Uma crítica à jurisprudência no caso de furto de veículo nas universidades públicas


Porwilliammoura- Postado em 13 maio 2013

Autores: 
MAIA, Moises da Silva

 

Propõe-se a possibilidade da responsabilização das universidades a partir de critérios que não se restrinjam apenas à existência ou inexistência de vigilância especializada no seu interior, sem que isso configure a aplicação da teoria da responsabilidade objetiva.

 

I - Introdução

 

Presta-se o presente artigo a analisar a jurisprudência que se firmou em torno dos critérios para a responsabilização das universidades públicas pelos constantes furtos de veículos e as consequências desse entendimento no mundo dos fatos.

 

Além disso, propõe-se a possibilidade da responsabilização das universidades a partir de critérios que não se restrinjam apenas à existência ou inexistência de vigilância especializada no seu interior, sem que isso configure a aplicação da teoria da responsabilidade objetiva.

 


II – Análise do entendimento jurisprudencial acerca da responsabilidade das universidades em caso de furto de veículo em seu interior e das consequências práticas advindas deste entendimento

 

O aluno de uma universidade pública, além de se preocupar com as atividades acadêmicas, passa a viver uma expectativa diferente após o término de cada dia de aula: será que o seu veículo automotor ainda se encontra no mesmo local?

 

As universidades públicas, normalmente com grandes estacionamentos, pouca iluminação e nenhuma vigilância, tornaram-se locais convidativos para a ação nefasta dos criminosos.

 

Ao ingressarem com ação de indenização em face da universidade pública em razão desses furtos, deparam-se os estudantes com o entendimento doutrinário e jurisprudencial consolidado sobre a responsabilidade subjetiva em caso de omissão.

 

Até aí nenhum novidade, pois já é sabido que em caso de omissão a responsabilidade do ente público pelo dano é subjetiva, não se aplicando a responsabilidade objetiva prevista no art. 37, § 6º, da Constituição Federal.

 

 

No caso específico de furto de veículos, o Superior Tribunal de Justiça consagrou o entendimento de que a universidade somente pode ser responsabilizada pelo dano material se possui vigilância especializada para a guarda do patrimônio privado. A Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência também já se firmou neste sentido. Seguem os julgados demonstrativos desse entendimento:

 

PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL. INDENIZAÇÃO. DANO MATERIAL. FURTO DE VEÍCULO. ESTACIONAMENTO DISPONIBILIZADO NAS DEPENDÊNCIAS DE UNIVERSIDADE FEDERAL. SÚMULA 07/STJ.

 

1. O Poder Público deve assumir a guarda e responsabilidade do veículo quando este ingressa em área de estacionamento pertencente a estabelecimento público, apenas, quando dotado de vigilância especializada para esse fim. Precedentes do STJ: Ag 937819/SC, Relatora Ministra DENISE ARRUDA, DJ de 20/06/2008; REsp 625604/RN, Relator Ministro HERMAN BENJAMIN, DJ de 02/06/2008 e REsp 1032406/SC, Relator Ministro ARI PARGENDLER, DJ de 30/04/2008; REsp 438.870/DF, Relator Ministro  CASTRO MEIRA, DJ 01/07/2005.

 

2. In casu, o exame acerca das circunstâncias que redundaram na ausência de responsabilização da Universidade pelos danos materiais, decorrentes de furto de automóvel no estacionamento da universidade demandada, carece da incursão em aspectos fáticos, notadamente no que pertine à existência de serviço especializado de vigilância no campus universitário, fato que, evidentemente, enseja a incidência da Súmula 07/STJ.

 

3. A título de argumento obiter dictum merece destaque as situações fáticas insindicáveis nesta Corte: (a) "as fotos do estacionamento do campus apresentadas pela ré (fls. 59/64) demonstram a inexistência de qualquer tipo de controle de entrada e saída de veículos"; (b) "o depoimento do filho do autor (fls. 123), condutor do veículo na noite do furto, corrobora as fotos e a inexistência de qualquer forma de controle por parte da UFSC, no seguinte trecho: Tinha uma cancela na entrada do estacionamento, mas permanecia sempre aberta. Não havia nenhum tipo de controle de entrada de carros no estacionamento"; (c) " o depoimento da testemunha Leandro Luiz de Oliveira (fls.127/8), arrolada pela ré, servidor da UFSC, vigilante, esclareceu não estarem compreendidas dentre as atribuições o dever de guarda dos bens dos particulares" (fl. 204 verso).

