INTRODUÇÃO
Não é novidade que o número de acidentes fatais no trânsito das grandes e médias cidades brasileiras vem crescendo assustadoramente nos últimos anos. Apesar de diversas campanhas educativas e até mesmo da modificação do texto legal, as causas destes acidentes geralmente resumem-se à euforia descompromissada dos condutores, principalmente dos mais jovens.
Neste ínterim surge um cenário doloroso já conhecido por muitas famílias: a perda de entes queridos, vítimas fatais da negligência, imprudência, imperícia e indiferença de condutores sem compromisso com a vida humana, e a persistente sensação de impunidade.
Os mais radicais clamam por uma punição mais severa aos homicidas de trânsito, que utilizam seus automóveis como uma arma, conduzindo-os em alta velocidade, embriagados e, pasmem, até mesmo promovendo rachas em vias públicas de grande movimento.
Posto isto, os crimes praticados nas situações acima expostas merecem ou não uma punição mais severa do Estado? É justo que um condutor que ceifa a vida de outrem, empreendendo pegas em vias públicas e tratando a vida com descaso, receba a punição de um crime culposo? Qual a necessidade de limitar a incidência do dolo eventual evitando dar-lhe desnecessária elasticidade?
A discussão é turbulenta e a linha que distingue o dolo eventual da culpa consciente é tênue, todavia as conseqüências geradas pela incidência de um ou de outro são altamente relevantes ao Direito e, conseqüentemente, à Sociedade.
Não obstante a existência de julgados favoráveis à aplicação do dolo eventual, ainda são bastante obscuros os critérios utilizados para sua aplicação nos casos concretos e, justamente por isso, se faz necessário traçar suas principais linhas diferenciadoras em relação à culpa consciente. É exatamente neste ponto que o presente estudo se desenvolve.
É inegável o perigo de estabelecer aos crimes de trânsito um critério objetivo de incidência do tipo doloso, em sua espécie eventual, pois apesar de existirem no trânsito condutas criminosas revestidas, com toda certeza, de dolo eventual, a grande maioria delas é praticada culposamente.
Desta feita, a presente monografia analisa os critérios doutrinários e jurisprudenciais idôneos a distinguir a incidência do dolo eventual da culpa consciente nos homicídios praticados no trânsito com inobservância grave das regras básicas atinentes ao tráfego de veículos, demonstrando a tênue linha que paira entre estas duas espécies e apresentando suas principais semelhanças e diferenças.
Para tanto, este trabalho desenvolveu-se em três capítulos. O primeiro cuida do tipo penal doloso, conceituando-o e apontando suas principais características por meio das diversas divisões doutrinárias. O segundo capítulo trata do tipo penal culposo, conceituando-o e apontando suas principais características, tal como no primeiro capítulo. Por fim, no terceiro e último capítulo, adentra-se especificamente ao tema proposto no presente estudo, demonstrando as principais linhas doutrinárias e jurisprudenciais que diferenciam o dolo eventual da culpa consciente, principalmente no tocante aos homicídios praticados na direção de veículos automotores.
1 DOLO
1.1.CONCEITO
Segundo o Código Penal Brasileiro, em seu artigo 18, inciso I, “Diz-se o crime: doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo.”
Esmiuçando o conceito genérico trazido pela letra legal, o dolo pode ser definido como a “vontade e consciência dirigidas a realização da conduta prevista no tipo penal incriminador” (GRECO, 2008, v. I, p.183), ou ainda, nas palavras de Welzel apud Bitencourt, “dolo, em sentido técnico penal, é somente a vontade de ação orientada à realização do tipo de um delito” (2007, p.256).
Bettiol, citado por Costa Jr. (2009, p. 99), define dolo como a “consciência (previsão) e vontade do fato conhecido como contrário ao dever”, ou, em outras palavras, dolo é a vontade livre e consciente – que abrange a previsão – de praticar determinada conduta proibida pela legislação penal.
Por seu turno, Luiz Flávio Gomes (2007, v. II, p.376) conceitua didaticamente o tipo doloso:
Para Zaffaroni (2011, v. I, p. 420) “dolo é uma vontade determinada que, como qualquer vontade, pressupõe um conhecimento determinado”. Todavia não se faz necessário que o agente, quando da sua conduta pautada na consciência e na vontade, tenha o conhecimento da tipicidade de seus atos, “é desnecessário o conhecimento da configuração típica, sendo suficiente o conhecimento das circunstâncias de fato necessárias à composição da figura típica” (BITENCOURT, 2004, p. 256).
