A superação do conceito de ação pelo dejurisdição


Porrayanesantos- Postado em 02 julho 2013

Autores: 
SARTURI, Claudia Adriele

Os processualistas mais abertos ao direito público buscam categorias capazes de explicar a relação entre as partes e os juízes em termos de jurisdição, ou seja, ação como um direito público subjetivo e autônomo de invoca-la. Os autores com maior vinculação civilista tendem a evidenciar o aspecto concreto da ação, gerando uma dependência entre o direito processual e o direito material.

 

            De acordo com Fredie Didier Jr.,

 

Jurisdição é a realização do direito em uma situação concreta, por meio de terceiro imparcial, de modo criativo e autoritativo (caráter inevitável da jurisdição) com aptidão para tornar-se indiscutível. É preciso perceber que a jurisdição sempre atua em uma situação concreta; mesmo nos processos objetivos de controle de constitucionalidade, há uma situação concreta, embora não relacionada a qualquer direito individual, submetido à apreciação do Supremo Tribunal Federal, em que se discute a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de algum específico ato normativo.

 

(...)

 

Diz-se que a decisão judicial é um ato jurídico que contém uma norma jurídica individualizada, ou simplesmente norma individual, definida pelo Poder Judiciário, que se diferencia das demais normas jurídicas (leis, por exemplo) em razão da possibilidade de tornar-se indiscutível pela coisa julgada material.[1]

 

Atualmente, a Constituição Federal, em seu art. 5º, XXXVI, prevê que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;”. Verifica-se que a Constituição Federal atribui o acesso à jurisdição como um direito público subjetivo, universal, irrestrito. Paralelo a isso, o Código de Processo Civil brasileiro adotou a concepção eclética sobre o direito de ação. Nesse sentido, o direito de ação é o direito ao julgamento do mérito da causa, julgamento que fica condicionado ao preenchimento de determinadas condições, aferíveis à luz da relação jurídica material deduzida em juízo.[2]

 

A legislação infranconstitucional deve ser interpretada de acordo com a Constituição Federal, e não o contrário. Assim, partindo-se de uma interpretação constitucional, verifica-se que o direito moderno de ação envolve uma autonomia que não existia no direito romano clássico, devendo-se compreender que o exercício do direito de ação, a demanda em si, pode ser condicionado, nos termos da legislação processual, jamais o direito de ação, constitucionalmente garantido e decorrente do direito fundamental à inafastabilidade.

 

Atualmente, o pensamento publicista permeia a ciência jurídica, momento no qual há um processo que podemos chamar de “publicização do direito privado”. Na Constituição Federal de 1988 se vislumbram as bases do processo enunciadas por meio de postulados e/ou de princípios, a exemplo do princípio da isonomia, do princípio da ampla defesa e do contraditório, do princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional (art. 5º, inc. XXXV) etc. Assim, a Carta de 1988 criou um marco no pensamento jurídico, ao inserir inúmeros princípios de direito público a orientar a aplicação do direito privado e do direito processual.

 

            Para que seja possível estabelecer uma discussão sobre o pensamento publicista e a superação do conceito de ação pelo de jurisdição, necessário conceituar os institutos da jurisdição e de ação.

 

            Pode-se dizer que a jurisdição é uma das funções do Estado, mediante a qual este substitui aos titulares dos interesses em conflito, vedando a autotutela, buscando, imparcialmente, a pacificação dos conflitos. Por ser função do Estado, é monopólio estatal, sendo ao mesmo tempo, poder, função e atividade. Poder é manifestação do poder estatal, ou seja, capacidade de decidir imperativamente e impor decisões. Função expressa o encargo que têm os órgãos estatais de promover a pacificação de conflitos interindividuais, mediante o processo justo. Como atividade é o complexo de atos do juiz no processo, exercendo o poder e cumprindo a função que a lei lhe impõe. Conclui-se que o poder, a função e a atividade somente transparecem legitimamente através do processo devidamente estruturado, ou seja, devido processo legal.[3]

 

            Segundo Fredie Didier Jr.:

 

...a função jurisdicional tem por característica marcante ser a função estatal que revela a última decisão: aplica-se o direito a determinadas situações, sem que se possa submeter essa decisão ao controle de nenhum outro poder. A jurisdição somente é controlada pela própria jurisdição. A jurisdição, porém, controla a função legislativa (controle de constitucionalidade e preenchimento de lacunas) e a função administrativa. 

 

(...)

 

A jurisdição é a realização do direito em uma situação concreta, por meio de terceiro imparcial, de modo criativo e autoritativo (caráter inevitável da jurisdição), com aptidão para tornar-se indiscutível.

 

(...)

