavo de. A Suspensão Condicional do Processo Penal. Belo Horizonte: Del Rey, 1996, p. 63). Destes autores, Luiz Flávio Gomes e Cezar Roberto Bitencourt somente admitem a concessão da suspensão do processo, sem a concordância do representante do Ministério Público, no caso de requerimento do acusado. Portanto, não aceitam a concessão de ofício pelo juiz.

3. Proposta de Suspensão é Atribuição Privativa do Ministério Público

Outra parte da doutrina, no entanto não admite que o juiz possa conceder, de ofício ou a requerimento do acusado, a suspensão condicional do processo. Sendo o Ministério Público o titular exclusivo da ação penal, observados todos os requisitos objetivos e subjetivos legais, cabe-lhe decidir sobre a conveniência políticojurídica de apresentar ou não a proposta de suspensão do processo criminal.

Tal concessão, sem a anuência do Ministério Público, implicaria em se aceitar a legitimidade do magistrado para exercer função constitucionalmente acometida, com exclusividade, ao órgão ministerial. Isto afrontaria um dos princípios fundamentais da processualística penal contemporânea, consubstanciado na idéia de um verdadeiro processo acusatório de partes, que garanta o contraditório, a ampla defesa e a separação nítida e completa (orgânica) dos sujeitos e das funções processuais.

Portanto, a regra é a de que o Ministério Público tem o poder-dever de apresentar denúncia para iniciar a ação penal contra o acusado e de somente apresentar proposta de suspensão condicional do processo se os pressupostos e condições legais estiverem presentes positivamente, indicando que o benefício se justifica de forma plena. Desta forma, se o Promotor de Justiça manifestar-se contrariamente à proposta de transação e se o juiz entender cabível a concessão do benefício, cabe-lhe tão somente determinar a remessa dos autos à Procuradoria Geral de Justiça para decidir sobre a divergência. Este último poderá designar outro Promotor para apresentar a proposta de suspensão, se entender cabível o benefício ou ratificar o entendimento do Promotor de Justiça, hipótese em que opinará pelo prosseguimento da ação penal.

A pesquisa bibliográfica levantou os seguintes argumentos a favor deste entendimento doutrinário: o instituto da suspensão do processo não representa um direito subjetivo do acusado, “mas uma faculdade conferida ao dominus litis no sentido de, em determinadas hipóteses legalmente limitadas, sempre pautado no indeclinável bom senso, deixar de prosseguir na ação proposta” (DEMERCIAN, Pedro Henrique e MALULY, Jorge Assaf. Juizados Especiais Criminais – Comentários. Rio de Janeiro: Aide, 1996, p. 106-10); “ao titular do ius persequendi pertence com exclusividade também a disponibilidade da ação penal quando a lei mitiga o princípio da obrigatoriedade” (MIRABETE, Júlio Fabbrini. Juizados Especiais Criminais. São Paulo: Atlas, 2000, p. 287).

4. Jurisprudência Predominante do STJ e do STF (Súmula 696): Não Cabe Transação sem a Concordância do Ministério Público

A jurisprudência dos tribunais estaduais sobre esta questão trilhou por caminhos de intensa divergência. Há uma verdadeira pletora de julgados admitindo a concessão do beneficio pelo juiz, em caso de recusa ou omissão do promotor de justiça, com fundamento no argumento de que se trata de um direito subjetivo do acusado. Esta corrente jurisprudencial é contrariada por outros tantos acórdãos que decidiram pelo não cabimento de tal providência judicial.
O STJ, após inúmeras decisões admitindo a possibilidade de o juiz conceder a suspensão, mesmo sem a concordância do representante do Ministério Público, passou a entender que a iniciativa da proposta é privativa do Promotor de Justiça e, portanto, não pode ser feita pelo juiz, que não dispõe de poderes para decidir sobre a conveniência e oportunidade de conduzir a ação penal. Essa posição jurisprudencial pode ser condensada com base no texto da ementa abaixo transcrita:

“A competência exclusiva conferida ao Ministério Público pelo art. 89, da Lei nº 9.099/95 para oferecer a proposta de suspensão condicional do processo não pode ser subtraída nem suprida pela autoridade judiciária frente à recusa fundamentada do Promotor de Justiça” (RHC 7.887-SP, DJU 21.06.1999, p. 202).

