Transição segura do processo judicial eletrônico. É possível?


Porbgomizzolo- Postado em 29 abril 2015

Transição segura do processo judicial eletrônico. É possível?

 

Em plena sociedade da informação (ou do conhecimento), quando superados historicamente os paradigmas anteriores de produção de riquezas e valores, representados pela terra produtiva e pela máquina (a vapor e, depois, elétrica), não existe, na atual quadra da sociedade brasileira, nenhuma resistência social relevante à implantação e desenvolvimento do chamado processo judicial eletrônico (PJe). Esse movimento, assim como a utilização da urna eletrônica (com as cautelas devidas) e a ampla informatização da Administração Tributária, revelam importantes avanços do Brasil no campo tecnológico.

A chegada vitoriosa da sociedade da informação aos domínios do processo judicial possui um significado especial. Afinal, o mundo jurídico tradicionalmente mostra um exagerado apego ao formalismo, inúmeras vezes divorciado de qualquer utilidade ou valor. Não custa lembrar, nessa linha, que no início do século XX foram proferidas várias decisões contrárias a sentenças datilografadas. Exigia-se, por alguma engenhosa construção de incompatibilidade com os fundamentos básicos da disciplina processual, que as decisões fossem escritas pelo magistrado de próprio punho!

Depois de uma evolução legislativa com vários capítulos, a Lei nº 11.419, de 2006, encerrou o ciclo de normas jurídicas voltadas para a informatização completa do processo judicial no Brasil. Com efeito, o aludido diploma legal regulou, de forma bastante detalhada, o uso dos meios eletrônicos na tramitação de processos, na comunicação de atos processuais e na transmissão de peças processuais. Restou consignado expressamente no ordenamento jurídico brasileiro que “todos os atos ou termos do processo podem ser produzidos, transmitidos, armazenados e assinados por meio eletrônico”.

A Lei nº 11.419/06 introduziu, definitivamente, nas lides forenses, o uso da assinatura eletrônica, em especial a assinatura digital baseada em certificação criptográfica de chave pública e privada. Imagina-se que a utilização em larga escala da assinatura digital produzirá, na seara jurídico-processual, assim como nas mais variadas áreas de atuação humana, uma profunda e significativa mudança de costumes com a manutenção da assinatura física como algo claramente residual.

Portanto, não existe caminho de volta para o processo judicial brasileiro. Em todas as instâncias, em menor ou maior intervalo de tempo, ele será informatizado. Afinal, o quadro normativo necessário está posto e o ambiente social e tecnológico de implementação e desenvolvimento das atividades pertinentes impõem esse passo rigorosamente necessário no campo do processo judicial.

Embora sejam promissoras as perspectivas do PJe, são consideráveis as preocupações com as imprescindíveis providências para uma transição minimamente segura e tranquila do “velho” processo físico para o “novo” processo eletrônico.

As inquietações, usando um eufemismo, levam em conta as declarações oriundas de autoridades do Conselho Nacional de Justiça, no final do ano de 2013, quando aprovada a Resolução nº 185 daquele colegiado, no sentido de que já se tem uma versão completamente estável do sistema (PJe) apta a ser instalada por todos os tribunais.

Não obstante as manifestações dos responsáveis pelo PJe no âmbito do CNJ, observa-se uma atuação crescente e incisiva da Ordem dos Advogados do Brasil, pugnando: (i) pela necessidade de lapso temporal adequado para a transição do velho processo em papel para o novo processo eletrônico; (ii) pela correção de inúmeras falhas de natureza técnica (que tornam o sistema indisponível ou excessivamente complexo para o exercício da Advocacia em função de problemas com a infraestrutura de comunicação, administração de bancos de dados e aspectos de segurança); e (iii) pela devida atenção aos problemas de acessibilidade, notadamente para profissionais da Advocacia com idades mais avançadas ou certas limitações físicas.

Vários atores do processo judicial, dentro e fora da OAB, insistem em aspecto de fundamental importância. Argumenta-se, com inegável acerto, que a transição segura para o PJe envolve o respeito e a observância a direitos fundamentais inscritos na Constituição de 1988. Não se tratam de meras reclamações corporativas. Afinal, quando o trabalho do advogado é dificultado ou obstado, por falhas ou definições desarrazoadas, as maiores vítimas são as partes (cidadãos, empresas e próprio Poder Público em seus vários níveis e instâncias) que buscam resguardar ou obter direitos pela via do processo judicial. Quando a Carta Magna afirma que não se excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesões ou ameaças a direitos (art. 5º, inciso XXXV), estabelece um comando inafastável para o legislador e todas as autoridades judiciárias que administram os meios e ferramentas viabilizadas da prestação jurisdicional por intermédio do processo.

O aludido período adequado de transição decorre, entre outros fatores relevantes: (i) da necessidade de adaptação cultural dos profissionais do Direito (advogados, magistrados, servidores, etc.) às novas tecnologias e suas ferramentas; (ii) da necessidade de realização dos treinamentos pertinentes; e (iii) de consideráveis discrepâncias na infraestrutura de acesso e utilização da internet em um país de dimensões continentais. Não custa lembrar que em inúmeros locais deste vasto Brasil o acesso à internet não existe ou mostra-se extremamente precário.

Perceba-se que o legislador, ao editar a citada Lei nº 11.419/06, indicou claramente o caminho da cautela na implementação do PJe. Não houve uma definição de utilização exclusiva da assinatura digital antes referida. O § 2º do art. 1º daquele diploma legal estabeleceu, como forma de identificação do signatário de peças processuais, o cadastro perante o Poder Judiciário (conhecido como acesso mediante login e senha). A convivência das duas soluções de identificação do usuário (assinatura digital e senha) pode e deve ser tomada como uma diretriz do legislador no sentido da utilização prudente e cadenciada das possibilidades tecnológicas no âmbito do PJe.

No tocante às definições e falhas técnicas, deve ser dispensado especial cuidado para as relações institucionais com a Advocacia, o Ministério Público e a Defensoria Pública, com o objetivo de serem editadas normas razoáveis e minimamente consensuais. Neste momento, é fundamental compreender as dinâmicas específicas e as peculiaridades de interação dos vários segmentos com o “novo” processo judicial.

As questões de acessibilidade não são aspectos secundários no contexto de implementação do PJe. Vivemos em uma sociedade plural e solidária, como define o próprio texto constitucional, e não podem ser esquecidos ou deixados no caminho aqueles que apresentam alguma limitação objetiva, notadamente decorrente de questões físicas.

Um ponto é digno de nota e reclama atenção especial. Trata-se do enfrentamento de problemas operacionais, em especial aqueles que inviabilizam a prática de atos processuais, como previsto no art. 10, § 2º, da Lei nº 11.419/06. Dois casos literalmente “tiram o sono”, especialmente dos advogados: (i) as situações de indisponibilidade do sistema (impossibilidade de acesso ou transmissão de peças); e (ii) os casos de atualização de programas (softwares) que reclamam procedimentos não amigáveis para simples usuários de equipamentos de informática.

Portanto, com a sensibilidade e espírito aberto dos gestores do PJe, e a participação vigilante e construtiva dos vários usuários do sistema informatizado, é perfeitamente possível construir uma transição segura e relativamente tranquila para a implementação e desenvolvimento da informatização do processo judicial no Brasil.