Vida e morte no direito brasileiro: Uma reflexão sobre a relação entre dogmática jurídica e estrutura dos tribunais a partir da decisão da ADPF n. 54


Pormarianajones- Postado em 06 maio 2019

Autores: 
Flavia Portella Püschel

São Paulo Law School of Fundação Getulio Vargas – DIREITO GV Research Paper Series – Legal Studies Paper n. 99

Vida e morte no direito brasileiro: Uma reflexão sobre a relação entre dogmática jurídica e estrutura dos tribunais a partir da decisão da ADPF n. 54

Life and Death in Brazilian Law: A Case Study on Collective Rationality in the Brazilian Supreme Court

Flavia Portella Püschel1

São Paulo Law School of Fundação Getulio Vargas – DIREITO GV

June 2014

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1 Professora em tempo integral da DIREITO GV.

Resumo: Neste texto se faz uma análise do acórdão do STF na ADPF n. 54, o qual, por maioria, decidiu que a interrupção de gravidez de feto anencefálico não constitui crime de aborto. No texto analisam-se os argumentos empregados pelos vários ministros em seus votos para demonstrar que a maioria vencedora discorda quanto às razões para o deferimento do pedido, de modo que o tribunal permanece dividido no que se refere ao conceito jurídico de vida. O texto aponta, então, que a possibilidade de formação de maiorias distintas quanto ao resultado e ao fundamento da decisão não é simples acidente, mas uma consequência da própria estrutura do tribunal, a qual não garante racionalidade coletiva a suas decisões.

Palavras-chave: anencefalia; conceito jurídico de vida; dogmática jurídica; racionalidade coletiva.

Abstract: This paper analyzes the Brazilian Supreme Court (STF) Decision (ADPF n. 54) in which the court, by majority of votes, stated that the termination of the pregnancy of an anencephalic fetus does not constitute a crime of abortion. The paper analyzes the arguments used by the judges in their opinions to show that they agree on the conclusion, but strongly disagree on their reasons, with the result that the court remains deeply divided on the legal concept of life. The paper then points to the fact that the possibility of different majority positions regarding the decision and the arguments that justify it is not accidental, but the result of the court’s structure, which does not guarantee the collective rationality of the court’s decisions.

Keywords: anencephaly; life as a legal concept; legal doctrine; collective rationality.

Sumário

1 Introdução _______________________________________________________________ 3 2 O conceito de vida como pressuposto: concordâncias e discordâncias_________________ 4 2.1 Voto do Ministro Marco Aurélio __________________________________________ 5 2.2 Voto do Ministro Cezar Peluso____________________________________________ 7 2.3 Voto do Ministro Gilmar Mendes__________________________________________ 9 3 Decisão por maioria e racionalidade coletiva: uma impossibilidade _________________ 10 Referências _______________________________________________________________ 16 3

1 Introdução

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54 (ADPF n. 54) foi proposta pela Confederação Nacional de Trabalhadores na Saúde (CNTS) em 2004, com o objetivo de obter do Supremo Tribunal Federal (STF) a declaração de ser “inconstitucional, com eficácia erga omnes e efeito vinculante”2 , a interpretação dos arts. 124, 126 e 128, I e II do Código Penal (CP): como impeditivos da antecipação terapêutica do parto em casos de gravidez de feto anencefálico, diagnosticados por médico habilitado, reconhecendo-se o direito subjetivo da gestante de se submeter a tal procedimento sem a necessidade de apresentação prévia de autorização judicial ou qualquer outra forma de permissão específica do Estado.3 Em outras palavras, tratava-se da declaração de que a interrupção de gravidez de feto anencefálico não constitui conduta típica do crime de aborto. O STF, por maioria de votos, julgou a ação procedente, em decisão datada de 12 de abril de 20124 . Foram vencidos os Ministros Ricardo Lewandowski e Cezar Peluso, que a julgavam improcedente. O Ministro Dias Toffoli não participou do julgamento, por estar impedido. O objetivo deste artigo é analisar como se dá a relação entre jurisprudência e o desenvolvimento da dogmática jurídica em um sistema como o brasileiro, no qual as decisões coletivas dos tribunais são tomadas por maioria de votos. A ADPF n. 54 nos dará oportunidade de fazer esta reflexão a partir de uma questão jurídicodogmática específica: o conceito de vida. A Constituição Federal garante a sua inviolabilidade (CF, art. 5o , caput), o Código Civil a estabelece como marco inicial da personalidade civil da pessoa natural (CC, art. 2o ) e o Código Penal prevê uma série de crimes contra ela (CP, arts. 121 a 128), mas não há no direito brasileiro um conceito legal expresso de vida. Por ser um conceito jurídico fundamental (com repercussões importantes sobre direitos de personalidade e também patrimoniais) muito dependente da atividade de doutrina e jurisprudência para seu desenvolvimento, o conceito de vida constitui um caso perfeito para a análise que queremos fazer.                                                             2 Petição inicial, p. 22. Disponível em: . Acesso em: 12 fev. 2014. 3 Idem, ibidem. 4 BRASIL. STF. ADPF n. 54. Relator: Marco Aurélio. J. em 12/04/2012, p. 314. Disponível em: . Acesso em: 23 out. 2013. 4 Começaremos descrevendo a decisão do STF e o modo como a discussão sobre o conceito de vida se articula com o julgamento pela procedência ou improcedência da ação nos votos dos ministros. Em seguida, analisaremos o sistema de decisão por maioria e sua incapacidade de gerar uma fundamentação racional genuinamente coletiva para as decisões do tribunal. Finalmente, tiraremos as consequências da falta de racionalidade coletiva desta decisão do STF para o avanço dos debates jurídico-dogmáticos acerca do conceito de vida e, por extensão, as consequências da falta de racionalidade coletiva das decisões dos tribunais brasileiros para o desenvolvimento de uma tradição jurídico-dogmática.

