Um breve estudo sobre a aplicação do direito


Porwilliammoura- Postado em 26 setembro 2012

Autores: 
SALGADO, Gisele Mascarelli

 

Resumo: Os estudos de Direito pouco se preocupam com a aplicação do Direito, que não é apenas feita pelo magistrado, mas também por outros funcionários. É com esses funcionários que diversos populares negociam a aplicação das normas estatais. A negociação mais comum ocorre com a figura do guarda, que pode ser vista por meio de algumas músicas populares.

Sumário: Introdução, 1)  As percepções do direito pela sociedade, 2) Outras autoridades de negociação da aplicação do direito, 3) O direito como norma social, 4) O direito como norma social a frente do direito positivado, 5) Outras autoridades de negociação da aplicação do direito, Considerações Finais, Bibliografia

Palavras-chave: direito e música, aplicação do direito, burocracia, direito como norma social, direito como instituição imaginária social.


 

            O Direito está no Estado moderno associado à existência de uma burocracia estatal forte, que proporciona meios para que as normas estatais sejam cumpridas. Esse aparato burocrático dificilmente entra nos estudos de Direito, que costuma dar ênfase no entendimento de que o Direito é norma. Porém, o papel do aparato burocrático é essencial no Direito, uma vez que é ele responsável pela observância das normas, mesmo antes de ser analisada a questão pelo judiciário. A aplicação do Direito não se restringe a sentença do magistrado, que somente é acionado quando há algum problema no cumprimento das normas estatais. Antes de chegar ao judiciário, geralmente uma questão de Direito passa por uma série de funcionários estatais, que fazem parte dessa burocracia.

 Guardas de trânsito, policiais civis e militares, escreventes, delegados de polícia, oficiais de justiça, secretárias de gabinete, e tantos outros funcionários do Estado, lidam com o direito todos os dias e fazem com que as normas estatais sejam aplicadas. Estes profissionais interpretam e aplicam o direito, chegando muitas vezes a julgar, sem que isso exceda suas funções. Geralmente o seu poder de julgar e interpretar é restrito pela própria legislação que normatiza suas funções, porém sempre há uma imprevisibilidade e uma necessidade de tomada de decisão que não está regrada.

Uma das principais características da burocracia moderna, segundo Weber, é que ela é regida por competências oficiais fixas, dadas na forma de regras (leis e regulamentos administrativos). Segundo Weber pode-se apontar como características da burocracia, que envolvem o Direito:

1) existe uma distribuição fixa das atividades regularmente necessárias para realizar os fins do complexo burocraticamente dominado, como deveres oficiais;

2) os poderes de mando, necessários para cumprir estes deveres, estão também fixamente distribuídos, e os meios coativos (físicos, sacros ou outros) que eventualmente podem empregar estão também fixamente delimitados por regras;

3) para o cumprimento regular e contínuo dos deveres assim distribuídos e o exercício dos direitos correspondentes criam-se providências planeadas, contratando pessoas com qualificação regulamenta de forma geral[1].

            Assim, o ideal da burocracia seria buscar a aplicação do Direito sem muito interferir, ou seja, apenas seguindo as normas. Porém, para que possa observar a norma, cada burocrata interpreta a norma e pode entender que não é o caso para a sua aplicação, que aquele fato não é o que leva à caracterização, por exemplo, de um crime, etc.. Essa interpretação do Direito pelos burocratas pode levar a casos em que os estudos de Direito não tem dado a devida importância, ao focar a atividade interpretativa do Direito na mão dos magistrados. Essa aplicação e interpretação do Direito pela burocracia é extremamente rica, pois ela tem de lidar com a impessoalidade, objetividade, não-favorecimento para aplicar a lei, de maneira direta com o público e diariamente. Essa atuação exige que a burocracia se “desumanize” frente ao humano, para que um direito racional seja aplicado. É essa atividade do burocrata esperada no Estado moderno, que deve se distanciar de suas paixões, para realizar a vontade do Estado, como aponta Weber:

A burocracia em seu desenvolvimento pleno encontra-se, também, num sentido específico, sob o princípio sine ira ac studio. Ela desenvolve sua peculiaridade específica, bem-vinda ao capitalismo, com tanto maior perfeição quanto mais se “desumaniza”, vale dizer, quanto mais perfeitamente consegue realizar aquela quantidade específica que é louvada como sua virtude: a eliminação do amor, do ódio e de todos os elementos sentimentais, puramente pessoais e, de modo geral, irracionais, que se subtraem ao cálculo, na execução das tarefas oficiais. Em vez do senhor das ordens mais antigas, movido por simpatia pessoal, favor, graça e gratidão, a cultura moderna exige para o aparato externo em que se apóia o especialista não-envolvido pessoalmente e, por isso, rigorosamente “objetivo”, e isto tanto mais quanto mais ela se complica e especializa. E tudo isto a estrutura burocrática oferece numa combinação favorável. Sobretudo é só ela que costuma criar para a jurisdição o fundamento para a realização de um direito conceitualmente sistematizado e racional, na base de “leis”, tal como o criou, pela primeira vez, com alta perfeição técnica, a época imperial romana tardia[2].