1.2.ELEMENTOS DO DOLO
Como já exposto, dolo é a vontade e consciência dirigidas à prática de um determinado fato proibido pelo tipo penal. Nesta esteira, extraem-se dois elementos essenciais à existência do tipo doloso, quais sejam: elemento intelectual e elemento volitivo.
O primeiro, também chamado de elemento cognitivo, consiste na consciência atual, inerente ao sujeito ativo, de saber exatamente aquilo que faz, agindo harmônica e intelectualmente com os elementos objetivos do tipo penal. “O agente quer a realização dos componentes do tipo objetivo com o conhecimento daquele caso específico e concreto” (MADEIRA apud GRECO, 2008, v. I, p.183).
Cognição, acima de tudo, é conhecimento. Conhecimento da prática de determinado ato. Para concorrer a título de dolo, o agente deve ter pleno conhecimento das condutas por si realizadas, sabendo exatamente aquilo que faz.
Juntamente com o elemento cognitivo, coexiste a previsão, “isto é, a representação, que deve abranger correta e completamente todos os elementos essenciais do tipo, sejam eles descritivos, normativos ou subjetivos” (BITENCOURT, 2004, p. 258).
Necessário pontuar que a consciência, como elemento, não se confunde com a cognição absoluta do tipo penal ao qual se amolda a conduta praticada (consciência da ilicitude). “A exigência do conhecimento se cumpre quando o agente conhece a situação social objetiva, ainda que não saiba que essa situação social objetiva se encontra prevista dentro de um tipo penal” (RAMÍREZ e MALARÉE apud GRECO, 2008, v. I, p.184).
O segundo elemento caracterizador da conduta dolosa externa-se na vontade, incondicionada, de o agente praticar, conscientemente, determinada conduta ilícita. É também chamada de elemento volitivo, sem o qual o dolo resta completamente esvaziado.
De modo exemplificativo, Rogério Greco (2008, v. I, p. 184) conceitua a vontade da seguinte forma:
De nada basta a consciência sem a vontade. Uma está intimamente ligada à outra para que o dolo se configure. Nota-se que no exemplo trazido acima, apesar de Antônio ter consciência dos atos por ele realizados (elemento cognitivo), faltou-lhe a vontade, carência esta que afasta por definitivo o crime doloso.
Da mesma forma pode-se falar que a vontade sem consciência afasta o dolo, daí outro exemplo criado por Rogério Greco (2009, v. I, p. 186),
Por fim, resumindo os elementos intrínsecos ao dolo, Mirabete (2008, v.I, p. 130) discorre objetivamente:
1.3 .ELEMENTOS SUBJETIVOS DO TIPO DISTINTOS DO DOLO
Na didática divisão de Zaffaroni, existem tipos penais simétricos – que são aqueles cujo seu aspecto subjetivo se esgota no dolo – e os tipos penais assimétricos – que possuem elementos ou requisitos que excedem o dolo. Trata-se, neste último caso, de um plus trazido pelo próprio tipo penal, que vai um pouco além da conduta contida nos tipos penais simétricos.
Os tipos penais normais, segundo Mirabete (2008, p.133), são compostos somente por elementos objetivos. Portanto, para que o agente incida no “tipo penal normal”, basta que tenha conhecimento dos elementos objetivos.
Todavia, existem tipos penais constituídos não só por elementos objetivos, mas também por elementos normativos, como os assimétricos, os quais, como já exposto, trazem um plus, um “algo a mais” que também deve fazer parte da cognição e vontade do agente. “Pode-se dizer que o tipo subjetivo é o dolo e eventualmente o dolo e outros elementos subjetivos inscritos ou implícitos no tipo penal abstrato” (MIRABETE, v. I, 2008, p.133), ou seja, quando o tipo penal traz apenas elementos objetivos, o dolo esgota-se nestes; quando o tipo penal traz elementos subjetivos, o dolo também deve abrangê-los.
Apesar de alguns doutrinadores divergirem quanto à classificação dos “elementos subjetivos do tipo”, considerando que o termo dolo, por si só, abrange a totalidade dos elementos contidos no tipo penal, cabe destacar as principais espécies que delimitam os elementos subjetivos do tipo.
1.3.1.Delitos de intenção
Trata-se de uma finalidade que excede o tipo penal objetivo. Vai além deste. Constitui um especial fim de agir. É a finalidade última do agente. A doutrina de Cezar Roberto Bitencourt traz como exemplos destes delitos os crimes previstos no art. 157 (para si ou para outrem); art. 159 (com o fim de obter); e art. 180 (em proveito próprio ou alheio).