2 O conceito de vida como pressuposto: concordâncias e discordâncias

Como afirmou o Ministro Celso de Mello5 , o julgamento da ADPF n. 54 é histórico, pelo fato de que nela se discute “o alcance e o sentido da vida e da morte” no direito brasileiro. De fato, embora o pedido não se refira diretamente ao conceito de vida, uma concepção sobre o que seja vida no direito brasileiro é pressuposto do argumento de fundamentação da decisão acerca da licitude/ilicitude da interrupção de gestação de feto anencefálico, qualquer que seja o seu sentido6 . Interessante é que a discordância sobre o conceito de vida não opõe simplesmente os Ministros que compuseram a maioria e os autores dos dois votos vencidos. A própria maioria vencedora está dividida a este respeito. A situação é tal que alguns Ministros que votaram com a maioria no que se refere à procedência da ação, concordam com os autores dos votos vencidos no que se refere ao conceito de vida. Vamos demonstrar essa situação, com base em três votos exemplares, sintetizados a seguir: o voto do relator, Ministro Marco Aurélio, do Ministro Cezar Peluso e do Ministro Gilmar Mendes.                                                             5 BRASIL. STF. ADPF n. 54. Relator: Marco Aurélio. J. em 12/04/2012, p. 314. Disponível em: . Acesso em: 23 out. 2013. 6 Isso não significa que todos os Ministros tenham discutido expressamente o conceito de vida em seus votos. O que se afirma é que alguma concepção de vida é pressuposto do raciocínio de fundamentação desenvolvido, de modo que é possível deduzi-la a partir do argumento de fundamentação de cada voto. Assim, por exemplo, um argumento de ponderação entre direitos fundamentais do feto à vida e da gestante à integridade físico-psíquica e liberdade reprodutiva e sexual pressupõe que se considere que o feto anencéfalo está vivo no útero materno. Caso contrário, não haveria direito à vida (em razão da ausência de vida) que pudesse estar em conflito com os direitos da gestante, tornando a ideia de ponderação sem sentido. 5