            Essa aplicação da lei, sem olhar a quem e sem olhar as circunstâncias que envolvem o caso, nem sempre é alcançada pela burocracia, que é a que está intimamente envolvida com a sociedade. Não é somente o desvirtuamento e a corrupção que levam a não aplicação da lei estatal, às vezes é o sentimento de amor, a compaixão, a raiva, o mau-humor, a falta de consideração e tudo aquilo que torna o homem humano. Deste modo, entender que o burocrata aplica ou a descumpre a lei é uma visão simplista, que somente pode ser tomada por mais uma presunção das normas estatais. Essa relação entre a burocracia e a sociedade, pode ocorrer na forma de uma negociação, que pode visar a não aplicação da lei, a aplicação de uma forma diferente levando em consideração o caso e a pessoa, etc.. É essa relação que será objeto desse pequeno artigo, que busca a partir de algumas letras de música popular brasileira moderna, analisar como o Direito é negociado entre a população e a burocracia. Em especial busca-se analisar músicas que envolvam a negociação com o guarda, para destacar as percepções do direito pela sociedade, entendendo o direito como uma norma social e histórica que pode ir além ou mesmo contra ao direito positivado estatal.

1.      As percepções do direito pela sociedade

Uma boa parte dos estudos de Filosofia do Direito se dedica a discutir o direito da porta para dentro do direito, ou seja, tratando de questões que interessam aos juristas ou mesmo estudiosos do direito, mas nunca inserindo a sociedade. Não há muitas discussões das percepções do direito pela sociedade.

Kelsen em sua Teoria Pura do Direito não se dedica à incluir a sociedade como parte importante do Direito, a não ser como garantidora do mínimo de eficácia do Direito. Mesmo quando cuida da interpretação, a sociedade não é incluída, pois o que interessa para o jusfilósofo são as interpretações do jurista e a interpretação do magistrado, que é a interpretação, uma vez que autêntica que faz norma jurídica individual[3]. Kelsen não se preocupa com a questão da percepção do direito pela sociedade, que segundo sua concepção de pureza, sairia do âmbito de sua pesquisa e entraria no âmbito de uma sociologia do direito.

Hart a partir de suas preocupações com soberano e o súdito, inclui a sociedade em seus estudos. A preocupação de Hart se foca na pergunta da obediência do Direito, ou em outras palavras, porque o direito é obedecido por meio de sanções e porque há um hábito de obediência entre os súditos[4]. Assim, em uma formulação semelhante ao filósofo Hume sobre o conhecimento, Hart afirma que as pessoas obedecem por hábito, sendo que a revolução é exceção.

Esses dois jusfilósofos partem de uma percepção do direito à partir de um prisma do positivismo jurídico ou mesmo neo-positivismo, que afirma a relevância da norma estatal para entendimento do Direito. Porém, quando se parte para a análise de um direito como é percebido pela sociedade, não é apenas o direito da norma estatal que está em jogo, mas uma série de elementos que tornam essa questão muito complexa. Essa complexidade não pode ser restringida a uma explicação simples, mas se pode muito bem pelo menos elencar alguns dos motivos que tornam essa percepção complexa.

A percepção do Direito pela sociedade deve levar em conta não só a lei, mas como essa lei é interpretada, compreendida, reelaborada, pelos diversos segmentos de pessoas dessa sociedade. Essa interpretação passa hoje por meios de comunicação de massa, como jornais e televisão, que transmitem à sociedade as novas normas estatais, as modificações das antigas e extinção de outras. A própria sociedade também pode reelaborar as normas estatais, modificando a lei escrita quando aplicada na prática, por meio de costumes. Um dos casos mais emblemáticos é o uso do cheque no Brasil, que a sociedade criou por meio do costume a possibilidade do cheque pré-datado, alterando substancialmente o caráter desse instrumento de pagamento previsto na letra da lei.

Não é somente o costume que pode levar a reelaboração das leis, mas a própria prática social, que vai adequando à letra da lei a aquela determinada sociedade. A difícil questão a “lei que pegou”, ou seja, que é seguida pela sociedade e da “lei que não pegou” é um dos exemplos de como a receptividade da sociedade para o Direito é importante. A “lei que pegou” possui uma legitimidade pela sociedade, que a faz ser respeitada ou sua sanção é realmente aplicada. Aqui não se trata de validade ou existência, aos moldes do positivismo jurídico, mas sim de respeito à lei, que se poderia chamar de eficácia social. A eficácia social é um dos poucos elementos analisado pelos juristas, que diz respeito à percepção do direito pela sociedade. Porém, há muito mais a ser visto nessas percepções, pois ela permite o jurista entender o direito na práxis e não na letra das leis.