A partir de decisões mais recentes, o STJ pacificou a questão nos seguintes termos: “em havendo divergência entre o órgão acusador e o magistrado, quanto à aplicação da suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei 9.099/95), tem incidência o disposto no art. 28 do Código de Processo Penal”. É esta a posição atualmente consolidada naquela Corte Superior de Justiça: REsp 407.293, rel. Hamilton Carvalhido, DJU 19.12.2003, p. 631; REsp 535.576, rel. H. Carvalhido, DJU 19.12.2003, p. 638; HC 23.022-SP, rel. Jorge Scartezzini, DJU 01.12.2003, p. 373; REsp 511.077-SP, rel. José Arnaldo da Fonseca, DJU 17.11.2003, p. 366; REsp 493.871-SP, rel. Laurita Vaz, DJU 06.10.2003, p. 305, e REsp 511.749-SP, rel. Gilson Dipp, DJU 06.10.2003, p. 314. 

No Supremo Tribunal, esse mesmo entendimento jurisprudencial já vinha sendo adotado desde 2002, cuja razão de decidir pode ser assim sintetizada: em caso de divergência entre o magistrado e o órgão do Ministério Público, cabe ao primeiro remeter o processo ao Procurador Geral de Justiça para decidir se é o caso de efetiva oferta de proposta da suspensão condicional do processo (RHC 82.288-RO, rel. Gilmar Mendes, DJU 13.09.2002, p. 64; HC 83.458-BA, rel. Joaquim Barbosa, DJU 13.09.2002, p. 68; HC 82.004-RJ, rel. Ellen Gracie, DJU 13.09.2002, p. 83, e HC 81.724-MT, rel. Ellen Gracie, DJU 10.05.2002, p. 60). 

Consolidado esse entendimento sobre a matéria, em 09.10.2003, o STF publicou a Súmula 696, que tem o seguinte enunciado: “reunidos os pressupostos legais permissivos da suspensão condicional do processo, mas se recusando o promotor de justiça a propô-la, o juiz, dissentindo, remeterá a questão ao procurador-geral, aplicando-se por analogia o art. 28 do Código de Processo Penal. 

5. Suspensão Condicional é Solução de Consenso e não Direito Subjetivo Unilateral do Acusado 

A Súmula do STF veio em boa hora e, a nosso ver, enfrentou a questão de forma adequada. Outro não poderia ser o sentido do direito contido na norma em exame. Se o juiz não concordar com a recusa do Promotor de Justiça, cabe-lhe encaminhar o processo ao Chefe do Ministério Público para que este decida sobre o cabimento e a conveniência jurídica da transação penal. Ao Procurador Geral de Justiça, portanto, cabe a decisão final sobre a ação penal. 

É preciso reconhecer que a concessão do benefício pelo juiz, seja de ofício ou a requerimento do acusado, sem a devida proposta do representante do Ministério Público, contraria a regra fundamental do processo acusatório, que consagra a figura do magistrado como um tertius dotado da necessária imparcialidade para decidir sobre pretensões jurídicas formuladas com base no contraditório ou, de forma excepcional, no consenso das partes. No caso em análise, a concessão de ofício da suspensão estaria se contrapondo à posição assumida pelo titular da ação penal pública e implicaria num juízo antecipado da relação processual-penal por parte do juiz, que somente pode realizar a prestação jurisdicional em reposta a um pedido certo e dentro dos limites pretendidos pelas partes. 

Por outro lado, cabe ressaltar que o art. 89 caput veda a concessão do benefício ao acusado que não satisfaça a um ou mais dos requisitos objetivos ali estabelecidos expressamente. Assim, por exemplo, se o acusado já estiver respondendo a outro processo, já tenha sido condenado por outro crime ou se a pena mínima do crime (aí incluída a soma por concurso ou causa obrigatória de aumento) ultrapassar o marco punitivo mínimo de um ano, é óbvio que a suspensão do processo fica legalmente proibida.