2.1 Voto do Ministro Marco Aurélio

Após traçar os limites da ação, excluindo a discussão geral sobre a criminalização do aborto, e afirmar ser a laicidade do Estado uma premissa da análise da controvérsia sobre a interrupção da gravidez de fetos anencefálicos, o Min. Marco Aurélio, com base em opiniões médicas, define a anencefalia como uma malformação congênita letal7 . Aponta que, em termos médicos, há dois processos que indicam a morte: a parada completa e irreversível das funções encefálicas e a parada irreversível das funções cardiorrespiratórias8 . Segundo o Ministro Marco Aurélio, o anencéfalo é como o morto cerebral, pois, como este, não tem atividade cortical9 . Para fundamentar sua comparação, cita a Res. 1752/2004 do Conselho Federal de Medicina, a qual considera os anencéfalos natimortos cerebrais10. Diante disso, o Ministro conclui que em casos de anencefalia não há vida em potencial, mas: um conflito apenas aparente entre direitos fundamentais. Em rigor, no outro lado da balança, em contraposição aos direitos da mulher, não se encontra o direito à vida ou à dignidade humana de quem está por vir, justamente porque não há ninguém por vir, não há viabilidade de vida.11 Este é seu argumento central, o qual reforça ao tomar posição pela possibilidade de certeza no diagnóstico da anencefalia, mais uma vez, com base em opiniões médicas12. O Ministro apresenta ainda alguns argumentos secundários, a refutação de possível argumento em favor da manutenção da gravidez mesmo diante da ausência de vida do anencéfalo e uma ponderação de (supostos) direitos do feto anencéfalo e da mãe, feita apenas a título argumentativo. Os argumentos secundários apresentados são dois. O primeiro é na verdade uma resposta à possível objeção de que o legislador deveria (ou poderia) ter previsto a atipicidade da interrupção de gravidez de feto anencefálico expressamente. Para o Ministro, a falta de recursos da medicina para identificar previamente a anencefalia na época da redação do                                                             7 BRASIL. STF. ADPF n. 54, cit., p. 45. 8 BRASIL. STF. ADPF n. 54, cit., p.46. 9 BRASIL. STF. ADPF n. 54, cit., p. 44. 10 BRASIL. STF. ADPF n. 54, cit., p. 46. 11 BRASIL. STF. ADPF n. 54, cit., p. 54. 12 BRASIL. STF. ADPF n. 54, cit., p. 48, 50, 51. 6 Código Penal explicaria a ausência de dispositivo prevendo expressamente a atipicidade da interrupção de gravidez nesses casos13. O segundo argumento secundário é o de que o legislador do Código Penal, apesar da visão machista reinante à época, “estabeleceu como impunível o aborto provocado em gestação oriunda de estupro, quando o feto é plenamente viável”14. Portanto, pode-se concluir, não faz sentido supor que o legislador faria prevalecer supostos direitos do feto sobre os direitos da mulher no caso em que aquele é inviável. A refutação de possível argumento em favor da manutenção da gravidez mesmo diante da ausência de vida do anencéfalo refere-se à ideia de que a gravidez deveria ser mantida para doação de órgãos do anencéfalo. Marco Aurélio oferece duas razões para refutar tal argumento, uma principal (capaz de, por si só, refutar a justificativa da doação de órgãos) e uma secundária. A razão principal é que obrigar à manutenção da gravidez para doação de órgãos seria “coisificar a mulher e ferir, a não mais poder, a sua dignidade”15. Neste passo, cita Kant e afirma que não seria possível obrigar a mulher a levar a gestação a termo ainda que os órgãos de anencéfalos fossem necessários para salvar vidas alheias. Lembra ainda que no Brasil a doação, mesmo de tecidos como sangue e medula óssea, é voluntária16. A razão secundária é a de que – segundo especialistas médicos – o aproveitamento de órgãos de anencéfalos é praticamente impossível, uma vez que normalmente tais fetos são portadores de diversas outras anomalias e que seus órgãos são menores do que os de bebês saudáveis17. Finalmente, apenas a título argumentativo e deixando absolutamente claro não ser esta a sua posição, Marco Aurélio pressupõe a aceitação do direito à vida do anencéfalo e faz sua ponderação em relação aos direitos da mãe, para concluir que: Ainda que se conceba o direito à vida do feto anencéfalo – o que, na minha óptica, é inadmissível, consoante enfatizado –, tal direito cederia, em juízo de ponderação, em prol dos direitos à dignidade da pessoa humana, à liberdade no campo sexual, à autonomia, à privacidade, à integridade física, psicológica e moral e à saúde, previstos, respectivamente, nos artigos 1o , inciso III, 5o , cabeça e incisos II, III e X, e 6o , cabeça, da Carta da República.18                                                             13 BRASIL. STF. ADPF n. 54, cit., p. 56. 14 BRASIL. STF. ADPF n. 54, cit., p. 56. 15 BRASIL. STF. ADPF n. 54, cit., p. 52. 16 BRASIL. STF. ADPF n. 54, cit., p. 53. 17 BRASIL. STF. ADPF n. 54, cit., p. 52-54. 18 BRASIL. STF. ADPF n. 54, cit., p. 69. 7

