A sociedade aberta de intérpretes da constituição e o reconhecimento da união estável entre casais homoafetivos no Brasil


Porwilliammoura- Postado em 11 julho 2012

Autores: 
NASCIMENTO, Vinícius Marques do
SANTANA, Carolina Ribeiro
SOARES NETO, Horígenes Fontes
RIHAN, Sâmia Maron
SANTOS JÚNIOR, Walter Sizenando dos

1. Resumo



A Constituição é a lei maior de um país e o seu texto, o que ao menos se espera, deve representar a vontade do povo. De fato, uma Constituição de-ve acompanhar as evoluções de um país e evoluir junto com ele, pois, se não o fizer, representa nada mais do que uma simples “folha de papel”. Uma socie-dade aberta de intérpretes da Constituição preza por uma participação mais ativa do povo, institutos como o amicus curiae, são ferramentas com as quais o povo pode expressar sua vontade de constituição. No Brasil, com julgamento pelo STF da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no. 4277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) no.132, concernentes às uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo, provou-se in concreto a existência de uma sociedade aberta de intérpretes da Constituição, significando para a sociedade brasileira, a participação efetiva dos destinatários da norma quando da necessidade de releitura do texto legal, bem como um passo à frente rumo a efetivação e prevalência dos direitos e garantias fundamentais, especificamente aqueles inerentes ao direito de ser, pensar, agir de acordo ao ditame da justa razão, conforme suas próprias valorações morais e existenciais, resultando na luta incansável pelo respeito à dignidade da pessoa humana, valor que goza de status de fundamento da República Federativa do Brasil.



Palavras-chave: Constituição. Vontade do povo. Sociedade aberta de intérpre-tes. Participação. Vontade de constituição. Uniões estáveis.







2. Introdução



O texto de uma Constituição, como letra viva da vontade de um povo, expressão maior do poder constituinte, deve sempre observar as mudanças ocorridas no seio da sociedade a que se destina e constitui. Uma Constituição é a materialização da vontade de um povo e deve assegurar as formas de or-ganização do Estado, do Governo, bem como os direitos e garantias funda-mentais do homem. É possível dizer, ainda, que uma Constituição, ao mesmo tempo em que constitui uma sociedade, é constituída por esta. A Constituição não é um fato da natureza, mas sim da cultura, da linguagem, das disputas de poder. Desta maneira, como produto da vontade de um povo, a Constituição deve acompanhar a marcha empreendida por seus destinatários ao longo da história para que não se torne obsoleta, autoritária ou, ainda, uma simples “fo-lha de papel” .



As Revoluções burguesas, Americana e Francesa, foram, por si sós, a manifestação da vontade de romper com uma ordem que não se alinhava aos interesses prevalecentes naquele determinado momento histórico. Assim, já na história das origens do Constitucionalismo moderno é possível observar essa potência criadora e transformadora que lateja nas organizações sociais humanas. 



Diante das inelutáveis alterações por que passam os diversos grupa-mentos humanos organizados em torno de um Estado é preciso, portanto, ad-mitir que a “permeabilidade” de uma Constituição é o que a capacita a ser du-radoura, coerente com a vontade popular e com os desdobramentos culturais de uma Nação.



3. A Sociedade Aberta de intérpretes



As Constituições imutáveis tornam-se cada dia mais ultrapassadas, sen-do que tal classificação tende a ser relegada ao estudo da história da Teoria Constitucional. O direito constitucional aponta para a ampliação, cada vez mais, dos processos de efetivação das democracias, não só ao que tange a produção da norma constitucional, como também, àqueles momentos em que os dispositivos da Lei Maior necessitam de interpretação.



Aprendeu-se com Herbert Hart que nenhuma norma é capaz de ser tão completa a ponto de prescindir de posterior interpretação . Além da própria fa-libilidade de completude da norma, inerente às atividades decorrentes do inte-lecto humano, a própria vida social de uma comunidade produz novos signifi-cados diante da textura aberta daquelas normas antes tidas como claras e de significados aceitos pacificamente. De fato, também é possível observar essa ideia na obra de Konrad Hesse, para quem “o significado da ordenação jurídica na realidade e em face dela, somente pode ser apreciado se ambas - ordenação e realidade - forem consideradas em sua relação, em seu inseparável contexto, no seu condicionamento recíproco” .