A sociedade possui significações do direito que nem sempre são as mesmas dadas pelo direito positivado, pois há uma reinterpretação pela sociedade do que é direito. Muitas vezes é essa nova significação do direito que é seguida como norma obrigatória, pois cria-se socialmente um consenso de que aquela norma é boa socialmente e deve ser respeitada. Essa idéia de respeito à significação de direito porque ela é boa socialmente vai além da noção de que a norma é respeitada por sua sanção estatal, e é uma idéia importante, pois aponta para a existência de metas sociais coletivas que garantem o respeito ao direito. Essas metas coletivas podem levar o respeito a lei, a despeito das sanções impostas pelo Direito.

As percepções do Direito pela sociedade podem ser percebidas por diferentes meios, inclusive pela música popular. Analisa-se aqui as percepções de Direito que quebram com diversos paradigmas do positivismo jurídico, em especial o da relação quase que obrigatória de que dado um crime há uma punição. Esse paradigma, ou mesmo dogma, desconsidera que entre o acontecimento do crime e a punição existe a sociedade, que pode levar a quebra desse dogma jurídico. Essa quebra não significa que ocorreu corrupção ou mesmo uma “fuga da lei”, mas pode indicar que outra norma jurídica está sendo utilizada, que não necessariamente a lei estatal e que outras relações foram estabelecidas, que não aquelas presumidas entre o burocrata e a legislação para a aplicação da lei.

2.      O direito negociado: busca da não aplicação da lei

Da existência da letra da lei, até a sua aplicação na sociedade há um longo caminho, que nem sempre segue os caminhos previstos pelo direito positivado. Isso pode ocorrer por diversos fatores, e não se considera que nenhum seja uma anomalia no sistema, mas sim a própria maneira do Direito agir socialmente. Um dos fatores é a negociação do direito pela sociedade com as autoridades que tem como objetivo resguardar a aplicação do direito. A negociação pode ocorrer no judiciário, em que são cumpridos tramites da legislação de uma maneira formal, ou pode ocorrer informalmente. A negociação dos populares no poder judiciário interessa menos a esse trabalho, uma vez que ela é pautada pelas normas legais e se pressupõe que essas de alguma maneira serão respeitadas. A negociação informal com as autoridades estatais é a que mais traz discussões, pois pela letra da lei, essa não seria possível, mas ela existe e modifica o direito positivado.

A prática da negociação da aplicação do Direito no Brasil é bastante comum. Ela geralmente ocorre entre uma pessoa física e a autoridade que busca a aplicação da lei, que pode ser um guarda, um delegado ou qualquer membro da burocracia estatal. Cria-se uma negociação sobre a aplicação do Direito, que não é prevista por alguns juristas, que chegam a afirmar dada a lei, ocorrido o fato proibido, decorre uma sanção. A negociação permite que mesmo com a lei, mesmo ocorrido o fato, discuta-se a sanção com a autoridade estatal. As negociações geralmente não negam a existência da legislação ou mesmo falam de um desconhecimento da lei, mas pedem simplesmente que a lei não seja a eles aplicada, em um caso de exceção à impessoalidade da lei. Para isso, é ressaltada a pessoalidade, através de uma ênfase nas características pessoais.

Os exemplos da negociação estão presentes em diversas manifestações da sociedade brasileira. O caráter informal da negociação da aplicação da lei com a autoridade estatal leva a expressões dessa negociação em letras de música populares. Essa negociação é tida como um acontecimento corriqueiro, que poucas vezes gera espanto e indignação, reforçando a existência dessa prática na sociedade brasileira como parte de uma significação do Direito. As negociações mais comuns nas letras de música são aquelas realizadas com o guarda/policial, que é um dos primeiros a fiscalizar o cumprimento da lei. Curiosamente não é comum a existência de letras de música em que a autoridade estatal seja um burocrata.

A letra da música “Seu Guarda”[5], escrita por Fátima Leão e Elias Muniz e cantada pela dupla sertaneja Bruno e Marrone, é um típico caso de uma negociação para a aplicação da lei e aponta para particularidades importantes desse processo, que quase sempre é entendido pelo jurista como mais um crime, mas que é tido com certa normalidade pela sociedade brasileira. A letra da música conta a história de um homem que dorme no banco da praça sonhando com sua amada e ao ser acordado pelo guarda, busca a negociação para não ser preso. A primeira preocupação do personagem da letra é exatamente ressaltar as qualidades pessoais, afastando da figura de um criminoso (delinqüente) ou de um homem fora da lei (vagabundo). O homem apaixonado busca esclarecer ao guarda, que ele está dormindo no banco da praça, pois estava sonhando com sua amada, algo que não é proibido pela norma positivada. O homem sabe que dormir na praça não é algo que se espera de uma pessoa como ele, sendo mais comum para os delinqüentes e vagabundos, assim busca a interferência do guarda para que a lei seja aplicada a ele com pessoalidade.

