Transexualismo e as relações jurídicas


Pormathiasfoletto- Postado em 18 fevereiro 2013

Autores: 
STAMATIS, Carolina Dias Lopes

 

 

1. Introdução

A teoria da personalidade surgiu em meados do século XIX tendo como principal fundador Otto Von Gierke responsável pela formação e denominação jurídica. A proteção à personalidade iniciou-se desde as civilizações antigas (DIGESTO apud AMARAL, 2012). Contudo, nos dias atuais, esta proteção tem sido mais intensa devido à globalização, aos avanços tecnológicos e aos meios de comunicação em massa.

Os direitos de personalidade possuem características específicas que visam à proteção dos atributos do ser humano e da sua dignidade. Giovanni Nanni afirma “Há, portanto, certa esfera de disponibilidade em alguns direitos de personalidade. O exercício de alguns direito de personalidade, pode, sim, sofrer limitação voluntária, mas essa limitação é também relativa” (LOTUFO, Renan; NANNI, Giovanni Ettore, 2008).

Posto isto, a transexualidade consiste no exercício do direito ao próprio corpo e à intimidade que o reserva. A maioria dos transexuais apresentam conflitos de identidade desde a infância. A sua sexualidade psíquica difere do seu sexo anatômico desde as características primitivas até as secundárias. Para muitos, torna-se uma necessidade a mudança de sexo por apresentarem uma situação que acarreta a automutilação e o suicídio.

 Após a realização da cirurgia de redesignação sexual há premência ao indivíduo transexual para o completo desenvolvimento de sua personalidade de alterar o registro civil, quanto ao prenome e ao sexo. Pois a identidade de gênero do individuo não está em conformidade com aquela reconhecida pelo ordenamento jurídico.

Devido aos avanços tecnológicos e científicos na sociedade ocorre a necessidade de alterações nas concepções jurídicas de modo a acompanhá-las para que permaneça eficaz, regulando os novos conflitos sociais. Nesse sentido, a reinterpretação da Constituição de 1988 baseia-se nos valores atuais que proporciona, assim, a tutela de grupos minoritários.

2. Direitos da personalidade

Os direitos da personalidade surgiram a partir da necessidade de proteger o homem do Estado.A teoria dos direitos da personalidade começou a se desenvolver em meados do século XX. Contudo, foi com a Constituição de 1988que os direitos da personalidade tornaram-se parte integrada da mesma, por meio da doutrina e jurisprudência. Os Direitos personalíssimos têm por objetivo tutelar as expressões, qualidades, atributos e projeções da personalidade do indivíduo, garantindo os modos de ser de cada ser humano. Tendo por objeto de estudo não a pessoa, mas as expressões e atributos da personalidade, ou seja, suas projeções físicas e morais (BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro, 2005).

“Os direitos da personalidade são direitos considerados essenciais à pessoa humana, que a doutrina moderna preconiza e disciplina, a fim de resguardar a sua dignidade” (GOMES, Orlando, 2001).

Nessa ótica, Maria Helena Diniz acentua que os direitos da personalidade são direitos subjetivos da pessoa de proteger o que lhe é próprio, melhor dizendo, a sua integridade física, como a vida, alimentos, etc.; a sua integridade intelectual - liberdade de pensamento, autoria científica, etc.; e a sua integridade moral, a exemplo da honra (DINIZ, Maria Helena, 2011).

Segundo a Lei nº 10.406 de 10 de Janeiro de 2002 (Código Civil), o art.11 aponta como características dos direitos de personalidade a intransmissibilidade e a irrenunciabilidade, sendo que o seu exercício não pode sofrer limitação voluntária.

Por outro lado, torna-se necessário considerar a matéria a partir da análise da doutrina e da jurisprudência. Dessa maneira, essas propriedades não podem ser limitadas. Apesar de tuteladas pelo Código Civil, existem outras características a serem ressalvadas que constituem atributos para a tutela dos direitos da personalidade. Destacam-se por ser direitosextrapatrimoniais; inatos; vitalícios; imprescritíveis; absolutos; indisponíveis (BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro, 2005).