2.2 Voto do Ministro Cezar Peluso

O conceito de vida é pressuposto dos argumentos centrais da decisão do Min. Peluso, os quais consistem na negativa de criação de uma nova causa de exclusão de ilicitude ou de punibilidade não prevista expressamente pelo legislador e em um confronto entre os direitos do feto e da mãe, com prevalência do direito à vida do feto. O ministro faz referência a seu próprio voto na ADI n. 3510 (sobre células-tronco embrionárias), em esforço declarado de manter coerência entre suas decisões nos dois casos e conceitua vida como um processo, isto é, como a “[...] sucessão unitária e permanente de mudanças ou contínuo processar-se, que distingue dos entes inanimados os chamados seres vivos” 19. Uma vez que todos os anencéfalos tem tal capacidade de “movimento autógeno”, o Ministro conclui que estão vivos20. O Ministro responde em seguida ao argumento de que os anencéfalos seriam “mortos cerebrais”, afirmando que é errado pretender estabelecer o conceito de vida a contrario sensu a partir do conceito de morte encefálica21. Peluso elenca cinco razões por que não se pode aplicar a ideia de morte encefálica aos anencéfalos: 1) A morte encefálica seria, conforme citação de Paulo Silveira Martins, uma situação de prognóstico de irreversibilidade o qual inclui a impossibilidade de respiração espontânea. Tal prognóstico, quanto à respiração, não se aplica aos anencéfalos, os quais podem vir a respirar espontaneamente. Portanto, a noção de morte encefálica não pode ser aplicada a eles22. 2) Não há consenso sobre a existência de atividade e ondas cerebrais no anencéfalo entre os especialistas (como teria ficado claro na audiência pública)23. 3) O anencéfalo tem parte do encéfalo24.                                                             19 BRASIL. STF. ADPF n. 54, cit., p. 377. Como veremos, o esforço do Ministro Peluso não é capaz de garantir a coerência das decisões do Tribunal em si, mas apenas de seus próprios votos. 20 BRASIL. STF. ADPF n. 54, cit., p. 378. 21 BRASIL. STF. ADPF n. 54, cit., p. 379-80. 22 BRASIL. STF. ADPF n. 54, cit., p. 380 e n. 4. 23 BRASIL. STF. ADPF n. 54, cit., p. 380-81. 24 BRASIL. STF. ADPF n. 54, cit., p. 381. 8 4) “A morte encefálica [...] representa interrupção definitiva e irreversível do ciclo vital [...]; já a anencefalia integra, ainda que brevemente, o processo contínuo e progressivo a que chamamos vida” (grifos no original) 25. 5) “[...] a definição legal de morte encefálica é só operacional, enquanto dirigida, pragmaticamente, a garantir aproveitabilidade de órgãos para fins imediatos de transplante. Não é, pois, conceito normativo suscetível de aplicação a qualquer situação factual [...]”26. Em outras palavras, para Peluso (ao contrário de Marco Aurélio), a noção de morte encefálica da lei de transplantes não corresponde a um conceito geral de morte – do qual se poderia deduzir a contrario sensu o conceito de vida –, mas uma exceção aplicável apenas à situação de transplantes de órgãos. A noção de morte encefálica introduziria no ordenamento jurídico brasileiro uma espécie de exclusão de ilicitude para o crime de homicídio em casos de transplante, a exemplo do que a autorização de aborto terapêutico faz em relação ao crime de aborto. Estabelecido o pressuposto de que o feto anencéfalo está vivo no útero materno, o Min. Peluso exclui a licitude da interrupção da gravidez com base em dois argumentos principais: a ausência da necessária causa de exclusão de ilicitude ou punibilidade legal e a prevalência do direito à vida sobre os demais direitos fundamentais. Começa notando que o Direito Penal brasileiro proíbe a interrupção de gravidez de feto vivo ao criminalizar o aborto, proibição esta que não pressupõe potencialidade de vida fora do útero materno27. De modo que a única possibilidade de que a interrupção de gravidez de feto anencefálico não caracterizasse crime seria – “quando muito”, reforça Peluso – que o legislador tivesse previsto uma excludente de ilicitude ou de punibilidade específica para este caso, o que não foi feito. Segundo o Ministro, a “Corte não tem competência para abolir ou atenuar” crime tipificado em lei28. O Ministro desconsidera igualmente a possibilidade de prevalência de direitos da mãe, como saúde psíquica e liberdade pessoal, sobre o direito à vida do feto anencéfalo29. Segundo o Min. Peluso, os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, entendidos como “derivações práticas da extensão da liberdade pessoal da mulher”, são estritos e não permitem “o reconhecimento da existência de poder absoluto de eliminar a vida intrauterina”. Tal poder                                                             25 BRASIL. STF. ADPF n. 54, cit., p. 381. 26 BRASIL. STF. ADPF n. 54, cit., p. 381. 27 BRASIL. STF. ADPF n. 54, cit., p. 382-83. 28 BRASIL. STF. ADPF n. 54, cit., p. 385. 29 BRASIL. STF. ADPF n. 54, cit., p. 387. 9 implicaria “a completa reificação do concepto, transformado em mero objeto disponível, sem nenhuma dignidade jurídica”30. Citando sua própria decisão na ADI n. 3510, Peluso deixa clara sua posição a favor da prevalência do direito à vida, em caso de conflito com outros direitos fundamentais, ao afirmar que o direito à vida é “o pressuposto ou condição transcendental da existência de todos os direitos subjetivos”31 (grifo no original). Sua posição está bem sintetizada no trecho a seguir: A vida humana, imantada de dignidade intrínseca, anterior ao próprio ordenamento jurídico, não pode ser relativizada fora das específicas hipóteses legais [...] Havendo vida, e vida humana – atributo de que é dotado o feto ou bebê anencéfalo –, está-se diante de valor jurídico fundante e inegociável, que não comporta, nessa estima, margem alguma para transigência. Cuida-se como já afirmei, “do valor mais importante do ordenamento jurídico”.32 (grifos no original) O Ministro responde ao possível argumento de que obrigar a mulher a manter a gravidez de feto anencefálico equivaleria a tortura, afirmando que neste caso faltam os elementos da injustiça e do caráter intencional do sofrimento imposto, que além do mais deveria ser passível de ser esquivado de modo compatível com o ordenamento jurídico, para que o argumento pudesse ser aceito33. Finalmente, como argumento secundário, Peluso aponta a grande dificuldade técnica de se estabelecer com precisão absoluta o diagnóstico de anencefalia34.