A letra da música evidencia um mito presente no direito, de que as pessoas sofrem sanção pelo que fazem e não pelo que são. O homem apaixonado sabe que ele não cometeu nenhum ato ilegal ao dormir na praça, mas que isso o poderia ter levado à prisão se ele tivesse problemas com a lei. O vagabundo poderia ter sido preso pelo guarda, pelo simples fato de estar dormindo na praça. Nota-se que mesmo com a modificação da lei, retirando a vagabundagem como um crime e recentemente como contravenção penal, ela ainda permanece no imaginário social, como algo que poderia levar a prisão. Ela permanece não só no imaginário do homem apaixonado, mas do guarda, a despeito da letra da música ter sido feita depois da revogação da lei. Talvez, porque a vagabundagem ainda seja considerada como algo socialmente reprovável e efetivamente punido por muitas autoridades estatais.

O homem apaixonado que negocia a aplicação do Direito com o guarda, busca estabelecer uma relação de igualdade com a autoridade policial, que é fundamental para que a negociação ocorra no âmbito informal. O homem pede ao guarda que este seja seu amigo, no sentido de padecer de sua dor. Não há na fala do homem apaixonado uma recusa a autoridade do guarda, nem uma ênfase que este não aplique a lei. O homem chega ao fim chega a propor que o guarda exerça sua autoridade, batendo e prendendo, porém reforça que isso seria injusto, uma vez que ele é apenas um homem apaixonado que dormiu na praça e não faz nada de ilegal. Não pode passar despercebido o fato do homem apaixonado, imputar como práticas do guarda a possibilidade de bater naqueles que considerar delinqüentes ou vagabundos. Essa prática não é prevista na lei positivada, mas ainda é amplamente praticada por policiais brasileiros.

A aproximação na negociação não ocorre apenas pela figura do povo que negocia com o guarda/policial, mas também do guarda com aquele que está na mira da lei. Esse é o caso da letra de música “Me lambe”[6] escrita por Rodolfo Abrantes e tocada pelo grupo de rock Raimundos. Diferente da letra analisada acima, que apela para um certo romantismo própria das novas músicas sertanejas, as letras dos Raimundos apelam para um duplo sentido, com uma malicia e uma provocação à ordem social estabelecida. Apesar da diferença, essa letra também retrata uma negociação com um guarda a respeito da aplicação da lei. Diferente da primeira letra que não se sabe o fim que chegou a negociação, a letra do Raimundos deixa claro que a negociação foi infrutífera, apesar do guarda ter se sensibilizado com a argumentação da negociação. O guarda nessa música afirma que ele não teria feito diferente, mas que deve prender o rapaz, pois a menina é menor e o pai dela um doutor. Mais uma vez, a questão da aplicação da pena não passa pela abstração das pessoas envolvidas, pois o fato do pai ser doutor é um dos fatores relevantes que levou a aplicação da pena.

3.      O direito como norma social

A negociação com a autoridade estatal que visa a aplicação da lei torna claro a existência de um outro direito, que não se restringe ao direito dos códigos. O direito entendido pela população brasileira, em especial, pelos populares que não conhecem a letra da lei, apesar da presunção jurídica do desconhecimento da lei, é um outro direito, que precisa ser mais conhecido pelo jurista. Assim, a aplicação do direito que será negociada entre o povo e o guarda, não é o direito dos códigos, mas as significações imaginárias do direito que as pessoas daquela sociedade criaram. Muitas vezes não há concordância entre o direito do código que qualifica um crime e a significação do direito pela sociedade que entende que um fato é crime e que acarreta sanção.

Esse é o caso que ocorre na negociação da aplicação da lei, contada na letra da música “Me Lambe”. A letra narra a história de um rapaz que está em um parque de diversões com uma menina e pratica com ela atos libidinosos. O problema retratado pela letra é que a menina, que o rapaz crer ser maior de idade, não é. A letra da música não coloca em questão o caso dos atos libidinosos terem sido praticados em local público, mas todo o foco recai em a menina ser menor de idade. A letra aponta para um outra significação de direito que é diferente da lei positivada atualmente, em que é possível a prática de sexo ou atos libidinosos com menor de idade (menos de 18 anos), sem que isso configure crime - a não ser quando a vítima é menor de 14 anos, que há o crime de estupro presumido e mesmo assim, há exceções.