Disponibilidade relativa dos direitos da personalidade

A disponibilidade relativa dos direitos da personalidade trata-se do poder que a pessoa possui de administrar os seus interesses particulares sem a intervenção do Estado ou de terceiros. Sendo que a ordem pública um fator limitante quanto à disponibilidade de alguns bens que possam ser prejudicados, afetando a ordem pública e a organização social (LOTUFO, Renan; NANNI, Giovanni Ettore, 2008).

A autonomia privada incide nos direitos da personalidade. A subjetividade do homem, a sua identidade e capacidade de se autodeterminar deve ser reconhecida, pois este é um ser dotado de consciência que apresenta vontade própria e autonomia agindo de acordo com suas necessidades e o seu peculiar conceito de dignidade. Esta deve ser garantida, respeitando-se as diferenças. O Estado é responsável por assegurar o respeito à dignidade da pessoa humana, contudo, a dignidade é um valor subjetivo que só pode ser restringido se houver riscos à liberdade ou integridade de outrem, o indivíduo não pode ser submetido uma moral oficial imposta (LOTUFO, Renan; NANNI, Giovanni Ettore, 2008). 

O mesmo ainda declara que a titularidade do direito de personalidade, não é transmissível nem renunciável. Entretanto, pode ocorrer a cessão do uso das expressões do direito da personalidade de modo limitado, inclusive de forma onerosa. Estes devem ser expressos, específicos e detalhados, contendo a finalidade, duração e lugares de alcance (LOTUFO, Renan; NANNI, Giovanni Ettore, 2008).

4. Direito ao próprio corpo

Segundo o artigo 13 do Código Civil de 2002, salvo por exigência médica, o indivíduo não pode dispor do próprio corpo, quando isto importar em diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes. E ainda, conforme o artigo 15, ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica.

Para a realização de cirurgia de redesignação sexual é necessário o consentimento livre e esclarecido (CFM art. 6º, 1.955/10). Além disso, a cirurgia de transgenitalização só é recomendada após o diagnóstico, configurando o indivíduo como transexual e, ainda assim, exige-se antes do diagnostico um acompanhamento médico por especialistas de diversas áreas durante o período de dois anos. (CFM art. 4º, 1.955/10).

Alegar que contraria os bons costumes, não é cabível, por tratar-se de uma exigência médica justificada pelo bem estar físico e psicológico do paciente. Assim como considerar crime de mutilação:

A cirurgia de transformação plástico-reconstrutiva da genitália externa, interna e caracteres sexuais secundários não constitui crime de mutilação previsto no artigo 129 do Código Penal brasileiro, haja vista que tem o propósito terapêutico específico de adequar a genitália ao sexo psíquico. (BRASIL, Portal Médico).

5. Transexualismo

O transexual é um indivíduo que não se identifica psicologicamente com o seu próprio corpo. A sua sexualidade psíquica difere do seu sexo anatômico desde as características primitivas até as secundárias. E isso provoca um desconforto com o seu gênero biológico que o indivíduo procura uma forma de adequar o seu corpo à sua personalidade por meio de tratamentos que, em grande parte, resultam em uma cirurgia de redesignação sexual.

Muitos transexuais já apresentam conflitos de identidade de gênero desde a infância. Quando preferem se vestir como o sexo biológico oposto, optam por brincadeiras ou brinquedos do gênero oposto, afirmam que é ou que gostariam de ser do sexo oposto. Muitas vezes, na adolescência esses conflitos de gênero acabam. Por outro lado, esse anseio de pertencer ao outro gênero pode surgir também na adolescência ou já na fase adulta.

Torna-se necessário fazer uma distinção sobre homossexualidade, travestilidade e transexualidade.

A homossexualidade trata-se de uma orientação sexual. Eles se sentem atraídos por pessoas do mesmo sexo. Mas, sentem-se satisfeitos com seu o corpo e a sua genitália.

Os travestis gostam de se vestir e usar acessórios do sexo oposto, mas também não apresentam um conflito entre o seu sexo psicológico e o sexo biológico. Eles gostam de se assemelhar ao gênero oposto, mas não se consideram do sexo oposto.