 

4. Recurso Especial não conhecido.

 

(STJ. PRIMEIRA TURMA. REsp 1081532/SC. Ministro LUIZ FUX. DJe 30/03/2009)

 

ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL. FURTO DE VEÍCULO. UNIVERSIDADE. AUSÊNCIA DE VIGILÂNCIA. 

RESPONSABILIDADE SUBJETIVA. 1. “O Poder Público deve assumir a guarda e responsabilidade do veículo quando este ingressa em área de estacionamento pertencente a estabelecimento público, apenas, quando dotado de vigilância especializada para esse fim”. Precedentes do STJ (REsp 1081532, Primeira Turma e REsp. 438870, Segunda Turma) e da TNU (PEDILEF 20075050010940). 2. A responsabilidade decorrente do dever de guarda é subjetiva (e não objetiva), baseada na teoria da faute de service, devendo a parte comprovar a ocorrência da culpa em sentido genérico. 3. No caso, a sentença consignou que a Universidade não possui sistema de guarda e vigilância nos estacionamentos, razão pela qual deve ser afastada a responsabilidade da Universidade. 4. Recurso conhecido e provido.

 

(TNU. PEDIDO 05073602620074058400. JUIZ FEDERAL ANTÔNIO FERNANDO SCHENKEL DO AMARAL E SILVA. DOU 04/05/2012)

Porém, o entendimento consagrado na jurisprudência dos tribunais deveria ser aplicado cum granus salis. Embora não se possa transformar a universidade pública em uma seguradora universal por tudo o que aconteça em suas dependências, o entendimento acima, aplicado cegamente, constitui um verdadeiro incentivo ao aumento da criminalidade e da insegurança dos estudantes.

 

Diante desse entendimento jurisprudencial, nenhuma universidade pública irá reforçar o seu aparato pessoal e material de vigilância. Vê-se que o referido posicionamento privilegia a universidade totalmente omissa, abandonada, ao passo que pune aquela que procurou reforçar a segurança do campus.

 

Além disso, um ambiente em que os criminosos se sentem seguros pela total ausência de vigilância torna-se convidativo para atrair outros tipos de criminosos, ainda mais perigosos. A famosa teoria das janelas quebradas[1] não pode ser desconsiderada nessa hipótese.

 

Propõe-se, assim, que os órgãos julgadores não apliquem automaticamente a jurisprudência firmada apenas a partir da constatação da ausência ou presença de vigilância especializada, o que será objeto de debate no item seguinte.

 


III - Responsabilização da universidade pública a partir de critérios que não se restrinjam apenas à existência ou inexistência de vigilância especializada no seu interior

 

Em se tratando de danos provocados por terceiros, o Estado pode ser responsabilizado se a sua conduta omissiva contribuiu diretamente para a ocorrência do dano. Segue a lição de José dos Santos Carvalho Filho[2]:

 

Nem toda conduta omissiva retrata um desleixo do Estado em cumprir um dever legal; se assim for, não se configurará a responsabilidade estatal. Somente quando o estado se omitir diante do dever legal de impedir a ocorrência do dano é que será responsável civilmente e obrigado a reparar os prejuízos.

 

A consequência, dessa maneira, reside em que a responsabilidade civil do Estado, no caso de conduta omissiva, só se desenhará quando presentes estiverem os elementos que caracterizam a culpa. A culpa origina-se, na espécie, do descumprimento do dever legal, atribuído ao Poder Público, de impedir a consumação do dano.

 

Na situação específica em análise, propõe-se que se na universidade ocorrem furtos de veículos reiteradamente e, havendo produção probatória mínima nos autos acerca dos frequentes furtos, deveria a universidade ser responsabilizada pelos danos materiais, pois tem ciência de que a conduta criminosa é praticada em seu interior e nenhuma medida adotou para evitá-la.