A letra parece remeter a um imaginário do Direito que considera sempre crime, o sexo praticado com menores de idade. O rapaz, na letra da música, chega a falar que ele não irá propor práticas de sexo ou atos libidinosos à menina, porque isso “dá cadeia e é contra o costume”. A gravidade do sexo com menores é tida pelo rapaz da música, como um ato que tem dupla gravidade, pois contraria o Direito, enquanto norma estatal, e também as regras sociais. Porém, a gravidade da situação é diminuída, quando o rapaz fala da mudança nos costumes, que torna a prática do sexo comum mesmo para alguns menores de idade, contrariando no seu entender o que é estipulado pela letra da lei. A legislação brasileira em direito penal considera crime (estupro presumido) apenas o sexo com menores de 14 anos e o crime do abuso de menores. No caso da letra, a menina envolvida tem 17 anos e não está em nenhuma das hipóteses legais, segundo um jurista e de acordo com a legislação, mas não segundo o rapaz da letra, que entende que ocorre em crime.

A significação do direito presente na letra fala de um direito que tem mais relação com as normas sociais, do que realmente nas normas estatais jurídicas. Essas normas sociais são para o rapaz da letra normas jurídicas, mesmo que não positivadas, por isso pode-se falar em uma outra significação de direito. Essa significação de direito entende as normas sociais são normas jurídicas. Essa concepção quebra a divisão juspositivista estabelecida entre normas de direito e normas sociais, pois não leva em consideração que somente são normas jurídicas as normas dadas pelo Estado.

  1. O direito como norma social a frente do direito positivado

Dentre as diversas significações do direito dadas por uma sociedade em uma determinada época, existem significações que já incorporam mudanças comportamentais que não estão presentes no direito positivado. Essas significações de direito podem em alguns casos afetar a própria visão do direito positivado, levando a sua alteração. A idéia de que a sociedade se transforma e com isso o direito se transforma também, não é nova. O que se defende aqui é que é a significação do Direito social que transforma o direito positivado, seja introduzindo novas concepções para sua alteração ou levando ao desuso da norma positivada pela sua não adequação aos anseios sociais. Para dizer de outro modo, é o direito que transforma o direito.

Essa alteração de uma significação do direito por outra é possível de ser vista na negociação do direito com o guarda, em que a significação de uma parcela da sociedade é confrontada com a significação de direito do guarda, que é geralmente à significação do direito estatal. Um exemplo disso está na polêmica letra da música “Folha de bananeira”[7] do cantor Armandinho, que faz referência ao uso de cigarro de maconha com o objetivo de entretenimento/recreação (não religioso, não medicinal). A letra da música trás a fala de um jovem que negocia a aplicação da lei com o guarda, pedindo que a autoridade policial não o considere como um criminoso. Este caso é semelhante em certo sentido ao retratado na letra “Seu guarda”, porém há naquela letra a existência de um crime, considerado pelas leis estatais. A letra “Folha de bananeira” faz referência à prática do consumo do cigarro de maconha, que se torna cada vez mais comum na sociedade e que é considerado por alguns setores sociais como prática que deveria ser descriminalizada. Há na defesa dessa parcela da sociedade uma formação de outro entendimento do que deveria ser criminalizado, que se choca com o direito positivado.

O guarda como pessoa que representa o direito positivado estatal, uma vez que é aquele que irá buscar a sua exigência, é com quem parte da população que defende a descriminalização do uso recreativo da maconha, irá dialogar. Trata-se de duas concepções de Direito que se chocam. Por enquanto pode-se falar que ainda é hegemônica a concepção de direito apresentada no direito positivo, porém, quanto a esse tema, não se pode falar que a significação de direito que defende a não criminalização não impactou a significação do direito positivado. Um dos exemplos desse impacto é a não criminalização da pessoa que consome a maconha, ou seja, que a mantém para uso próprio.

A letra da música não apenas trás essa outra significação do direito que leva a afrontar a significação do direito estatal, mas apresenta elementos já analisados, como: a busca da amizade do guarda para o estabelecimento de relações iguais para conseguir estabelecer a negociação e a do guarda como autoridade que bate. Também se faz presente aqui a idéia do direito, como norma social, que não é propriamente o direito positivado. Isso porque, a letra fala do uso da maconha para consumo próprio como sancionado e a ser fiscalizado pelo guarda, coisa que o próprio direito positivado não mais sanciona.

A construção de uma outra significação de direito, que não é propriamente o direito estatal, que é construída por diferentes segmentos de uma sociedade, afeta o entendimento do direito estatal. A sociedade vai produzindo diferentes significações do Direito, muitas delas não são excludentes, e essas passam a circular naquela sociedade e naquele determinado tempo histórico. Algumas dessas significações são incorporadas pelo direito estatal, enquanto outras desaparecem ou permanecem latentes, vindo a ressurgir tempos depois. Considerar que há um direito que não é propriamente o estatal, mas um direito que é fruto de uma produção social coletiva e não formalizado em documentos escritos, é algo que requer uma outra teoria do direito, que não aquela adotada pelos positivismos jurídicos. Estudar esse direito é muito mais difícil, pois ele reflete a complexidade gigantesca presente na sociedade moderna, porém reconhecer essas significações de direito é reconhecer uma sociedade atuante na produção do Direito.