Os delitos de intenção podem ser divididos, ainda, como: delitos de resultado cortado e delitos mutilados de dois atos. Nos dizeres de Bitencourt (2004, p. 265) “os primeiros consistem na realização de um ato visando a produção de um resultado, que fica fora do tipo e sem a intervenção do autor”. Como exemplo, Zaffaroni (2011, p. 418) menciona o crime de homicídio qualificado (artigo 121, §2º, V, do CP) pelo inciso V, que nada mais é que matar alguém para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime. Neste caso, verifica-se que os verbos trazidos pelo inciso V só serão verificados posteriormente, sem que nada mais ocorra, consumando-se o crime, em sua forma qualificada, apenas com o evento morte, não importando, por exemplo, se a ocultação de outro crime foi ou será verificada.
Já os segundos (delitos mutilados de dois atos), são aqueles em que o autor realiza uma conduta como pré-requisito para outra, “o autor quer alcançar, após ter realizado o tipo, o resultado que fica fora dele” (BITENCOURT, 2004, p. 264). É o caso contido no artigo 288 do Código Penal, que trata do crime de quadrilha ou bando, caso em que o autor incide neste tipo penal objetivando a realização de outros crimes.
1.3.2.Delitos de tendência
Dizem respeito a uma tendência interna do agente, que também são chamadas de tendências especiais da ação. Em nosso ordenamento jurídico, os delitos de tendência são mais incidentes nos crimes sexuais, como, por exemplo, a exigência trazida pelo tipo penal de “satisfação da lascívia”. Para Welzel apud Bitencourt (2004, p. 266), “a tendência especial de ação, sobretudo se trata aqui da tendência voluptuosa nos delitos de lascívia. Ação lasciva é exclusivamente a lesão objetiva do pudor levada a efeito com tendência subjetiva voluptuosa”.
O exemplo mais rotineiro trazido pelas doutrinas de direito penal é o do médico ginecologista, que a pretexto de realizar um exame em uma determinada paciente, procura, por este meio, satisfazer sua lascívia, incidindo, desta feita, no crime de violação sexual mediante fraude (art. 215 do CP). Nota-se que, no exemplo em tela, existe um momento especial de ânimo, uma tendência interna do agente direcionada à satisfação de sua lascívia. Se assim não fosse, o fato seria atípico.
1.3.3.Estado de consciência do agente
São os casos em que se exige, além da vontade propriamente dita, certa consciência especial determinante do tipo penal. A exemplo, o tipo penal de receptação dolosa, tipificado no artigo 180 do Código Penal, traz, além dos verbos “adquirir”, “receber”, “transportar”, “conduzir” ou “ocultar”, em proveito próprio ou alheio, a exigência que o agente tenha consciência de que a coisa adquirida, recebida, transportada, conduzida ou ocultada, seja produto de crime.
O mesmo ocorre nos crimes de denunciação caluniosa, que necessita que o agente impute a outrem crime de que o sabe inocente. Para que o delito se aperfeiçoe, o estado de consciência do agente é imprescindível, sob pena de atipicidade da conduta.
1.3.4.Momentos especiais de ânimo
Para alguns doutrinadores, os momentos especiais de ânimo também fazem parte dos elementos subjetivos do tipo distintos do dolo, e verificam-se quando o agente tem uma “vontade especial” em seu fim. É o caso dos homicídios qualificados por “motivo torpe”, “motivo cruel”, etc.
De outro lado, doutrinadores defendem que tal elemento não faz, na verdade, parte do dolo, mas sim da culpabilidade, como bem ensinam Zaffaroni e Pierangeli (2011, v. I, p. 439):
1.4.ESPÉCIES DE DOLO
O artigo 18 do Código Penal Brasileiro, em seu inciso primeiro, encontra-se dividido em duas partes. Na primeira, dispõe que existe dolo “quando o agente quis o resultado”. Na segunda parte, dispõe que existe dolo quando o agente, não querendo diretamente o resultado, “assume o risco de produzi-lo”.
Neste mesmo sentido, a doutrina majoritária costuma delimitar o dolo em duas espécies, quais sejam: dolo direto e dolo indireto. Este se divide em dolo eventual e dolo alternativo, enquanto aquele se subdivide em dolo direto de primeiro grau e dolo direto de segundo grau.
Apesar de discorrer no presente item a respeito das espécies de dolo, tal abordagem será realizada de forma mais aprofundada, no presente trabalho, em capítulo específico, principalmente no tocante ao dolo eventual.