2.3 Voto do Ministro Gilmar Mendes

No voto do Ministro Gilmar Mendes não há muita discussão direta sobre o conceito de vida, mas lá se distingue expressamente anencefalia de morte cerebral. Fundamento para a distinção é, segundo Gilmar Mendes, o fato de que o anencéfalo é capaz de respiração autônoma, ao contrário do morto cerebral, que necessita de aparelhos35. De todo modo, o argumento do Ministro pressupõe que o feto anencéfalo esteja vivo no útero materno, uma vez que trata de fundamentar uma excludente de ilicitude não expressa no CP em relação ao crime de aborto.                                                             30 BRASIL. STF. ADPF n. 54, cit., p. 414-15. 31 BRASIL. STF. ADPF n. 54, cit., p. 388. 32 BRASIL. STF. ADPF n. 54, cit., p. 391-92. 33 BRASIL. STF. ADPF n. 54, cit., p. 403. 34 BRASIL. STF. ADPF n. 54, cit., p. 398 ss. 35 BRASIL. STF. ADPF n. 54, cit., p. 286. 10 A partir do fato de que o legislador penal previu situações de aborto permitido para proteger a saúde física e psíquica da gestante, constatando que a gravidez de feto anencéfalo traz riscos físicos e psíquicos aumentados à gestante e que, em 1940, não havia tecnologia médica capaz de permitir o diagnóstico de anencefalia, Gilmar Mendes faz “interpretação evolutiva” do CP, para adaptá-lo ao novo contexto fático-jurídico, admitindo a anencefalia como terceira causa de exclusão de ilicitude (não expressa) em caso de aborto36. O Ministro chama atenção ainda para o fato de que, se os danos psíquicos derivados da gestação de feto anencefálico não podem ser considerados tão graves quanto aqueles decorrentes de uma gravidez resultante de estupro, é preciso levar em conta que, no caso de estupro, o legislador permite a interrupção de gravidez de um feto perfeitamente saudável, ao passo que no caso de anencefalia, além do dano psíquico à gestante, há o fato da “inviabilidade quase certa de vida extrauterina do feto”37. Com base nesses argumentos, Gilmar Mendes conclui que: O aborto de fetos anencéfalos está certamente compreendido entre as duas causas excludentes de ilicitude, já previstas no Código Penal, todavia, era inimaginável para o legislador de 1940. Com o avanço das técnicas de diagnóstico, tornou-se comum e relativamente simples descobrir a anencefalia fetal, de modo que a não inclusão na legislação penal dessa hipótese excludente de ilicitude pode ser considerada uma omissão legislativa não condizente com o espírito do próprio Código Penal e também não compatível com a Constituição38.