  1. Outras autoridades de negociação da aplicação do direito

O guarda é uma das autoridades em que mais se encontra na música popular brasileira recente (entendendo esse gênero como tudo que pode ser chamado de música produzida no Brasil que não é erudita, englobando assim diversos subgêneros como música sertaneja, música pop, rock, etc..). Outras autoridades que possibilitam a negociação da aplicação direito são o delegado e o juiz, porém esses dois em menor número. Essa menor incidência pode indicar para uma dificuldade de negociar o direito que tem relação direta com a importância, o respeito, o temor gerado pela autoridade, seja porque o escalão burocrático da autoridade dificulta a negociação, seja porque o popular não consegue estabelecer uma relação de iguais para tentar propor a negociação. Encontra-se nas músicas que fazem referência ao delegado de polícia, tanto letras que falam do delegado como figura social, quanto letras que as personagens fazem alguma espécie de pedido ao delegado, sendo que nessas últimas que se pode ver algum tipo de negociação.

 As músicas que tratavam da figura do delegado buscam uma negociação na aplicação da lei, mas esta é realizada de maneira diferente da realizada com o guarda, uma vez que a forma predominante é a negociação indireta. Na letra da música “Forró do Mané Vito ”[8] composto por Luiz Gonzaga e Zé Dantas, o personagem conversa com o delegado buscando explicar o fato ocorrido e os motivos que o levaram a cometer um suposto crime. A personagem se diz um homem de família, não afeito à cometer crimes, mas tendo sua honra e sua liberdade comprometida em uma festa de forró, resolve pegar em uma arma e ir contra aquele que lhe impede de dançar com uma moça. Não se sabe pela letra o que acontece ao certo com o Zeca Sianinha, mas é possível supor um homicídio ou mesmo uma tentativa de homicídio. O homem não negocia diretamente com o delegado, pedindo para que este não lhe aplique a lei, mas explica que não é criminoso e somente tomou essa atitude ao se sentir imensamente ofendido. A explicação do homem não é apenas de um ato impensado, mas sim da defesa da honra, daquilo que fazia dele homem. Ao ameaçar tolir a liberdade, Zeca Sianinha reduzia o personagem da letra a algo menor do que um homem e para recuperar sua honra, o homem não vê outra alternativa a não ser o homicídio. A explicação do personagem não visa dar uma desculpa qualquer para o crime cometido, mas explicar para o delegado, que naquela ocasião o homem não via outra alternativa.

No direito costuma-se atribuir a essa conduta homicida o adjetivo fútil, porém essa classificação desconsidera as relações complexas sociais, em especial aqui, as existentes entre os dançantes no forró, que se supõe serem nordestinos, com grande apego ao valor da honra. Situação semelhante a essa é descrita pela socióloga Maria Inês Caetano Ferreira ao analisar casos de homicídios por motivos fúteis no bairro de Santo Amaro, periferia da capital paulista. Para a autora os homicídios ditos fúteis, envolvem uma situação extrema de tentativa de organização social. Diz a autora, sobre esse assunto:

A análise das histórias de morte, cujas causas dos conflitos são classificadas pelos operadores do direito como fúteis, não nos permite concluir a futilidade. Pelo contrário, os crimes por motivo fútil nos anunciam a tragédia inscrita nas condições de vida dos trabalhadores compelidos a organizar estratégias sustentadas pela sociabilidade primária para enfrentar as desventuras associadas à inserção precária na sociedade mais ampla. As histórias dos processos aqui analisados mostram que a possibilidade de êxito dessas estratégias é constantemente atropelada pelas circunstâncias (excludentes, violentas) da vida social. E é isso que é encenado em torno dos “motivos fúteis”[9].

Assim, a honra não é apenas um elemento qualquer na questão do homicídio, mas a fundamental, uma vez que sem ela o homem não poderia continuar a viver naquela sociedade, pois a honra é nela um elemento fundamental. Um homem sem honra não é homem, e assim o personagem da letra da música resolve matar ou ferir, aquele que lhe buscou lhe tirar a honra. Logo a sua explicação do fato para o delegado, busca mais do que dar um desculpa para o crime, explicar que a situação era inevitável, uma vez que lhe ameaçaram a existência. Não há uma aproximação direta com o delegado, como a feita com o guarda em que o personagem o chama de amigo, mas aqui a condição humana é que aproxima o homem do delegado, como se tivesse dizendo ao delegado, que ele faria a mesma coisa se tivesse na sua pele.