O transexual, segundo Maria Helena Diniz “é portador de desvio psicológico permanente de identidade sexual, com rejeição do fenótipo e tendência a auto-mutilação ou auto-extermínio“ (DINIZ, Maria Helena, 2006).

6. Cirurgia de Redesignação sexual

No Brasil, a cirurgia de redesignação sexual, é regulada pela Resolução do Conselho Federal de Medicina de n. 1.955/10 que revoga a Resolução 1.652/02. Segundo a Resolução n. 1.955/10, o indivíduo transexual que apresente desconforto com o sexo anatômico, vontade expressa de extinguir as genitais e as características primárias e secundárias que o fazem pertencer a sexo natural, esse quadro deve persistir por no mínimo dois anos, sendo que não devem existir outros transtornos mentais.

O paciente para a cirurgia deve submeter-se pelo período mínimo de dois anos, a avaliação médica multidisciplinar, composta por psiquiatra, cirurgião, endocrinologista, psicólogo e assistente social. Além disso, deve ser diagnosticado pelo médico, como transexual, ser maior de 21 (vinte e um) anos e não apresentar características físicas inapropriadas para a realização cirúrgica. O ato deve ser praticado com o assentimento livre e esclarecido.

No Brasil, há a possibilidade de realização do tratamento tanto no serviço particular quanto no público (SUS). 

7. Mudança de sexo: disciplina jurídica

A cirurgia de mudança de sexo reflete em alguns aspectos no campo do direito civil e penal. Permite-se mencionar, em primeiro plano, o princípio da dignidade da pessoa humana que constitui fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, inc. III, CF), e tambémassegura a todos a inviolabilidade da vida privada, da intimidade e da honra (art. 5º, inc. X, CF). Demonstra também que os direitos subjetivos do transexual estão intimamente ligados aos direitos da personalidade, que incidem no direito à identidade de gênero que consiste na retificação do registro civil em relação ao prenome e sexo. “O transexual operado tem o direito ao esquecimento de seu estado anterior” (RUSSI, Caroline, 2012).

Nessa vereda, o registro civil, após o nascimento, consiste apenas na avaliação do sexo biológico, ignorando o sexo psicossocial que será desenvolvido ao longo do tempo. Dessa forma, deve-se considerar a possibilidade de relativizar a imutabilidade do registro civil, pois a identidade de gênero do individuo não está em conformidade com o sexo reconhecido juridicamente.Contudo, quanto à retificação do prenome no registro civil após a mudança de sexo, a jurisprudência, ainda, apresenta-se resistente.

Há uma divergência entre os doutrinadores quanto à alteração no lugar reservado à identificação do sexo, segundo Maria Helena Diniz “a jurisprudência brasileira tem entendido que se deve permitir a alteração do prenome, colocando-se no lugar reservado a sexo o termo ‘transexual, por ser esta a condição física e psíquica da pessoa, para garantir que outrem não seja induzido em erro” (DINIZ, Maria Helena, 2006). Segundo Patrícia Cardoso “Alguns doutrinadores não concordam com este entendimento, alegando que deve ocorrer a alteração do prenome sem estabelecer nenhuma menção discriminatória” (CARDOSO, Patrícia Pires, 2008).

O artigo 58 da Lei 6.015/73, afirmava que o prenome apresentava caráter imutável. Entretanto em 1998, entrou em vigor a Lei n. 9.708/98, que modificou o artigo 58 permitindo a alteração do prenome, admitindo-se a sua substituição por apelidos públicos notórios.

Quanto à cirurgia de redesignação sexual, o Brasil não possui legislação própria, esta é regulada pelo Conselho Federal de Medicina nº 1.955.  A transgenitalização cirúrgica é autorizada pelo Sistema Único de Saúde (SUS) assegurada pelo art. 194. “A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”.