3 Decisão por maioria e racionalidade coletiva: uma impossibilidade

A comparação entre os votos exemplares sintetizados acima nos mostra que é possível divergir não apenas quanto ao deferimento ou indeferimento do pedido, mas também sobre os fundamentos desta decisão. O Ministro Gilmar Mendes concorda com o Ministro Marco Aurélio em relação ao pedido, mas não em relação ao fundamento; e concorda com o Ministro Cezar Peluso no que se refere ao fundamento, mas não quanto ao pedido. Enquanto o Ministro Marco Aurélio considerou o feto anencéfalo como morto, os Ministros Gilmar Mendes e Cezar Peluso o consideraram como vivo. Diante disso, que sentido podemos atribuir à decisão do STF neste caso? Sem dúvida, é possível concluir a partir da decisão da ADPF n. 54 que a interrupção de gravidez de feto                                                             36 BRASIL. STF. ADPF n. 54, cit., p. 294-95 37 BRASIL. STF. ADPF n. 54, cit., p. 294-95. 38 BRASIL. STF. ADPF n. 54, cit., p. 294-95. 11 anencefálico não é crime no Brasil. Esta questão está encerrada. Mas será possível afirmar algo sobre o que constitui “vida” para o tribunal? Parece-nos que não é possível dizer que exista uma posição do STF a respeito desta questão na ADPF n. 54. E isso apesar de todos os Ministros que participaram do julgamento terem tomado partido neste debate em seus votos. O que temos são apenas decisões individuais fundamentadas. A decisão final não tem nenhum fundamento racional e, portanto, não consagra nenhuma posição a respeito do que seja vida ou morte no direito brasileiro. A razão para isso é que, como demonstram List e Pettit39, não é possível derivar racionalidade coletiva diretamente da racionalidade individual. Mais especificamente, nenhum procedimento de agregação de decisões individuais que, como a votação por maioria, apresente simultaneamente as características de domínio universal, anonimato e sistematicidade, é capaz de garantir que a decisão coletiva seja racional. Trata-se de uma impossibilidade lógica40. A característica de domínio universal significa tratar-se de procedimento de agregação que aceita como input qualquer conjunto de juízos individuais logicamente possível, desde que satisfeitos os requisitos de completude, consistência e fechamento dedutivo. Um conjunto de juízos será completo se contiver uma afirmação ou negação de cada uma das questões que precisam ser decididas. Será consistente se não contiver simultaneamente uma afirmação e sua negação. E será fechado dedutivamente se todas as proposições que resultem logicamente das afirmações que o conjunto contém também estejam contidas nele41. Como se percebe, essas exigências implicam apenas que as decisões individuais sejam de fato tomadas e não sejam em si mesmas contraditórias, requisitos mínimos para que possam ser consideradas individualmente racionais. A característica de domínio universal está presente no modo de decisão do STF, uma vez que este não exclui a priori nenhuma posição logicamente possível e é razoável supor que os votos individuais cumpram requisitos básicos de racionalidade. A característica de anonimato significa que o procedimento de agregação não distingue entre os juízos dos membros do grupo, tendo, todos, o mesmo peso. É o que ocorre no STF, onde cada Ministro tem um voto e todos os votos tem o mesmo valor. Finalmente, a característica da sistematicidade implica que o processo de agregação é o mesmo para todas as proposições, de modo que o juízo coletivo é formado apenas pelos                                                             39 LIST; PETTIT, 2002, p. 98-99. 40 Cuja demonstração formal pode ser encontrada em List e Pettit (2002, p. 108-10). 41 LIST; PETTIT, 2002, p. 97. 12 juízos individuais sobre cada proposição, independentemente de qual seja a proposição em questão. Esta característica está igualmente presente no procedimento do STF para as decisões coletivas, uma vez que não há uma votação apenas acerca das premissas, com o resultado do julgamento sendo a decorrência lógica das decisões majoritárias acerca destas. O que se verifica é que cada Ministro decide de forma autônoma sobre todas as questões envolvidas no caso, isto é, tanto sobre as premissas quanto sobre a conclusão. Disso resulta que, sendo a decisão coletiva formada diretamente pela agregação das decisões individuais, em um procedimento de decisão por maioria, como o do