A teoria da imprevisão e seus reflexos na função social do contrato


PorJeison- Postado em 15 outubro 2012

Autores: 
GOULART, Henrique Gouveia de Melo.

 

1. A Teoria da Imprevisão

1.1. Introdução

A Teoria da Imprevisão pode ser definida com a vertente moderna da chamada cláusula rebus sic stantibus. Esta cláusula, por sua vez, pode ser entendida como "estando as coisas assim" ou "enquanto as coisas estão assim". Em termos contratuais, significa dizer que o contrato será cumprido rebus sic stantibus (estando as coisas como estão).

O professor Miguel Maria de Serpa Lopes ensina:

"A imprevisão consiste, assim, no desequilíbrio das prestações sucessivas ou diferidas, em consequência de acontecimentos ulteriores à formação do contrato, independentemente da vontade das partes, de tal forma extraordinários e anormais que impossível se tornava prevê-los razoável e antecedentemente. São acontecimentos supervenientes que alteram profundamente a economia do contrato, por tal forma perturbando o seu equilíbrio, como inicialmente estava fixado, que se torna certo que as partes jamais contratariam se pudessem ter podido antes antever esses fatos. Se, em tais circunstâncias, o contrato fosse mantido, redundaria num enriquecimento anormal, em benefício do credor, determinando um empobrecimento da mesma natureza, em relação ao devedor. Consequentemente, a imprevisão tende a alterar ou excluir a força obrigatória dos contratos."

Uma outra cláusula - pacta sunt servanda, que pode ser entendida como os pactos devem ser respeitados" ou "os acordos devem ser cumpridos", é tida como o alicerce da força cogente que representa um contrato. Em outras palavras, o que foi acordado deve ser cumprido. Assim, a Teoria da Imprevisão pode ser vista como mitigadora da cláusula pacta sunt servanda.

Assim, revelando sua importância, a aplicação da Teoria da Imprevisão nos leva à conclusão de que, a melhor solução para a inexecução contratual, em razão de onerosidade excessiva a um dos contraentes, não será a mera extinção do contrato, mas sua readequação. Com isso, a manutenção do contrato se mostra mais consentânea com os modernos conceitos de boa-fé objetiva e função social do contrato.

Voltando a atenção para o Direito pátrio, é de se notar que o Código Civil de 2002 cuidou, em vários dispositivos, de situações que se amoldam ao conceito da Teoria da Imprevisão.

Nos dizeres do professor José de Oliveira Ascensão, com o Novo Código Civil:

retoma-se a figura do contrato de adesão, embora em termos estreitos, generalizando deste modo a disciplina destes (arts. 423 e 424). (...) Regula-se no art. 156 o estado de perigo, que respeita à assunção de obrigação excessivamente onerosa. Introduz-se a figura da lesão no art. 157, referente a "prestação manifestamente desproporcional". Comina-se a redução equitativa da cláusula penal, se for "manifestamente excessiva" (art. 413). Surge a previsão correspondente ao "abuso de direito" (art. 187). Generaliza-se a atribuição da função social, aplicando-a também ao contrato (art. 421). Enfim, além de várias outras disposições, regula-se a alteração resultante de factos supervenientes (arts. 317, 478 e 480). (ASCENSÃO, 2009, p.165).

Desta feita, cabe aqui analisarmos essas mudanças na regulamentação dos contratos advindas do Código Civil de 2002, com foco no estudo da Teoria da Imprevisão e sua aplicação no direito brasileiro.

2. Teoria da Imprevisão no novo Código Civil brasileiro

O novo Código Civil é marcado por uma visão menos individualista e mais generalista no que se refere aos contratos. A forte influência social de nossa Constituição ajudou a moldar sua concepção.

Sem a pretensão de enumerar os vários dispositivos que carregam essa característica metaindividual, é importante salientar a presença dos conceitos de boa-fé objetiva e proibição do enriquecimento sem causa como fundamentais para a formação do contrato.

Assim, percebe-se agora que a liberdade para contratar é balizada por princípios que se ligam a uma ideia mais coletiva, mais social. Surge então o conceito de "função social do contrato".