1.4.1.Dolo Direto
É o dolo por excelência, também chamado de dolo imediato. Nele o agente pratica sua conduta voltada a um fim determinado, inicialmente pretendido. Sua vontade é concretizar, diretamente, o tipo penal, mesmo que, para tal, necessite causar resultados colaterais.
Neste ínterim, existem duas subespécies de dolo direto: de primeiro grau e de segundo grau. Para Cezar Roberto Bitencourt (2004, p.260), “o dolo direto em relação ao fim proposto e aos meios escolhidos é classificado como de primeiro grau, e em relação aos efeitos colaterais representados como necessários, é classificado como de segundo grau.”.
Assim, o agente que, objetivando a morte de determinada pessoa, desfere-lhe cinco tiros e lhe causa a morte, age com dolo direto de primeiro grau. Por outro lado, o agente que, objetivando a morte de um desafeto, ocasiona a explosão de uma bomba em um avião, matando todos os seus passageiros, inclusive seu desafeto, age com dolo direto de segundo grau, posto que, para alcançar seu objetivo final, anui consciente e imediatamente com os efeitos colaterais de seus atos, pois a morte de terceiros torna-se uma consequência necessária para a consumação do delito final.
1.4.2. Dolo indireto
Como já mencionado acima, o dolo indireto está contido na segunda parte do inciso I do artigo 18 do Código Penal, quando o agente assume o risco de produzir determinado resultado.
Existem, basicamente, dois tipos de dolo indireto: dolo indireto alternativo e dolo indireto eventual.
1.4.2.1 Dolo alternativo
Tem-se dolo alternativo quando a vontade do agente direciona-se a um resultado “alternativo”, seja quanto ao tipo penal (alternatividade objetiva), seja quanto à pessoa lesada (alternatividade subjetiva).
É o caso do agente que realiza determinada conduta delituosa com a finalidade de alcançar um determinado resultado naturalístico, porém, caso sua empreitada resulte em crime diverso, ou atinja pessoa diversa da pretendida, ele ficará satisfeito da mesma forma.
A doutrina de Rogério Greco (2008, v. I, p. 190) menciona o seguinte exemplo para fins didáticos: “Como exemplo de dolo indireto alternativo, tomando por base o resultado, podemos citar aquele em que o agente efetua disparos contra a vítima, querendo feri-la ou matá-la.”.
Da mesma forma, aquele que, efetuando disparos de longa distância, objetivando matar A ou B, que estão conversando frente a frente, age com dolo indireto alternativo. Nota-se que tal espécie é caracterizada pela alternatividade entre o crime cometido, ou quanto o sujeito passivo de tal crime.
1.4.2.2 Dolo eventual
Eventual, etimologicamente falando, provém do latim eventualis, e significa incerteza, casual, fortuito ou, ainda, aquilo que pode acontecer. O dolo eventual, conceituado amplamente pelo Código Penal, seria o “assumir o risco” de praticar determinado crime, vindo a praticá-lo após a representação de tal risco.
Todavia, o conceito trazido pelo Código Penal não é dos mais esclarecedores. Para que seja verificada a incidência desta espécie dolosa, o mero “assumir o risco” não se faz suficiente.
No dolo eventual, além da representação do resultado como possível (previsão), necessário se faz que o agente consinta que tal resultado eventualmente ocorra, ou seja, “é a conduta daquele que diz a si mesmo ‘que aguente’, ‘que se incomode’, ‘se acontecer, azar’, ‘não me importo’.” (ZAFFARONI, 2011, p.434).
O agente não quer diretamente a realização do tipo – se assim fosse agiria com dolo direto – mas, assume o risco de praticá-lo, aceitando-o como provável ou possível, quedando-se indiferente quanto ao “fortuito” resultado.
Rogério Greco (2008, v. I, p. 190), em seu feliz conceito de dolo eventual, dispõe que “fala-se em dolo eventual quando o agente, embora não querendo diretamente praticar a infração penal, não se abstém de agir e, com isso, assume o risco de produzir o resultado que por ele já havia sido previsto e aceito.”.
Nas palavras de Damásio de Jesus (2003, v. I, p. 290/291),
Necessário se faz, portanto, para que reste configurado o dolo eventual, que o agente tenha a previsão que sua conduta pode gerar determinado resultado proibido pelo tipo penal; que, mesmo prevendo tal resultado, não se abstenha da ação, assumindo o risco de produzi-lo; e, juntamente com o risco assumido, quedar-se indiferente quanto ao resultado (tanto faz; se acontecer aconteceu; não me importo; que se dane).