 

jurisdição é função criativa. Cria-se regra jurídica do caso concreto, bem como cria-se, muitas vezes, a própria regra abstrata que deve regular o caso concreto.[4]

 

            Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart, na obra Processo de Conhecimento[5], explicam que:

 

O Estado, ao proibir a autotutela, assume o monopólio da jurisdição. Como consequência, ou seja, diante da proibição da autotutela, ofertou-se àquele que não podia mais realizar o seu interesse através da própria força o direito de recorrer à justiça, ou o direito de ação.

 

(...)

 

Em outras palavras, se o particular foi proibido de exercer a ação privada, o Estado, ao assumir a função de resolver os conflitos, teria que propiciar ao cidadão uma tutela correspondente à realização da ação privada que foi proibida.

 

O direito de acesso à justiça, atualmente, é reconhecido como aquele que deve garantir a tutela efetiva de todos os demais direitos. A importância que se dá ao direito de acesso à justiça decorre do fato de que a ausência de tutela jurisdicional efetiva implica a transformação dos direitos garantidos constitucionalmente em meras declarações políticas, de conteúdo e função mistificadores.

 

Por essas razões, a doutrina moderna abandonou a ideia de que o direito de acesso à justiça, ou o direito de ação, significava apenas direito à sentença de mérito. Esse modo de ver o processo, se um dia foi importante para a concepção de um direito de ação independente do direito material, não se coaduna com as novas preocupações que estão nos estudos dos processualistas ligados ao tema da “efetividade do processo”, que traz em si a superação da ilusão de que este poderia ser estudado neutra e distante da realidade social e do direito material.

 

            Por sua vez, há inúmeras teorias acerca do conceito de ação. Contudo, adotando-se uma concepção constitucional, ação pode ser entendida como o exercício do direito constitucional de se levar a juízo afirmação de existência do direito material. Desse modo, existe um ponto de contato entre o direito processual e o direito material.

 

            Do exercício do direito de ação resulta a denominada relação jurídica processual, que se apodera dos elementos da ação exercida, subjetiva e objetivamente, definindo a relação que existe entre ação e processo e a identificação dos respectivos elementos.

 

            Em volta da ação exercida, e não do direito de ação constitucionalmente considerado, que gira o estudo dos elementos da ação, da cumulação de ações, do concurso de ações e das classificações das ações. Do mesmo modo, os conceitos de coisa julgada, conexão e continência, prejudicialidade, intervenção de terceiro, relacionam-se à ação exercida.

 

O que se conclui da observação da evolução do direito constitucional brasileiro e das consequências processuais dele decorrentes, especialmente após a Constituição Federal de 1988, além da própria marcha do direito processual, é que o conceito de jurisdição se tornou mais importante do que o conceito de ação. A constitucionalização de normas processuais – inafastabilidade da jurisdição, devido processo legal, direito ao contraditório e à ampla defesa – somadas às garantias constitucionais outorgadas ao Poder Judiciário implicaram no fortalecimento da atividade jurisdicional.

 

A aproximação entre constitucionalistas e processualistas ocasiona numa relativização do conceito de ação. Assim, o exercício da jurisdição é que acaba por definir quais casos merecem apreciação e, quando admitidos, a apreciação vai além da mera subsunção, buscando uma concretização da cláusula geral em harmonia com o preceito fundamental descrito na constituição.

 

O princípio constitucional relativo à efetividade do processo acaba por afastar o conceito abstrato do direito de ação, na medida em que a tutela jurisdicional efetiva encontra-se diretamente relacionada à realidade social em que a demanda está inserida, bem como ao direito material do jurisdicionado a ser entregue ou protegido.

 

As formas de tutela jurisdicional para dar efetividade aos direitos dos cidadãos estão em evidência, tendo por fundamento os princípios constitucionais.A jurisdição, que até o final do século XIX encontrava-se totalmente comprometida com valores do Estado liberal e do positivismo jurídico, com o advento da Constituição Federal de 1988 traz como ponto central os direitos subjetivos dos indivíduos. Resta superada a ideia de jurisdição balizada pela igualdade formal, para se buscar a igualdade material, momento no qual temos uma nova visão acerca do conceito de ação, podendo-se afirmar que mais importante do que do direito de ação, é o direito a um resultado justo, célere, eficaz e exequível, ou seja, um amplo e irrestrito direito à Jurisdição.

 

 Notas:


[1] DIDIER Jr., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Teoria geral do processo e processo de conhecimento. 7.ed. Salvador: Jus Podium, 2007, p. 65.

[2] Idem, p. 160.

[3] CINTRA. Antonio de Araújo, GRINOVER. Ada Pellegrini, DINAMARCO. Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 17.ed., São Paulo: Malheiros, 2001, p. 131.

[4] DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Teoria geral do processo e processo de conhecimento. 7.ed., Salvador: Jus Podium, 2007, p. 61 e 65.

[5] ARENHART, Sérgio Cruz.; MARINONI, Luiz Guilherme. Processo de Conhecimento. 6.ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 33.

 

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