Qualquer cidadão que procure o sistema de saúde público, apresentando a queixa de incompatibilidade entre o sexo anatômico e o sentimento de pertencimento ao sexo oposto ao do nascimento, tem o direito ao atendimento humanizado, acolhedor e livre de qualquer discriminação. A Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde assegura o direito ao uso do nome social. O usuário pode indicar o nome pelo qual prefere ser chamado, independentemente do nome que consta no registro civil. No caso de usuário que já esteja fazendo uso de hormônios sem acompanhamento médico, será realizado encaminhamento imediato ao médico endocrinologista. (BRASIL, Portal da Saúde)

Pelo art. 13 do CC-02, afasta-se também a alegação de contrariar os bons costumes, pois, para a transgenitalização ocorre a exigência médica para tutela do bem-estar físico e psíquico do indivíduo.    

A cirurgia de mudança de sexo, também não constitui o crime de mutilação tipificado no artigo 129 §2o inciso III do Código Penal, como alega alguns doutrinadores contrários a transgenitalização, pois a cirurgia de redesignação sexual apresenta finalidade terapêutica.

O transexual tem o direito de desenvolver a sua personalidade livremente e de dispor do próprio corpo, pois se constitui em um dos direitos da personalidade, buscando balancear as características biológicas e psicológicas, esse equilíbrio garante o direito à saúde do indivíduo, também considerado direito da personalidade.

8. Conclusão

As relações jurídicas devem aproximar-se da realidade social contemporânea para regulá-la de com eficácia. A sociedade apresenta-se em constante evolução e o direito deve estar em consonância com essas transformações. Não existe mais a ideia de um direito imutável, atemporal.

Nessa vereda, os direitos da personalidade visam proteger o sujeito, os seus atributos e expressões que garantem a sua dignidade humana e o livre desenvolvimento de sua personalidade. O indivíduo possui capacidade de se autodeterminar. Por ser dotado de razão, age conforme as suas necessidades e as diferenças devem ser respeitadas e tuteladas pelo Direito.

Nesse contexto o sujeito transexual rejeita a sua identidade genética, ou seja, a sua anatomia natural e identifica-se psicologicamente com o sexo oposto. Esse conflito surge, muitas vezes, desde a infância e pode ser solucionado por meio de tratamentos que terminam com a realização da cirurgia de transgenitalização para o bem-estar físico e psíquico.

No Brasil, não existe lei que regulamente a matéria, portanto, adotaram-se os requisitos Resolução do Conselho Federal de Medicina 1.955/10. A cirurgia pode ser realizada pelo Sistema Único de Saúde (SUS). O paciente deve consentir livremente e expressamente.

O transexual tem o direito de disposição relativa do próprio corpo, com a finalidade de garantir sua integridade psicológica. A disposição do próprio corpo compõe um dos direitos de personalidade intrínseco a dignidade humana. E por último, para assegurar a inserção do transexual na sociedade, após a cirurgia de redesignação sexual, torna-se necessário a alteração do prenome do Registro Civil, assim como a modificação do sexo, pois, ele tem o direito de adequar o seu registro à sua atual condição.

Referências

AMARAL, Francisco. Direito Civil: Introdução. 4.ª ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Disponibilidade dos direitos de personalidade e autonomia privada. São Paulo: Saraiva, 2005.

BRASIL, Portal da Saúde. Disponível em: <http://portal.saude.gov.br/portal/saude/visualizar_texto.cfm?idtxt=34017&janela=1>.
Acesso em: 17/11/2012.

BRASIL, Portal Médico. Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2010/1955_2010.htm>. Acesso em: 23/10/2012.

CARDOSO, Patricia Pires. O transexual e as repercussões jurídicas da mudança de sexo. Disponível em:<http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=2623>. Acesso em: 18/11/2012.

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Teoria Geral do Direito Civil. 28. Ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

_________________. O estado atual do biodireito. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2006.

GAGLIANO, Pablo Stolze; FILHO, Rodolfo Pamplona. Novo curso de direito civil. vol. I: parte geral - 8.ed. rev., atual. E reform.-São Paulo: Saraiva, 2006.

GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. 18ª ed, Rio de Janeiro: Forense, 2001.

LOTUFO, Renan; NANNI, Giovanni Ettore. Dos direitos da personalidade. Teoria geral do direito civil. São Paulo: Atlas, 2008.

 

Disponível em: http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/7802/Transexualismo-e-as-rel...