A tipificação da eutanásia no Projeto de Lei nº 236/12 do Senado Federal (novo Código Penal)


Porwilliammoura- Postado em 19 dezembro 2012

Autores: 
MENDES, Filipe Pinheiro

A eutanásia como figura típica em um novo código penal em nada amplia a proteção à vida, mas tão somente cerceia a liberdade do indivíduo que em um estado brutal de debilidade tem retirado de si o direito de decidir sobre sua existência.

1. INTRODUÇÃO

O projeto de lei nº 236 apresentado ao Senado Federal em 07 de julho de 2012, o qual visa à instituição de um novo código penal brasileiro, indubitavelmente, traz grandes inovações para o âmbito do direito penal, principalmente no que tange a certas matérias cuja opinião pública ainda é bastante controvertida.

Dentre as inovações trazidas pelo referido projeto de lei encontra-se a tipificação da eutanásia, a qual está prevista como uma modalidade nova e autônoma de crime, distinto do crime de homicídio. A sua descrição consta no art. 122 do possível novo diploma, in verbis:

Art. 122. Matar, por piedade ou compaixão, paciente em estado terminal, imputável e maior, a seu pedido, para abreviar-lhe sofrimento físico insuportável em razão de doença grave:

Pena – prisão, de dois a quatro anos.

Para grande parte da doutrina brasileira, o direito à vida continua a ser um direito fundamental quase absoluto, cuja relatividade apenas se verifica em casos extremamente excepcionais, os quais devem ser expressamente previstos em lei, ou até mesmo na própria Constituição.

Em verdade, a relatividade dos direitos fundamentais é um aspecto já amplamente aceito tanto pela doutrina como pela jurisprudência dominantes no país. Ademais, o próprio STF, por mais de uma vez já teve a oportunidade de se manifestar nesse sentido, ratificando não existir direitos absolutos, quaisquer que sejam eles.

Nesse diapasão, não há porque insistir em uma proteção exagerada ao direito à vida, pondo em risco, inclusive, outros direitos fundamentais, quando já se sabe que mesmo sendo a vida a base para a concretização de outros direitos, esta também está sujeita a relativizações.

A prática da eutanásia é um fato social que põe em cheque essa discussão a respeito da relatividade do direito à vida, principalmente no tocante à possibilidade de seu titular dispor da mesma. Assim, a questão é saber até que ponto a criação de um novo tipo penal, incriminando a eutanásia, amplia ou não a proteção ao bem jurídico vida.


2. A EUTANÁSIA NO PROJETO DE LEI Nº 236/2012 DO SENADO FEDERAL

A proteção à vida que se busca dar por meio da tipificação da eutanásia, conforme o faz o projeto de lei nº 236/2012, parte ainda do pressuposto de que a vida é um bem jurídico indisponível, o que reforça o antigo dogma da “absolutibilidade” desse direito.

Dentre os constitucionalistas, André Ramos Tavares está entre os que sustentam ser o direito à vida um pré-requisito aos demais direitos, e, portanto, no Brasil não seria possível se tolerar uma “liberdade à própria morte”, de modo que, não obstante não se possa impedir o suicídio, não seria por isso que a morte passaria a ser um direito subjetivo do indivíduo[1].

Compartilha da mesma ideia o ilustre penalista Cezar Roberto Bitencourt, que, apesar de reconhecer a ambivalência do direito à vida, o qual seria um direito público subjetivo a ser respeitado e protegido pelo Estado, e um direito privado inserido dentre os direitos constitutivos da personalidade, ainda assim não admite que o indivíduo disponha livremente da própria vida, tendo em vista não haver um direito sobre a vida, mas tão somente o direito de viver[2].

Em que pesem as respeitáveis opiniões dos doutos juristas, a discussão acerca da disponibilidade do direito à vida não pode se ater a esse único bem jurídico. Mister se faz, ao revés, a análise comparativa e razoável do direito à vida em face dos demais direitos que com ele se relacionam, como é o caso da dignidade da pessoa humana. Dessa forma, é perfeitamente aceitável a interpretação segundo a qual a Constituição Federal, ao proclamar o direito à vida, o faz em sua dupla acepção, ou seja, protege-se não somente o direito de continuar vivo como também o de se ter uma vida digna quanto à subsistência[3].