Mesmo diante dessa potência criadora da multidão e da “vontade de constituição” do povo, a teoria clássica do direito constitucional insistia em apresentar como intérpretes da Constituição apenas os juízes e tribunais cons-titucionais. Ou seja, caberia tão somente a esses legitimados apreender essa imensa força criativa existente em um povo e, aos moldes kantianos do pen-samento representacional, proferir aquilo que tenham entendido como sendo a vontade da nação.



Todavia, diante da afirmação uníssona na doutrina de que a Constituição é produto da vontade de um povo, que outorga poderes para que esta seja escrita em seu nome, convém o seguinte questionamento: diante do espírito democrático, porque não perguntar diretamente ao titular do poder constituinte originário qual sua opinião sobre as questões constitucionais? 



Peter Häberle, diante da crise do processo democrático dos anos 70 na Alemanha, a partir da análise concretista dos problemas constitucionais, apre-sentou uma proposta na qual não apenas os intérpretes “clássicos”, por assim dizer, participariam da análise da Constituição. Ofereceu, para tanto, a propos-ta de uma dinâmica mais vasta de intérpretes da constituição, significativamen-te ampliada . Para este autor a perspectiva segundo a qual as normas consti-tucionais são entendidas pelos destinatários não é deixada em patamar inferior à perspectiva dos intérpretes “oficiais” da Constituição elencados pela teoria clássica.



Häberle sugere uma sociedade de intérpretes da Constituição que possa abarcar o maior número possível de destinatários, tornando tal interpretação a mais democrática quanto seja possível. Isso é o que ele chamou de sociedade aberta de intérpretes , em oposição àquela sociedade fechada, na qual os únicos intérpretes legitimados seriam os juízes e os tribunais constitucionais. Ou seja, trata-se de pluralizar a participação em todas as fases por que passa a lei, pois a sociedade aberta deve guiar não apenas a interpretação constitucional feita posteriormente à produção da norma, mas também deve servir de farol para a orientação do legislador. 



“Isso significa que não apenas o processo de formação, mas também o desenvolvimento posterior, revela-se pluralista: a teoria da ciência, da democracia, uma teoria da Constituição e da hermenêutica propiciam aqui uma mediação específica entre Estado e sociedade!” 



É sabido que a rigidez da Constituição Brasileira, ou até mesmo a classificação de super-rígida que recebe de alguns autores , não a impede de ser permeável e capaz de abarcar a prática de uma sociedade aberta de intérpretes, segundo os moldes apresentados por Häberle. A Constituição Brasileira de 1988, aliás, se adéqua aos moldes da sociedade aberta proposta por Häberle desde a sua origem.



Em que pese a vontade por uma Assembléia Nacional Constituinte, em 1987, ter sido concretizada por meio de uma Emenda Constitucional à autoritá-ria Constituição de 1967, a manifestação popular se deu de maneira intensa durante todo o processo. Diante da comoção popular que tomava o país, a Constituinte poderia, inclusive, ter sido ainda mais pluralista e democrática , mas ainda assim foi a mais democrática e participativa Assembléia Nacional Constituinte dentre as realizadas no Brasil .



Após a promulgação da Constituição cidadã diversas alterações , for-mais e informais, foram feitas em cima da letra de seu texto e da compreensão ou significado que se dá ao texto constitucional. 



Invocamos, por oportuno, a controvérsia em torno do art. 226 da Lei Maior , em especial ao que tange o parágrafo 3º, do dispositivo legal. Nessa ocasião, foram julgadas a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº. 4277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº. 132, incidindo na aplicação do princípio instrumental denominado “interpretação conforme a Constituição” tanto ao art. 19 incisos II e V e art. 33, ambos do Decreto-Lei nº 220/1975 (Estatuto dos Servidores Públicos Civis do Estado do Rio de Janeiro), quanto ao art. 1.723 do Código Civil brasileiro, assim vernaculamente posto: “É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”. 







À luz da teoria da sociedade aberta de intérpretes, desenvolvida por Pe-ter Häberle, foi possível observar ao longo do referido julgamento a manifesta-ção de uma interpretação pluralista, caracterizada com participação dos amici curiae (amigos da Corte), representados por seus advogados, que no decorrer do julgamento puderam exprimir sua opinião acerca da matéria em apreço, demonstrando que a Corte Constitucional levou em conta que aquele não foi um evento exclusivamente estatal, ou unilateral, ou, ainda, uma sociedade fechada de intérpretes. Ao contrário, é possível vislumbrar no voto formulado pelo M. Marco Aurélio, no caso que esteve sub judice, a perfeita ligação com o texto de Häberle. No posicionamento ora analisado, nada mais há do que a discussão sobre uma sociedade aberta de intérpretes, onde a mobilização so-cial incidiu diversas vezes sobre a norma cogente de direito de família, princi-palmente no que diz respeito ao regime de adoção. O Ministro verificou, por analogia, que se determinados âmbitos do direito já se estendem a casais ho-moafeitvos, seria no mínimo incoerente, ou senão contrário e desigual frente ao ordenamento jurídico, não permitir aos que optarem pela relação afetiva com pessoa do mesmo sexo.