 

A responsabilização, nesse caso, decorreria da conivência da universidade pública com as reiteradas práticas criminosas sem que adotasse nenhuma providência. Nesse sentido, segue interessante ensinamento de José dos Santos Carvalho Filho acerca da responsabilidade do Estado quando devida e comprovadamente advertido sobre a possibilidade de dano[3]:

 

Outra hipótese reside na omissão do estado, quando devida e comprovadamente advertido da possibilidade de ocorrer o fato causador dos danos. Mesmo que o fato provenha de terceiros, o certo é que conduta diligente do Estado poderia ter impedido a sua ocorrência. Aqui a responsabilidade civil do Estado pela omissão é concreta, não podendo fugir à obrigação de reparar os danos. Exemplo:

professora recebeu ameaças de agressão por parte de aluno e, mais de uma vez, avisou a direção da escola, que ficou omissa; tendo-se consumado as agressões, tem o Poder Público responsabilidade por sua omissão.

 

Mesmo na hipótese de serem comprovados nos autos os reiterados furtos de veículos, a universidade ainda poderia, na opinião deste articulista, não ser responsabilizada, embora não pelo argumento da ausência de vigilância especializada. No caso, a universidade pública poderia provar que, no caso concreto, pelas circunstâncias do crime, ou pela culpa concorrente ou exclusiva do estudante, que, por exemplo, deixou o veículo estacionado em local escuro, fora do estacionamento, destravado, etc., não havia como evitar o crime.

 

Sempre tem aplicabilidade também a teoria da reserva do possível, que deve ser levada a sério, desde que não se trate apenas de uma mera alegação destituída de provas. Neste caso, caberia à universidade pública provar que procurou investir na melhora da vigilância em suas dependências, mesmo que ainda não obtivesse um sistema infalível, ou que isso não seria totalmente possível em função ausência de orçamento aliada a diversos fatores como as suas consideráveis dimensões e o grande fluxo de veículos.

 

Nota-se que esse entendimento inverteria o ônus da prova em desfavor da universidade pública, que deveria comprovar, no caso concreto, que não teria como evitar o crime.

 

Em suma, como já deve ter sido percebido, o que se propõe é que as universidades não se mantenham inertes diante da reiteração criminosa em suas dependências, amparadas em entendimento jurisprudencial que não as pune se não possuírem uma vigilância especializada. A responsabilização pretendida não se sustenta em um sentimento pessoal de justiça, e sim em critérios jurídicos.

 

A responsabilização das universidades em casos de omissão deve ser perquirida a partir da análise, no caso concreto, se a instituição de ensino superior tinha como ter evitado o crime, e, como fundamentado alhures, a reiteração do mesmo crime indica que a universidade já deveria ter adotado alguma providência para evitar a prática delituosa.

 

A adoção de outros critérios para além da simples existência ou não de vigilância especializada não descaracteriza a responsabilidade subjetiva, quando se pretende apenas investigar se a omissão foi ou não relevante para a ocorrência do dano e se a universidade pública tinha como ter evitado o delito.

 

Dessa forma, propõe-se a não aplicação cega do entendimento jurisprudencial firmado pelo Superior Tribunal de Justiça, pois a responsabilidade da universidade em caso de furto de veículo em suas dependências, embora seja subjetiva, não pode ser analisada apenas a partir da existência ou não de vigilância especializada no local.

 


Notas

 

[1] “No ano de 1982, James Q. Wilson e George L. Kelling desenvolveram, agora no terreno da criminologia, a “teoria das janelas quebradas” (broken Windows theory), sustentando a maior incidência de crimes e contravenções penais nos locais em que o descuido e a desordem são mais acentuados. Com efeito, quando se quebra a janela de uma casa e nada se faz, implicitamente se estimula a destruição do imóvel como um todo. De igual modo, se uma comunidade demonstra sinais de deterioração e isto parece não importar a ninguém, ali a criminalidade irá se instalar.” (Masson, Cleber Rogério. Direito Penal esquematizado. Parte geral. 5ª Ed. São Paulo: Método, 2011, p. 556)

 

[2] Carvalho Filho, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 25ª ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 561.

 

[3] Carvalho Filho, José dos Santos. op. cit., p. 562.




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