O artigo 421 do Código Civil de 2002, que pela própria localização no texto - está localizado nas preliminares (Seção I) das disposições gerais (Capítulo I) do Título V "Dos Contratos em Geral" - reforça seu caráter de "cláusula-geral", possui a seguinte redação:

Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.

Seguindo o mesmo caráter de "cláusula-geral", o artigo 422 do CC/02 ressalta os princípios sociais:

Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.

 Já com relação à aplicação da Teoria da Imprevisão, a doutrina brasileira costuma analisar os arts. 478 a 480 paralelamente ao disposto no art. 317 do mesmo ordenamento.

Preceitua o Novo Código Civil:

Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.

[...]

Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.

Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar eqüitativamente as condições do contrato.

Art. 480. Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva.

Conforme preceitua o próprio diploma, o campo de aplicação da teoria revisionista, prevista no art. 478, são os contratos de execução continuada ou diferida, ou seja, naqueles contratos em que suas prestações se projetam em eventos futuros.

Maria Helena Diniz leciona que contratos de execução continuada são aqueles "que se protraem no tempo, caracterizando-se pela prática ou abstenção, solvendo-se num espaço mais ou menos longo. Ocorrem quando a prestação de um ou de ambos os contraentes se dá a termo".

Caio Mário da Silva Pereira define o contrato de execução diferida ou retardada como aquele "em que a prestação de uma das partes não se dá de um só jato, porém a termo, não ocorrendo a extinção da obrigação enquanto não se completar a solutio".

Se é certo que o pacta sunt servanda permanece, os princípios e direitos modernos presente nas relações contratuais não admitem a manutenção de situações que gerem lesão a uma das partes, sendo assim, imprescindível, a harmonia entre o pacta sunt servanda rebus sic stantibus.

O artigo 479, diferentemente do artigo anterior, possibilita a manutenção do contrato, já que faculta ao réu a possibilidade de modificar o contrato, de maneira a torna-lo mais equitativo. É o melhor exemplo da aplicação prática da Teoria da Imprevisão, ou seja, o contrato é mantido (pacta sunt servanda), mas desde que mantida a comutatividade (rebus sic stantibus). A regra, portanto, deve ser a manutenção do contrato.

O artigo 317, localizado no Livro "Do Direito das Obrigações", Título III, Seção I "Do pagamento" também prevê a possibilidade de revisão dos contratos em razão da excessiva onerosidade, conferindo ao Juiz o poder de corrigir, de modo que o valor real da prestação seja assegurado.

Nessa mesma linha, o artigo 480 do Código Civil de 2002 vem tratar da revisão dos contratos unilaterais por excessiva onerosidade superveniente. Destaca Martins (2004) que, "nessa espécie de contrato, não figura o binômio onerosidade excessiva e extrema vantagem, ao contrário dos contratos bilaterais. O que se tem em vista é a onerosidade excessiva, que vai suportar unilateralmente o devedor. Neste caso a revisão contratual se trata de justiça."

Assim, fica claro que o contrato deixou de ser apenas um ajuste entre duas partes, se tornando um acordo com reflexos metaindividuais, em que se busca sempre colocar em igualdade atores em posições desiguais, com a consequente realização do que se chamou de função social do contrato.

Em linhas conclusivas, podemos observar uma positiva evolução na condução das questões ligadas à resolução contratual. Se antes imperava uma cláusula rígida, que previa o cumprimento do contrato a qualquer custo, hoje podemos verificar que tal imposição não tem mais espaço no direito civil-constitucional moderno. Dessa forma, a solução ideal não é mais a mera extinção ou resolução do contrato, mas sua revisão.

3. Referências Bibliográficas

ASCENSÃO, José de Oliveira. Alteração das circunstâncias e justiça contratual no novo código civil. Disponível em . Acesso em 17 mai 2010.

BRASIL. Lei 10. 406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: Acesso em: 05 jun. 2010.

DINIZ, Maria Helena. Tratado Teórico e Prático dos Contratos. Volume 1, 3ª edição ampliada e atualizada. São Paulo: Saraiva, 1999.

MARTINS, Francisco Serrano. A teoria da imprevisão e a revisão contratual no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor . Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 327, 30 maio 2004. Disponível em: . Acesso em: 24 mai. 2010.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil - Volume III. 10ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2000.

SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso de Direito Civil, Vol. III. 6d. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2001.

 
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