STF, a racionalidade permanece individual e será refletida coletivamente apenas por acaso. Isso não significa que não seja possível haver racionalidade coletiva. Pelo contrário, os próprios List e Pettit defendem que a racionalidade coletiva é possível, apenas depende necessariamente de um processo de decisão que quebre a relação direta entre decisões individuais e decisão coletiva, abrindo mão de pelo menos uma das três características do procedimento de simples agregação de juízos individuais mencionadas acima: domínio universal, anonimato ou sistematicidade42. Não analisaremos aqui as vantagens e desvantagens de cada uma dessas possibilidades e dos procedimentos decisórios resultantes, pois nosso objetivo neste trabalho não é sugerir alterações no procedimento decisório do STF43. Interessa-nos encarar o fato de que cada acórdão do STF consiste em um conjunto de decisões racionais individuais e não em uma decisão coletiva com racionalidade coletiva. Tendo em vista que o procedimento de votação por maioria agrega apenas o resultado dessas decisões individuais – e não seu fundamento –, note-se que é possível até mesmo haver uma decisão final na ação que não corresponda à opinião da maioria com relação aos fundamentos. Vamos demonstrar isso com um exemplo simples (não jurídico), extraído também da obra de List e Pettit44. Vamos imaginar que três indivíduos (A, B e C), os quais são simultaneamente funcionários e titulares de uma empresa, precisam decidir se concedem a si mesmos um aumento de salário ou usam a verba disponível para aumentar a segurança no local de trabalho, por meio da instalação de um dispositivo contra choques elétricos.                                                             42 LIST; PETTIT, 2002, p. 95 e 101. 43 Embora as conclusões deste artigo indiquem a conveniência de se fazer uma reflexão neste sentido. 44 LIST, Christian e PETTIT, Philip. Aggregating, cit., p. 108-109. 13 Todos eles concordam que esta decisão depende da decisão sobre três outras questões que lhe são prévias. Será preciso decidir primeiro: (1) se existe realmente um risco grande de eletrocução; (2) se o dispositivo de segurança é realmente eficaz para evitar o risco de eletrocução; (3) se o sacrifício financeiro implicado pode ser razoavelmente suportado por todos os indivíduos envolvidos. Como os indivíduos do exemplo são todos racionais, qualquer um deles que responder a essas três questões afirmativamente votará pela instalação do dispositivo de segurança. Ao contrário, os indivíduos que responderem negativamente a qualquer uma delas votará pelo aumento de salário. Vamos supor que, depois de deliberarem, os indivíduos façam uma votação e seus votos sejam os seguintes: Perigo grave? Medida eficaz? Sacrifício suportável? Instalação do dispositivo? A SIM NÃO SIM NÃO B NÃO SIM SIM NÃO C SIM SIM NÃO NÃO Note-se que, embora todos os indivíduos tenham decidido racionalmente, a decisão final coletiva é irracional, pois não reflete o juízo coletivo em relação às premissas para a decisão final. Para cada uma das premissas há uma maioria de votos positivos, de modo que a consequência racional seria uma decisão positiva também com relação à questão da instalação do dispositivo de segurança. O exemplo mostra que a simples agregação de decisões individuais racionais pode resultar em decisões coletivas irracionais. No caso da ADPF n. 54, não se chegou a este ponto. Não se trata de situação na qual a maioria com relação à procedência da ação contradiz a maioria com relação aos fundamentos. Embora isso possa em teoria acontecer em decisões do STF – pois o procedimento de agregação de votos empregado no tribunal o permite –, para o que nos interessa importa notar que, em virtude da falta de uma racionalidade propriamente coletiva, existe uma decisão sobre o pedido, mas não sobre seus fundamentos. Senão vejamos. 