Várias entidades, na condição de amici curiae, se manifestaram sobre o mérito da controvérsia. Das associações participantes somente duas contesta-ram, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e a Associação Eduardo Banks, sendo as demais pela procedência da ação. Foi o caso, por exemplo, da Conectas Direitos Humanos, do Instituto Brasileiro de Direito da Família (IBDFAM), Grupo Arco-Íris de Conscientização, Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis), Associação de Incentivo à Educação e Saúde do Estado de São Paulo (AIESSP) e da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais.



Nada obstante, o advogado Luis Roberto Barroso, que representou o Estado do Rio de Janeiro, em seu parecer, frisou a importância de que a ho-moafetividade não deve ser encarada como uma situação intolerante e depre-ciativa, mas sim como “um fato da vida”. Em sua obra dedicada ao tema, Bar-roso comenta a hermenêutica que mais reflete a realidade em que vivemos:



“[...] a interpretação constitucional, como a interpretação jurídica em geral, não é um exercício abstrato de busca de verdades universais e atemporais. Toda interpretação é produto de uma época, de um momento histórico, e envolve as normas jurídicas pertinentes, os fatos a serem valorados, as circunstâncias do intérprete e o imaginário social. A identificação do cenário, dos atores, das forças materiais atuantes e da posição do sujeito da interpretação constitui o que a doutrina denomina de pré-compreensão. É hoje pacífico que o papel do intérprete não é – porque não pode ser – apenas o de descobrir e revelar a solução que estaria abstratamente contida na norma. Diversamente, dentro das possibilidades e limites oferecidos pelo ordenamento, a ele caberá fazer, com frequência, valorações in concreto e escolhas fundamentadas.” 







Nessa linha de idéias, aproximação se dá ao texto de Häberle quando este preleciona: “interpretar um ato normativo nada mais é do que colocá-lo no tempo ou integrá-lo na realidade” . Observou-se, com o reconhecimento da união estável homoafetiva pelo STF, uma proximidade daquilo que se espera de uma interpretação e fundamentação democrática e participativa no processo constitucional.



Somado a isso, somos remetidos à teoria da interpretação pluralista, ad-vinda da análise concretista proposta por Häberle, que afirma que o “intérprete sempre se orienta pela teoria e pela práxis. Esta última, no entanto, não é con-formada pura e simplesmente pelos intérpretes oficiais da Constituição” . Neste contexto, vale registrar a transcrição de suas palavras:



“Uma Constituição que estrutura não apenas o Estado em sentido estri-to, mas também a própria esfera pública, dispondo sobre organização da própria sociedade e, diretamente, sobre setores da vida privada, não pode tratar as forças sociais e privadas como meros objetos. Ela deve integrá-las ativamente enquanto sujeitos (…). Limitar a hermenêu-tica constitucional aos intérpretes corporativos ou autorizados jurídica ou funcionalmente pelo Estado significaria um empobrecimento ou um autoengodo”. 







No que concerne aos votos dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, muitas foram - e não poderia ser diferente - as argumentações baseadas nos princípios e garantias fundamentais. Nas palavras da M. Carmem Lúcia, “a es-colha de uma união homoafetiva é individual, íntima e, nos termos da Constituição Brasileira, manifestação da liberdade individual” . 



Em sua teoria da sociedade aberta de intérpretes Peter Häberle sustenta que “a interpretação constitucional é uma atividade que, potencialmente, diz respeito a todos”. Assim, na esteira do princípio democrático e da idéia de her-menêutica pluralista, todos devem participar do processo de interpretação, principalmente aqueles que estão diretamente no contexto da norma. Obser-vou-se no caso em tela a participação maciça daquela parcela da população diretamente envolvida, ou seja, dos indivíduos homossexuais. Mas não só des-tes, pois todos aqueles apoiadores da causa puderam se manifestar, bem co-mo aqueles que discordavam, num exemplo democrático de efetivação da ra-cionalidade dialógica . 