Zaffaroni e Pierangeli (2011, v. I, p. 435), ilustrando os casos de dolo eventual, trazem os seguinte exemplos, que mais se estreitam com o objetivo do presente trabalho:
Salutar alerta é o de Bitencourt (2004, p. 262), quando ensina que “a mera esperança ou simples desejo de que determinado resultado ocorra” não enseja o dolo eventual. É o exemplo do agente que, desejando que seu desafeto seja devorado por lobos famintos, prepara-lhe um passeio para uma floresta onde sabe ser grande a população destes caninos, na esperança que morra.
Apesar de ter seu conceito sedimentado doutrinariamente, o maior problema do dolo eventual verifica-se no campo prático processual, isto porque é impossível adentrar a mente do agente e retirar os elementos subjetivos que antecederam o fato criminoso. Uma das soluções trazidas pela doutrina externa-se nas palavras de Damásio de Jesus:
O juiz, na investigação do dolo eventual, deve apreciar as circunstâncias do fato concreto e não buscá-lo na mente do autor, uma vez que, como ficou consignado, nenhum réu vai confessar a previsão do resultado, a consciência da possibilidade ou probabilidade de sua causação e a consciência do consentimento. Daí valer-se dos chamados ‘indicadores objetivos’, dentre os quais incluem-se quatro de capital importância: 1º.) risco de perigo para o bem jurídico implícito na conduta (ex: a vida); 2º.) poder de evitação de eventual resultado pela abstenção da ação; 3º.) meios de execução empregados; e 4º.) desconsideração, falta de respeito ou indiferença para com o bem jurídico.
1.5. PRINCIPAIS TEORIAS SOBRE O DOLO DIRETO E DOLO EVENTUAL
Várias são as teorias que circundam o conteúdo do dolo direto e do dolo eventual, dentre as quais destacamos as seguintes: Teoria da vontade; Teoria da representação ou da possibilidade; Teoria do consentimento; Teoria da indiferença do bem jurídico; Teoria da não-comprovada vontade de evitação do resultado; Teorias igualitárias.
1.5.1.Teoria da vontade
Para tal teoria, que teve como um de seus ilustres defensores Francesco Carrara, o dolo constitui a vontade de praticar livre e conscientemente os elementos trazidos pelo tipo penal incriminador, em busca do resultado naturalístico por ele proibido. Assim, o agente, ao lesar o bem jurídico protegido pela lei penal, deve ter consciência de seus atos e vontade de causar o resultado.
É a teoria adotada pelo Código Penal Brasileiro para definir o dolo direto.
1.5.2.Teoria da representação ou da possibilidade
De forma diversa, a teoria da representação defende a existência do dolo eventual quando o sujeito ativo, tão somente, prevê o resultado, admitindo-o como possível, sendo irrelevante se, com a previsibilidade do evento proibido, assumiu ou não o risco da produção do resultado naturalístico amparado pela lei.
Imperioso notar o total descrédito desta teoria. A previsão, sozinha, não tem o condão de transformar a possibilidade em dolo eventual, que deve ser sempre seguido do elemento volitivo e cognitivo. Sem vontade – mesmo que esta seja demonstrada indiretamente pelo consentimento - não há de se falar em dolo.
Todavia, apesar de desacreditada, a teoria da representação está visivelmente contida nas teorias do consentimento e da vontade, posto que não se pode consentir com algo que não se representa, assim como não se tem vontade sem representação. Nos dizeres de Zaffaroni e Pierangeli (2011, v. I, p. 420), “há mais de meio século a doutrina apercebeu-se de que é tão falso que o dolo seja representação como que o dolo seja vontade: o dolo é representação e vontade.”.
1.5.3 .Teoria do consentimento
A teoria do consentimento (ou assentimento), que integra a parte final do inciso I do artigo 18 do Código Penal, dispõe, de forma diferente da teoria da representação, que ocorre o dolo eventual quando o sujeito, além de representar como possível o resultado proibido por lei (elemento intelectivo), consente, aceita, assente que o mesmo se exteriorize no mundo penal (elemento volitivo).
É uma forma indireta da representação da vontade. Assim, equipare-se à vontade direta o simples fato de o agente representar o resultado como possível, consentindo com o mesmo, quedando-se indiferente quanto ao evento que sua conduta, quase certamente, poderá gerar.