Dessa forma, em que pese o forte entendimento doutrinário e jurisprudencial no sentido de se punir a eutanásia como um homicídio privilegiado[4], é preciso ir mais fundo quanto à análise da antinormatividade desta conduta, uma vez que é evidente o conflito entre a proteção exacerbada que a legislação dá a vida em detrimento da dignidade da pessoa humana, valor igualmente protegido pela Constituição Federal.

Ora, a dignidade humana deve compreender não somente a dignidade da vida, mas também a dignidade da morte. A utilização da ciência na manutenção da vida deve ser limitada quando contrariar os princípios e direitos fundamentais.

Ademais, mesmo diante da previsão legal atual, a qual nada dispõe sobre eutanásia, poder-se-ia considerar esta um fato não punível, ante a aplicação do princípio da adequação social, uma vez que embora se trate de uma conduta formalmente típica, a mesma não afronta o sentimento social de justiça.

Logicamente, a eutanásia atinge o mesmo bem jurídico protegido pelo crime de homicídio, qual seja, a vida; porém não o faz da mesma maneira, uma vez que este tipo penal possui o escopo de proteger a vida contra o arbítrio de terceiros, ou seja, contra a atitude ilegítima do autor, sendo esta, inclusive, a proteção dada pelo art. 4º da CADH (pacto de San Jose da Costa Rica):

“Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente.”

Destarte, se a vida é considerada a base dos demais direitos fundamentais, é preciso pensar se nas situações em que alguns desses direitos não possam mais ser exercidos ou garantidos em virtude do estado em que se encontra a vida do ser humano se esta ainda continua a manter esse seu status de essencial.


3. CONCLUSÃO

É certo que o direito penal deve tratar da eutanásia, mas não a partir de uma norma penal incriminadora; ao contrário, o projeto do novo Código Penal, se mais ousado fosse, teria instituído a eutanásia como causa excludente de ilicitude. Por outro lado, os limites de proteção à vida poderiam ter sido ampliados caso o projeto houvesse regulado tão somente as possíveis condutas que pudessem configurar um excesso punível ao se praticar a eutanásia.

Com efeito, a única previsão referente à eutanásia no projeto do novo código penal que revela um avanço na maneira de se pensar o direito à vida, encontra-se no art. 122, §1º, o qual possibilita ao magistrado deixar de aplicar a pena conforme as circunstâncias do caso concreto:

§1º O juiz deixará de aplicar a pena avaliando as circunstâncias do caso, bem como a relação de parentesco ou estreitos laços de afeição do agente com a vítima.

Assim, a eutanásia como figura típica em um novo código penal em nada amplia a proteção à vida, mas tão somente cerceia a liberdade do indivíduo que em um estado brutal de debilidade tem retirado de si o direito de decidir sobre sua existência, direito este cujo exercício cabe unicamente ao seu titular, não sendo, portanto, justificável a ingerência do Estado no tocante ao modo ou ao tempo de vida.


4. REFERÊNCIAS

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal v.2. 8ª ed. São Paulo, Saraiva, 2008.

MIRABETE, Julio Fabbrini. Código penal interpretado. São Paulo, Atlas, 1999.

MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 24ª ed. São Paulo, Atlas, 2009.

TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 5ª ed. São Paulo, Saraiva, 2007.


Notas

[1] TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 5ª ed. São Paulo, Saraiva, 2007, p 499-502.

[2] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal v.2. 8ª ed. São Paulo, Saraiva, 2008, p 23-24.

[3] MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 24ª ed. São Paulo, Atlas, 2009, p 36.

[4] MIRABETE, Julio Fabbrini. Código penal interpretado. São Paulo, Atlas, 1999, p 647.