Nessa interim, o M. Marco Aurélio destacou a individualidade e a auto-nomia privada para decidir o indivíduo a maneira que deseja relacionar-se inti-mamente e constituir família, vez que o conceito da mesma deixou de assumir o caráter finalístico de procriação, para alargar-se ao de afetividade, como sus-tenta: 



“O reconhecimento de efeitos jurídicos às uniões estáveis representa a superação dos costumes e convenções sociais que, por muito tempo, embalaram o Direito Civil, notadamente o direito de família. A união de pessoas com o fim de procriação, auxílio mútuo e compartilhamento de destino é um fato da natureza, encontra-se mesmo em outras espécies. A família, por outro lado, é uma construção cultural.” 







Em igual análise, o M. Ricardo Lewandowski destaca a necessidade de ressalvar a função social da família na atualidade, deixando de ser um simples instrumento de mão-de-obra da máquina estatal, para tornar-se uma união de seres visando o desenvolvimento de cada indivíduo, no seio de uma relação pautada, sobretudo, na afetividade. Assim, cabe reproduzir suas palavras:



“Com efeito, a ninguém é dado ignorar - ouso dizer - que estão surgin-do, entre nós e em diversos países do mundo, ao lado da tradicional família patriarcal, de base patrimonial e constituída, predominantemen-te, para os fins de procriação, outras formas de convivência familiar, fundadas no afeto, e nas quais se valoriza, de forma particular, a busca da felicidade, o bem estar, o respeito e o desenvolvimento pessoal de seus integrantes”. 







Como breve colocação, insta também citar Michelle Perrot, em “O nó e o ninho”, que trata da construção/desconstrução da família contemporânea, que aduz:



“Não é a família em si que nossos contemporâneos recusam, mas o mo-delo excessivamente rígido e normativo que assumiu no século XIX. E-les rejeitam o nó, não o ninho. A casa é, cada vez mais, o centro da exis-tência. O lar oferece, num mundo duro, um abrigo, uma proteção, um pouco de calor humano. O que eles desejam é conciliar as vantagens da solidariedade familiar e as da liberdade individual. Tateando, esboçam novos modelos de famílias, mais igualitárias nas relações de sexos e de idades, mais flexíveis em suas temporalidades e em seus componentes, menos sujeitas a regra e mais ao desejo. O que se gostaria de conservar da família, no terceiro milênio, são seus aspectos positivos: a solidariedade, a fraternidade, a ajuda mútua, os laços de afeto e o amor.” 



O ordenamento pátrio não prevê um dispositivo que regule as relações fáticas de pessoas do mesmo sexo, razão pela qual, diante da alteração de fato da sociedade, mas não de direito, o debate tornou-se ainda mais intenso. Em outra ocasião da sustentação oral do Advogado Luiz Roberto Barroso, este a-firmou que “a jurisprudência tem oscilado, alguns acórdãos entendem que deve [a relação homoafetiva] ser tratada como uma sociedade de fato, outros acórdãos entendem que deve se tratar de união estável”. 



O entendimento sobre o tema acarretava uma série de divergências sen-tenciadas nos tribunais do Brasil, pois os intérpretes institucionais divergiam no entendimento do art. 226, parágrafo 3º da Constituição Federal, demonstrando a mobilização e manifestação da sociedade aberta de intérpretes muito antes do Supremo Tribunal Federal ser provocado.



Na esteira de um sentindo culturalista de Constituição, pode-se afirmar que interpretar um dispositivo constitucional por meio de uma sociedade fechada e utilizando-se de um procedimento lógico-dedutivo seria retirar, gradativamente, a eficácia normativa daquele dispositivo, tendo em vista as mudanças de ordem pública e dos valores e anseios populares, de modo que o modelo hermenêutico fechado reduz o âmbito de investigação, deixando de fora do processo hermenêutico constitucional todos aqueles que vivem o contexto da norma.



“A teoria da interpretação constitucional esteve muito vinculada a um modelo de interpretação de uma sociedade fechada. Ela reduz, ainda, seu âmbito de investigação, na medida em que se concentra primeira-mente na interpretação constitucional dos juízes e nos procedimentos formalizado.” 