Segundo Damásio de Jesus (2009, p. 287), desdobra-se em duas teorias:
1ª) Teoria hipotética do consentimento: atualmente, quase abandonada, funda-se na previsão da possibilidade do evento, de acordo com a fórmula 1 de Frank (“a previsão do resultado como possível somente constitui dolo quando, antevisto o evento como certo pelo sujeito, não o deteve”). A previsão do resultado deixa de atuar como freio inibitório da conduta.
2ª) Teoria positiva do consentimento: com base na fórmula 2 de Frank, entende que no dolo eventual o sujeito não leva em conta a possibilidade do evento previsto, agindo e assumindo o risco de sua produção (“seja assim ou de outra maneira, suceda isto ou aquilo, em qualquer caso, agirei”).
A teoria positiva do consentimento é a atualmente adotada pelo Código Penal pátrio.
1.5.4.Teoria da indiferença do bem jurídico
Defendida por ENGISCH, dispõe que o dolo eventual é identificado pela indiferença do autor perante os possíveis resultados colaterais de sua conduta, excluídos os resultados indesejados.
Nota-se que, ao excluir os resultados indesejados, a teoria da indiferença reduz o dolo eventual à culpa consciente, visto que a mera indesejabilidade o excluiria.
1.5.5. Teoria da não-comprovada vontade de evitação do resultado
Ensina que a diferença entre o dolo eventual e a culpa consciente reside na ativação de contrafatores para evitar o resultado previsto, ou seja, na imprudência consciente o autor ativa tais contrafatores, ao passo que no dolo eventual, ignora-os.
Juarez Cirino dos Santos (2008, p.146) critica a teoria em tela, afirmando que “a não ativação de contra-fatores pode, também, ser explicada pela leviandade humana de confiar na própria estrela”, característica da culpa consciente, que será abordada posteriormente.
1.5.6.Teorias igualitárias
Criada por conta da grande dificuldade de diferenciar o dolo eventual da culpa consciente, tal teoria propõe a unificação destas espécies em uma terceira categoria que estaria situada entre o dolo e a culpa.
Apesar das vantagens práticas, principalmente por colocar fim em uma eterna discussão doutrinária e jurisprudencial, a solução buscada pelas teorias igualitárias acabaria por injustiçar decisões, pois esvaziaria o dolo eventual – mais grave – e a culpa consciente – mais branda –, criando um abismo quantitativo (pena) e qualitativo (justiça) nos casos concretos.
2 CULPA
2.1. CONCEITO
As relações humanas, em busca de maior harmonia, ordem e civilidade, são direcionadas e amparadas por mecanismos legais que visam coibir lesões a terceiros e a coletividade. Desta feita, o homem não pode fazer o que bem entende, como bem entende e aonde quer, caso contrário gerar-se-ia o caos social. Para evitar a desordem, a vida em sociedade impõe regras que, inobstante a classe social, cor ou credo, devem ser obedecidas por todos.
Assim, ponderando o preceito primário de que o homem é um ser cercado de constantes perigos, espera-se que todos, na direção de suas condutas, observem o dever de cuidado objetivo imposto, conforme bem ensina o princípio da confiança.
Trazendo o conceito legal de crime culposo, assim dispõe o inciso II do artigo 18 do Código Penal Brasileiro: “[...] culposo quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia.”
Nesta esteira,
Para Mirabete (2008, v. I, p. 136), o crime culposo é “a conduta voluntária (ação ou omissão) que produz resultado antijurídico não querido, mas previsível, e excepcionalmente previsto, que poderia, com a devida atenção, ser evitado.”.
Portanto, verifica-se que nos crimes culposos, em regra, a finalidade do agente é voltada à prática de um fim lícito, e por um defeito na forma como se obtém essa finalidade, seja de maneira negligente, imprudente ou imperita, subsiste a quebra de um dever objetivo de cuidado que, consequentemente, acarreta lesão a um bem juridicamente tutelado, ou seja, “na conduta culposa, os meios escolhidos e empregados pelo agente para atingir a finalidade lícita é que foram inadequados ou mal utilizados.” (GRECO, 2008, v. I, p. 98).
Isto posto, para fins didáticos, conceitua-se, no presente estudo, crime culposo como a conduta humana voluntária produtora de um resultado lesivo não querido, mas previsível, que poderia ter sido evitado com a atenção necessária.
2.2 ELEMENTOS DO TIPO INJUSTO CULPOSO
Segundo os ensinamentos de Rogério Greco (2008, p. 183/184), constituem elementos do tipo injusto culposo: 1 Conduta humana voluntária; 2 Inobservância de um dever objetivo de cuidado; 3 Resultado lesivo não querido; 4 Nexo de causalidade; 5 Previsibilidade; 6 Tipicidade.