14 Comparando a posição dos Ministros com relação à procedência da ação, temos o seguinte resultado45: MINISTRO PROCEDENTE IMPROCEDENTE Marco Aurélio X Rosa Weber X Joaquim Barbosa X Luiz Fux X Carmen Lúcia X Ricardo Lewandowski X Ayres Britto X Gilmar Mendes X Celso de Mello X Cezar Peluso X Dias Toffoli Impedido TOTAL 8 2 Já a comparação das posições dos Ministros com relação a estar o feto anencéfalo vivo ou morto no útero materno, o resultado é bastante diferente46: MINISTRO VIVO MORTO Marco Aurélio X Rosa Weber X Joaquim Barbosa X Luiz Fux X Carmen Lúcia X Ricardo Lewandowski X Ayres Britto X Gilmar Mendes X Celso de Mello X Cezar Peluso X Dias Toffoli impedido TOTAL 5 5                                                             45 A rigor, Gilmar Mendes e Celso de Mello julgaram a ação procedente, mas estabeleceram condições para o diagnóstico da anencefalia. Esta específica divisão na maioria, no entanto, não nos interessa aqui, pois não se relaciona com a concepção de vida defendida pelos Ministros, mas apenas com a discussão secundária a respeito da possibilidade de certeza de diagnóstico. 46 Evidentemente, a referência a um placar de votação com relação ao pressuposto é apenas figurada. Os Ministros votam apenas com relação ao deferimento ou indeferimento do pedido. 15 Temos, então, situação na qual um caso foi decidido sem que houvesse uma posição do tribunal sobre questão considerada pressuposto da decisão por todos os Ministros. Em outras palavras, temos uma posição do tribunal quanto à licitude da interrupção da gravidez de feto anencefálico, mas nenhuma decisão sobre o que o tribunal considera que seja vida. Isso significa que apenas os votos individuais são fundamentados. A decisão do colegiado não tem fundamento. A decisão é incapaz, portanto, de contribuir para o avanço do debate jurídicodogmático sobre a questão do que se deve considerar vida no direito brasileiro. Além disso, ela não contribui para a formação de decisões judiciais consistentes, além de impedir que a sociedade cobre consistência do tribunal. Como dizer que uma próxima decisão, que também dependa do conceito de vida, é consistente ou inconsistente com a decisão da ADPF n. 54, se não existe um conceito de vida definido pela ADPF n. 54? Evidentemente que não se supõe que de uma decisão sobre o conceito de vida pudesse ser simplesmente deduzida a posição do STF em relação a outros problemas que envolvessem esse conceito. Haveria sempre espaço para que o tribunal, em outros casos, fizesse distinções em relação ao problema da interrupção de gravidez de feto anencefálico. Assim, por exemplo, suponhamos que a questão diante do tribunal fosse saber se um feto anencéfalo que nasceu e respirou pode ser considerado herdeiro do pai pré-morto. É evidente que o tribunal, independentemente da decisão na ADPF n. 54, poderia introduzir uma distinção entre os casos capaz de justificar uma decisão diversa a respeito do conceito de vida, mantendo a coerência com sua decisão anterior. Fazendo um exercício de pura especulação, podemos imaginar que, vendo-se diante desse novo caso, o tribunal poderia fazer uma distinção entre o problema do aborto e da herança com base no fato de um tratar de direito fundamental, enquanto outro envolve apenas direito patrimonial, por exemplo. O que se quer dizer, portanto, não é que a decisão da ADPF n. 54, caso fosse racional na dimensão coletiva, encerraria necessariamente de modo definitivo o debate sobre o sentido jurídico de vida ou morte. A questão é que, caso houvesse uma fundamentação coletiva para a decisão no caso da interrupção de gravidez de anencéfalos, seria possível, em primeiro lugar, usar essa decisão para avançar (ainda que não para encerrar) o debate jurídico-dogmático sobre vida; como professora de direito, poderia dizer aos meus alunos que o STF entende que fetos anencefálicos estão vivos/mortos. 16 Mas, sobretudo, seria possível criticar as decisões futuras do tribunal com base na sua falta de consistência em relação à ADPF n. 54. Deixo em aberto a questão sobre se a dogmática jurídica é um projeto sequer possível de ser realizado e, além disso, se é capaz de conferir legitimidade às decisões judiciais. O que podemos concluir, a partir do que se demonstrou neste artigo, é que um problema de legitimidade das decisões dos tribunais brasileiros existe, caso se suponha que tal legitimidade está relacionada ao fundamento das decisões e sua coerência argumentativa. Além disso, os argumentos acima nos permitem concluir que tal déficit de legitimidade é uma decorrência direta da forma como se estrutura o processo de agregação dos juízos individuais para formar a decisão do tribunal.

Referências

BRASIL. STF. ADPF n. 54. Relator: Marco Aurélio. J. em 12/04/2012, p. 314. Disponível em: . Acesso em: 23 out. 2013. LIST, Christian; PETTIT, Philip. Aggregating Sets of Judgments: an Impossibility Result. Economics and Philosophy, 18, p. 89-110, 2002.