No tocante ao presente estudo, nada mais justo foi a possibilidade da participação de quem vive sob incidência da norma poder “interpretá-la”, ou ao menos, poder influenciar na decisão do STF, pois:



“todo aquele que vive no contexto regulado por uma norma e que vive com esse contexto é, indireta ou, até mesmo diretamente intérprete dessa norma. O destinatário da norma é participante ativo, muito mais ativo do que se pode supor tradicionalmente do processo hermenêuti-co. Como não são apenas os intérpretes jurídicos da Constituição que vivem a norma, não detêm eles o monopólio da interpretação da constituição.” [grifo nosso]







Com efeito, julgar acerca do reconhecimento legal da união homoafetiva no Brasil foi uma grande manifestação de hermenêutica realizada por uma sociedade aberta de intérpretes da constituição, contribuintes da adequação do texto constitucional à realidade social. Portanto, a ordem jurídica vigente, para ser respeitada e aplicada deve se adequar aos fatores materiais que surgem no curso da história de uma nação, de modo que “o direito segue a evolução social, estabelecendo normas para a disciplina dos fenômenos já postos.” 



Neste contexto, preleciona Inocêncio Mártires Coelho, no qual afirma que a sociedade aberta dos interpretes da Constituição “nada mais seria do que a constitucionalização dos fatores reais de poder, desenvolvidos por Las-salle na obra “Essência da Constituição”. 



Extensão se faz, à colocação do M. Ricardo Lewandowski ao citar Kon-rad Hesse em uma das passagens de seu voto, dizendo: “o que não aparece de forma clara como conteúdo da Constituição é o que deve ser determinado mediante a incorporação da ‘realidade’ de cuja ordenação se trata” , reforçan-do não só a tese apresentada por Hesse, quanto à força normativa da Constituição, mas também a apresentada por Lassalle, em que se percebe mais uma vez a expressão dos fatores reais de poder sobre a norma e a conseqüente supressão do vazio, ou silêncio constitucional nela existente, além da conexão que se faz à Peter Häberle, quanto à efetiva aplicação da norma e a interpretação a ela feita pelos próprios atingidos, a sociedade, o que possibilitou o entendimento pacífico da Corte Suprema pela repercussão e aspiração dos destinatários da norma, quanto a um direito que se apresentava, até então, controverso no ordenamento jurídico. 



Não obstante, o M. Luiz Fux, repete em seu voto as palavras do Advo-gado Luiz Barroso, afirmando que “a homossexualidade é um fato da vida” . Ora, se é um fato real deverá fazer “por exigência da necessidade, que todas as outras leis e instituições jurídicas vigentes no país sejam o que realmente são” . Portanto, entre o fator real de poder e o ordenamento jurídico, encontra-se o processo hermenêutico somado à vontade de constituição, responsável pela reaproximação da constituição com a realidade em que se insere. Porém, para que esse reflexo entre norma e realidade se efetive em sua totalidade “os critérios de interpretação constitucional hão de ser mais abertos quanto mais pluralista for a sociedade” .



Como forma de ratificar a análise aqui proposta, bem como o conceito de sociedade aberta de intérpretes, proposta por Häberle, reporta-se à Desem-bargadora aposentada do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Maria Be-renice Dias, quando da afirmação da jurista e vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), em artigo intitulado: “União homossexual – aspectos sociais e jurídicos”, dizendo:



“Enquanto a lei não acompanha a evolução dos usos e costumes, as mudanças de mentalidade, a evolução do conceito de moralidade, nin-guém, muito menos os aplicadores do Direito, podem em nome de uma postura preconceituosa ou discriminatória, fechar os olhos a essa nova realidade e sermos fontes de grandes injustiças. O que não se pode é ceder no conflito entre a vontade de ser justo e o medo de sê-lo. E uma sociedade que se quer aberta, justa, livre, pluralista, solidária, fraterna e democrática, às portas do novo milênio, não pode conviver com tão cruel discriminação.” [grifo nosso]



4. Considerações Finais



O desafio que se coloca com a proposta da sociedade aberta de intér-pretes é dos mais caros para a efetivação da democracia contemporânea. To-davia, não é fácil nem simples. Mas é preciso que seja o norte das discussões constitucionais. É necessária uma co-interpretação constitucional, na qual os destinatários das normas e a corte constitucional poderão juntos perseguir a justiça.



A teoria de Peter Häberle e a sua proposta da participação efetiva da diversidade de intérpretes, aperfeiçoa a democracia e aumenta o sentimento de cidadania e pertencimento de um povo na vida política da nação. 