Apesar de alguns doutrinadores classificarem os elementos do tipo injusto culposo de forma diversa da utilizada no presente trabalho, o produto da soma de todos os elementos trazidos pelas doutrinas, em regra, é o mesmo.
Almejando fins didáticos e por entendermos a forte ligação entre os elementos “resultado lesivo não querido” e “nexo de causalidade”, tratá-los-emos como se fossem um só: “Resultado Naturalístico e Nexo Causal”.
2.2.1 Conduta humana voluntária
Para que se entenda a denominada “conduta humana voluntária” nos crimes culposos, faz-se necessário assimilar, por primeiro, que esta não é concebida sem vontade e não existe vontade sem finalidade.
Assim, chega-se a conclusão de que toda conduta tem uma finalidade, seja ela lícita ou não. Nos crimes dolosos, como já visto, a conduta do agente é direcionada à prática de um fim ilícito. De outro giro, no crime culposo, em regra, a conduta do agente é direcionada à prática de um fim lícito.
Elucidando o assunto em comento, Zaffaroni (2011, v. I, p. 441) preleciona:
Desta feita, nos crimes culposos, o agente direciona sua conduta à prática de um fim lícito que, por um defeito na execução de tal conduta, dá causa a um resultado lesivo não querido, mas previsível.
Portando, a conduta humana voluntária do tipo penal culposo atinge seu ápice quando a busca da finalidade do agente é distorcida pela inobservância de um dever objetivo de cuidado, conforme demonstra o seguinte exemplo trazido por Rogério Greco (2008, v. I, p. 198):
Analisando friamente o conceito trazido acima e considerando que o agente, em momento algum, aceitou o resultado, extrai-se que a finalidade deste era lícita (chegar mais cedo em sua residência para assistir a um jogo de futebol), todavia, o meio pelo qual buscou alcançar tal finalidade demonstrou-se inadequado, posto a inobservância do dever objetivo de cuidado que lhe era imposto (trafegar em via pública em alta velocidade), restando configurado, em tese, o crime de homicídio culposo.
2.2.2 Inobservância de um dever objetivo de cuidado
Para a maioria dos autores, o elemento consistente na “inobservância de um dever objetivo de cuidado” constitui a essência dos delitos culposos, sob pena de atipicidade de qualquer conduta. “É a inobservância do cuidado objetivo exigível do agente que torna a conduta antijurídica.” (MIRABETE, 2008, v. I, p. 137).
Como já visto, toda conduta humana possui uma finalidade, sendo que o divisor de águas entre as condutas culposas e dolosas reside no fim almejado pela prática da conduta. Quando a finalidade do agente dirige-se a um fim ilícito, em regra, fala-se em crime doloso. Quando a finalidade do agente dirige-se a um fim lícito que, pela quebra de um dever objetivo de cuidado, da causa a um resultado lesivo não querido, tampouco assumido, fala-se em crime culposo.
Na sociedade, todos os indivíduos partem da premissa do respeito recíproco às regras de comportamento que lhes são impostas. Tal premissa tem sua origem assentada no “princípio da confiança”, que impõe que todos os membros da sociedade, na direção de suas condutas, atendam às regras de cuidado específicas a cada caso, supondo que tal atenção será sempre observada por seus semelhantes, pois “quem vive em sociedade não deve, com uma ação irrefletida, causar dano a terceiro, sendo-lhe exigido o dever de cuidado indispensável a evitar tais lesões.” (MIRABETE, 2008, v. I, p. 137).
Assim, dever objetivo de cuidado são as regras de comportamento, escritas ou não, impostas a todos os membros da sociedade que, com fundamento no princípio da confiança recíproca, devem ser atendidas, como bem explica Bitencourt (2004, p. 274):
Na lição de Zaffaroni (2011, v. I, p. 443), “a cada conduta corresponde um dever de cuidado”, ou seja, um é o dever de cuidado do condutor de veículos, outro é o dever de cuidado do médico cirurgião, bem como outro é o dever de cuidado da dona de casa que coloca um pesado vaso no parapeito de seu apartamento situado no quarto andar de um edifício.
Complementando tal entendimento, Greco (2008, v. I, p. 199) pondera:
Em muitos casos, os deveres de cuidado objetivo encontram guarida na legislação, como, por exemplo, no Código de Trânsito, que impõe regras regulamentando o tráfego de veículo, facilitando a verificação da norma violada quando da prática de determinada conduta lesiva.