Da mesma forma, se alguma circunstância normativa for negativa ou desfavorável ao acusado (como por exemplo, péssimos antecedentes, personalidade perversa, motivo torpe ou grave conseqüência causada pelo crime), o Promotor de Justiça também não deve propor o benefício da transação condicional, simplesmente porque é a própria lei que sinaliza não ser este um caso compatível com a idéia de uma justiça de consenso e despenalizadora.

É evidente que o representante do Ministério Público tem o dever de se manifestar, sempre e de forma fundamentada, sobre a proposta de concessão ou não da transação penal. É a lei que impõe esse dever de se pronunciar sobre a suspensão do processo. Isto é indiscutível. Se não o fizer, omitindo-se em seu dever funcional, cabe ao juiz notificá-lo para se pronunciar a respeito. A lei, no entanto, não o obriga a formular uma proposta de oferta do benefício, porque não é este o sentido contido na norma.

É claro que isto requer um compromisso com a regra da discricionariedade no processo de avaliação destas circunstâncias, mas é exatamente o que pretende a lei: beneficiar, com base num juízo antecipado e com certa segurança de acerto, o acusado com prognóstico positivo, no sentido de que o mesmo não voltará ao banco dos réus para responder a uma ação penal suspensa pelo modelo de justiça consensual.

Na verdade, a suspensão condicional do processo não pode ser entendida como um direito subjetivo do acusado. O exercício da ação penal pública, nos termos do art. 129, inciso I, da CF, é atribuição privativa do Ministério Público. Em obediência ao princípio da obrigatoriedade, que continua sendo a regra geral, dela não pode dispor senão nos dois únicos casos excepcionais previstos nos arts. 76 e art. 89 da Lei 9.099/95. Neste último caso, que é o que nos interessa, devemos considerar que a suspensão condicional é solução de consenso, que pressupõe um quadro processual onde se torna inadmissível falar de direito subjetivo unilateral, que beneficie apenas uma das partes.
Se considerarmos que o art. 89 apenas abriu uma exceção ao princípio da indisponibilidade da ação penal pública, introduzindo em nosso sistema processual a alternativa da disponibilidade mitigada ou da discricionariedade regrada, é preciso assegurar ao Ministério Público certa margem de liberdade para avaliar o conjunto das circunstâncias objetivas e subjetivas que envolvem o crime e o criminoso para decidir, sempre de forma fundamentada, sobre a conveniência ou oportunidade jurídica de propor o benefício da suspensão condicional do processo.

Entender o contrário, no sentido de que o poder-dever significa que o Ministério Público deve propor a suspensão do processo e, se não o fizer, mesmo que de forma motivada, que o juiz possa concedê-la de ofício ou a requerimento do acusado, é pretender implantar na processualística brasileira o princípio da obrigatoriedade da ação penal às avessas: em vez de estar obrigado a iniciar a ação penal pública e nela prosseguir, o representante do Ministério Público estaria obrigado a sempre propor a concessão da transação penal. Não é esta, seguramente, a melhor e mais razoável hermenêutica que se pode fazer do direito contido no caput do art. 89 da Lei dos Juizados Especiais Criminais.

Conclusão

A nosso ver, a Súmula 696 do STF consolidou a interpretação mais adequada do mandamento contido no art. 89, caput, da Lei 9.099/95. Portanto, merece ela a observância dos tribunais e magistrados de nosso país. Observância, no entanto, que não significa compromisso com a idéia de um Direito Penal fechado e sem possibilidade de mudanças. Conforme assinalou com propriedade Celso Eduardo Faria Coracini, tratando-se de matéria penal que se relaciona com “as liberdades e direitos mais intrínsecos da pessoa, as súmulas devem continuar com a função de resumo das tendências jurisprudenciais da Corte Superior” (Importância da Súmula em Direito Penal. Boletim IBCCrim, nº 136, março – 2004, p. 11).

Isto significa que o sentido normativo contido na Súmula 696 não vincula nem, muito menos, obriga os magistrados e tribunais inferiores. Significa apenas que os mesmos têm agora um referencial hermenêutico, de hierarquia máxima, sobre matéria tão polêmica e geradora de tantas e exaltadas divergências doutrinárias e judiciais.

 

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