Essa mesma estratégia de aproximação é feita em outra letra de música “Juca” de Chico Buarque[10]. Juca, personagem da letra da música, é levado à delegacia por perturbar a ordem e explica ao delegado que a sua intenção era fazer uma serenata para Maria. Juca busca negociar com o delegado para a não aplicação do direito, afirmando que galantear e fazer samba não podem ser considerados crimes. O personagem explicita dois mundos, o mundo da vida e o mundo do direito, em que o delegado pode ser “bamba na delegacia”, mas não entende nada de amor e de samba.

Essa aproximação dos dois mundos, mundo do direito e mundo da vida, ocorre também na letra da música “Meu bom juiz” cantado por Bezerra da Silva[11], um dos raros exemplos de negociação com um magistrado para a não aplicação da lei. Nessa letra o personagem busca esclarecer ao juiz, que o réu não é um homem ruim, tendo feito muitas coisas boas em prol de sua comunidade. O homem que conversa com o juiz, busca uma aproximação direta com o juiz, buscando estabelecer a negociação em pé de igualdade, isso pode ser visto por meio da expressão “meu bom juiz”, pode ser comparadas a “meu amigo”.

Considerações Finais

      Em toda a negociação pela aplicação do direito feita informalmente, que é retratada nas diversas músicas populares acima, pode-se ver a busca da autoridade da efetivação das normas legais estatais e a tentativa dos populares de explicitar suas concepções de direito, que por vezes não são as mesmas que a estatal e buscar a aplicação de outras significações de direito, que são elaboradas pela sociedade brasileira. Cada grupo social e cada classe podem elaborar um ou mais significações imaginárias do direito e elas são levadas à público em suas negociações informais com as autoridades. O que está em jogo é a própria concepção do que é socialmente reprovável pelo direito estatal e pelas diversas significações do direito instituídas socialmente.

O estudioso do direito para atentar para essas diferentes significações não pode olhar apenas para a norma estatal, mas deve olhar para as expressões sociais, que são criações dotadas de significações imaginárias, como as de Direito. Essas criações podem ser de quaisquer tipos, como por exemplo, artes plásticas, música, filmes, documentários, etc.. O estudo dessas significações permite um melhor entendimento do que é entendido como Direito nas diferentes segmentações sociais, e com isso, permite que o estudo do direito não se restrinja as normas estatais. Diferente dos estudos de Kelsen e Hart, os estudos de direito como significação imaginária social, têm de se preocupar de como o direito é visto fora do mundo jurídico e além da lei estatal.  Porém, esses estudos ainda são embrionários.

Bibliografia

FERREIRA, Maria Inês Caetano. Violência na solidariedade: um estudo sobre homicídios em bairros da periferia paulista. São Paulo: Humanitas, 2006.

HART, Helbert L. A. O Conceito de Direito. (trad. A. Ribeiro Mendes). 3ed., Lisboa, Calouste Gulbenkian, 2001.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito (trad. João Baptista Machado). São Paulo, Martins Fontes, 1994.

WEBER, M. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília, 1999.

Notas:

[1] WEBER, M. Economia e sociedade. v. 2, p. 198

[2] WEBER, M. Economia e Sociedade. v.2 p.213

[3] KELSEN, H. Teoria Pura do Direito p. 471

[4] HART, H. O Conceito de Direito p, 60

[5] Caminhei sozinho/ Pela rua/ Falei com as estrelas/ E com a lua/ Deitei no banco da praça/ Tentando te esquecer/ Adormeci e sonhei com você.../ No sonho, você veio/Provocante/ Me deu um beijo doce/ E me abraçou/ E bem na hora "H"/ No ponto alto do amor/ Já era dia/ O guarda me acordou.../ Seu guarda/ Eu não sou vagabundo/ Eu não sou delinqüente/ Sou um cara carente/ Eu dormi na praça/ Pensando nela/ Seu guarda/ Seja meu amigo/ Me bata, me prenda/ Faça tudo comigo/ Mas não me deixe/ Ficar sem ela.../ No sonho/ Você veio provocante/ Me deu um beijo doce/ E me abraçou/ E bem na hora "H"/ No ponto alto do amor/Já era dia/ O guarda me acordou...