Tanto a previsão do “amicus curiae” como a previsão da audiência públi-ca, a ser realizada para que o julgamento constitucional seja o mais completo e esclarecido possível, se nos apresentam como formas de a corte constitucional não se colocar como algo distante da realidade social a que a Constituição se destina. Veja-se o que dispõe a lei 9868/99:



Art. 7o Não se admitirá intervenção de terceiros no processo de ação dire-ta de inconstitucionalidade.



§ 1o (VETADO)



§ 2o O relator, considerando a relevância da matéria e a representativida-de dos postulantes, poderá, por despacho irrecorrível, admitir, observa-do o prazo fixado no parágrafo anterior, a manifestação de outros órgãos ou entidades.



Art. 8o Decorrido o prazo das informações, serão ouvidos, sucessivamen-te, o Advogado-Geral da União e o Procurador-Geral da República, que deverão manifestar-se, cada qual, no prazo de quinze dias.



Art. 9o Vencidos os prazos do artigo anterior, o relator lançará o relatório, com cópia a todos os Ministros, e pedirá dia para julgamento.



§ 1o Em caso de necessidade de esclarecimento de matéria ou circuns-tância de fato ou de notória insuficiência das informações existentes nos autos, poderá o relator requisitar informações adicionais, designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a questão, ou fixar data para, em audiência pública, ouvir depoimentos de pessoas com ex-periência e autoridade na matéria. [grifo nosso].







Infelizmente, como se pode observar com o grifo, a decisão da necessi-dade de participação de órgãos ou entidades e da realização de audiência pú-blica está única e exclusivamente sob consideração do relator, sendo o despa-cho irrecorrível. Uma decisão restritiva do relator, em certa medida, pode obs-truir enormemente a efetivação da sociedade aberta de intérpretes.



Certamente que o ideal seria que a Câmara de Deputados, na condição de representante do povo, tivesse enfrentado a questão que provocou o Su-premo Tribunal Federal a se manifestar na ADI 4.277/11. Outra possibilidade ainda mais interessante seria lançar mão de um instrumento ainda mais demo-crático como é o caso do Referendo. Mas, nem uma coisa nem outra ocorre-ram. Assim o caso chegou à Corte Suprema que foi instada a se manifestar diante da omissão dos instrumentos democráticos que prevê a Constituição de 1988.



É comum ouvir-se argumentos de que a população não está pronta para enfrentar a questão, que o povo “não tem instrução” para tanto, ou, ainda, que no contexto brasileiro a democracia direta e participativa é antes uma ameaça. É importante, todavia, o seguinte questionamento: até quando o Brasil, enquanto nação democrática internacionalmente reconhecida, irá se esquivar da opinião direta de sua população? Quando o cidadão brasileiro estará pronto para decidir diretamente seus próprios rumos? Até quando ficaremos majoritariamente com as decisões dos “representantes do povo”? Quando a sociedade aberta de intérpretes poderá ser efetivamente aberta? 



A afirmação recorrente de que somente um povo “educado” e instruído é capaz de decidir seus rumos, apesar de parecer a opção mais coerente, opera numa lógica aristocrática e não democrática, vez que o fundamento da aristo-cracia é o de que por algum título distintivo um pequeno grupo da sociedade é legitimado para decidir sobre a vontade do Estado, em detrimento de outro grupo – no caso a maioria da população brasileira. Observe-se que a perma-nência a essa fechada opção meritocrática conduz ao seguinte ciclo vicioso: se os “representantes do povo” não se esforçam por efetivar políticas públicas de educação consequentemente o povo carecerá de “instrução” e, assim, precisará sempre de “representantes” que digam aquilo de que o povo precisa. 



Diante dessa situação corre-se o sério risco de a proposta haberliana da sociedade aberta de intérpretes resultar naquilo que Lassale denunciava como a Constituição sendo uma “simples folha de papel”. Ora, se a possibilidade de fala e de participação no debate, restringir-se apenas aos “instruídos” e letra-dos, é inevitável que apenas os interesses dessa parcela da população sejam defendidos, havendo assim uma defesa da manutenção valorização apenas da meritocracia em detrimento de tantos outros saberes latentes no contexto da participação popular. 



A sociedade aberta de intérpretes precisa admitir, inclusive, aqueles que “não tem voz”, que não tem vez, que permanecem marginalizados na socieda-de brasileira, talvez, justamente, por não haver espaço para serem ouvidos.







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Data de elaboração: novembro/2011