[6] O quê?...O que que essa criança tá fazendo aí toda mocinha?/ Vê, já sabe rebolar, e hoje em dia quem não sabe?/ Se ela der mole eu juro que eu não faço nada/ Dá cadeia e é contra o costume/ Mas se eu tiver na rua e ela de mão dada com outro cara/ Eu morro de ciúme!/ E eu contente com as malvada, achando que era o tal/ E me aparece essa coisinha/ Me dê agora seu telefone, outro dia a gente se liga/ Eu quero te levar pra onde dá um frio na barriga/ Me fala a verdade...quantos anos você tem?/ Eu acho que com a sua idade/ Já dá pra brincar de fazer neném.../ Como a vista é linda da roda gigante/ É... tão grande/ Acho que ela viajou que eu era um picolé/ Me lambe/ No parque de diversões foi que ela virou mulher/ Das forte/ Menina pega a boneca e bota ela de pé/ Sinto, amigo, lhe dizer, mas ela é "de menor"/ Isso é crime/Seu guarda, se não fosse eu podia ser pior/ Imagine/ O homem de cacetete disse, quando me algemou/ Que ela só tinha dezessete, que o pai dela era doutor/ E que se fosse eu ainda faria igual/ Se fosse no ano que vem ia ser normal...

[7] Fuma, fuma, fuma folha de bananeira/ Fuma na boa só de brincadeira/ Seu guarda você não pode me prender/ Se é só um fino que eu acabo de cume/ Se chegou tarde, o que posso fazer/ Sou de menor e cê num pode me bater/ Fuma, fuma, fuma folha de bananeira/ Fuma na boa só de brincadeira/ Seu guarda não cheire a minha mão/ Sou seu amigo agora preste atenção/ A folha é boa, é erva fina/ Fumo na boa só pra pegar as meninas/ Fuma, fuma, fuma folha de bananeira/ Fuma na boa só de brincadeira/ Ooi, cabrobró.../ (Ooi, cabrobró...)/ Seu guarda eu não sou ladrão/ Passei de ano sem recuperação/ Enquanto isso eu vou descendo a minha lomba/ Andando de skate estourando a minha bomba/ Fuma, fuma, fuma folha de bananeira/ Fuma na boa só de brincadeira/ Seu guarda não cheire a minha mão/ Sou seu amigo / agora preste atenção/ A folha é boa, é erva da fina/ Fumo na boa só pra pegar as menina/ Fuma, fuma, fuma folha de bananeira/ Fuma na boa só de brincadeira

[8] Seu delegado, digo a vossa senhoria / Eu sou fio de uma famia /Que não gosta de fuá /Mas tresantontem / No forró de Mané Vito/ Tive que fazer bonito /A razão vou lhe explicar / Bitola no Ganzá /Preá no reco-reco / Na sanfona de Zé Marreco /Se danaram pra tocar /Praqui, prali, pra lá / Dançava com Rosinha /Quando o Zeca de Sianinha /Me proibiu de dançar /Seu delegado, sem encrenca /eu não brigo /Se ninguém bulir comigo /Num sou homem pra brigar /Mas nessa festa /Seu dotô, perdi a carma /Tive que pegá nas arma /Pois num gosto de apanhar /Pra Zeca se assombrar /Mandei parar o fole /Mas o cabra num é mole / Quis partir pra me pegar /Puxei do meu punhá /Soprei o candieiro /Botei tudo pro terreiro /Fiz o samba se acabar.

[9] FERREIRA, Maria Inês Caetano. Violência na solidariedade: um estudo sobre homicídios em bairros da

periferia paulista. P, 101.

[10] Juca foi autuado em flagrante/ Como meliante/ Pois sambava bem diante / Da janela de Maria/ Bem no meio da alegria/ A noite virou dia/ O seu luar de prata/ Virou chuva fria / A sua serenata / Não acordou Maria/ Juca ficou desapontado/ Declarou ao delegado/ Não saber se amor é crime/ Ou se samba é pecado/ Em legítima defesa/ Batucou assim na mesa/ O delegado é bamba/ Na delegacia/ Mas nunca fez samba/ Nunca viu Maria

[11] Aaaah, meu bom juiz/ Não bata este martelo nem dê a sentença/ Antes de ouvir o que o meu samba diz../ Pois este homem não é tão ruim quanto o senhor pensa/ Vou provar que lá no morro/ Ele é rei, coroado pela gente../ É que eu mergulhei na fantasia e sonhei, doutor/ Com o reinado diferente/ É mas não se pode na vida eu sei/ Sim, ser um líder eternamente/ Homem é gente../ Mas não se pode na vida eu sei/ Sim, ser um líder eternamente/ Meu bom doutor/ O morro é pobre e a pobreza não é vista com franqueza/ Nos olhos desse pessoal intelectual/ Mas quando alguém se inclina com vontade/ Em prol da comunidade/ Jamais será marginal/ Buscando um jeito de ajudar o pobre/ Quem quiser cobrar que cobre/ Pra mim isto é muito legal/ Eu vi todo juramento, triste e chorando de dor/ Se o senhor presenciasse chorava também doutor.../ Aaaah, meu bom juiz, (meu bom juiz)/ Não bata este martelo nem dê a sentença/ Antes de ouvir o que o meu samba diz../ Pois este homem não é tão ruim quanto o senhor pensa/ Vou provar que lá no morro..