Todavia, diante da impossibilidade de regulamentação de todos os possíveis “deveres de cuidado”, inúmeras condutas são idôneas a romper o cuidado objetivo.
Nestes casos, devemos nos socorrer às normas sociais, que são as práticas exigíveis ao chamado “homem médio”, como bem ensina Mirabete (2008, v. I, p.137):
Deve-se confrontar a conduta do agente que causou o resultado lesivo com aquela que teria um homem razoável e prudente em lugar do autor. Se o agente não cumpriu com o dever de diligência que aquele teria observado, a conduta é típica, e o causador do resultado terá atuado com imprudência, negligência ou imperícia
2.2.3 Resultado naturalístico e nexo causal
Inobstante a presença dos elementos “conduta humana voluntária” e “violação de um dever objetivo de cuidado”, não há de se falar em crime culposo quando da violação de tais elementos inexistir a causação de um resultado naturalístico.
De igual forma, mesmo que sobrevenha qualquer resultado naturalístico, não existirá crime culposo se faltar nexo causal entre a conduta do agente e a causação do resultado, ou seja, “deve haver uma relação de determinação entre a violação do dever de cuidado e a causação do resultado, isto é, que a violação do dever de cuidado deve ser determinante do resultado.” (ZAFFARONI, 2011, v.I, p. 447).
Nessa esteira, o agente que, praticando uma conduta totalmente imprudente, negligente ou imperita (inobservância do cuidado objetivo), não dá causa a qualquer resultado naturalístico (aquele capaz de modificar o mundo exterior), não incide, em regra, em qualquer delito culposo.
Tomemos como exemplo o seguinte caso: Tício, conduzindo um veículo automotor em velocidade compatível com determinação legal, ultrapassa um sinal vermelho na avenida principal da cidade onde morava, todavia, nada ocorre.
O exemplo acima ilustrado demonstra didaticamente que, apesar de Tício ter incidido em infração administrativa (ultrapassar sinal vermelho), não houve a produção de qualquer resultado naturalístico relevante ao direito penal, mesmo tendo o agente praticado sua conduta com total inobservância ao cuidado objetivo.
Todavia, existem casos em que as condutas praticadas pelo agente, mesmo que careçam de resultado naturalístico e nexo causal, por si só, constituem crime, porém, não poderá se falar em culpa, como no caso do condutor de veículo que dirige embriagado: mesmo que da conduta deste motorista não sobrevenha nenhuma resultado naturalístico, conduzir veículo automotor com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer substância análoga, pois, constitui o crime tipificado no artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro.
De outro giro, a produção de um resultado naturalístico, por si só, não é o bastante na configuração do crime culposo. Necessário se faz que o resultado produzido nutra pleno nexo causal com a conduta do agente. Em outras palavras, “é indispensável que o resultado seja conseqüência da inobservância do cuidado devido, ou, em outros termos, que este seja a causa daquele.” (BITENCOURT, 2004, p. 276).
Para detectar a existência do nexo causal entre a violação do cuidado objetivo e o resultado produzido, Zaffaroni (2011, v. I, p.447) ensina que:
Corroborando, no mesmo sentido, ensina e ilustra Mirabete (2008, v. I, p. 138):
2.2.4 Previsibilidade
Um dos principais elementos caracterizadores do tipo penal culposo, como já visto, é a inobservância de um dever objetivo de cuidado. Todavia, para que tal dever seja realmente observado pelo agente quando da prática de uma determinada conduta, é imprescindível que exista certa previsibilidade de que um resultado gravoso possa ocorrer caso tal dever não seja observado, pois a previsibilidade é “a possibilidade de prever o resultado conforme o conhecimento do agente.” (MIRABETE, 2006, v. I, p. 138).
Assim, quando da prática de determinada conduta exige-se que o agente, tomando como norte, em regra, a percepção do chamado homo medius, pudesse prever as consequências de seus atos, adotando, desta feita, o dever de cuidado cabível.
Cabe ressaltar que previsibilidade não é sinônimo de previsão. Nesta o agente realmente visualiza a possibilidade de um resultado, enquanto naquela o agente deveria prever, mas não previu.
Tal percepção se faz pertinente na distinção entre duas modalidades de culpa, quais sejam: culpa inconsciente – na qual o resultado era previsível, mas não foi previsto, ou seja, “o agente não prevê aquilo que lhe era previsível” (GRECO, 2008, v. I, p. 201) - e culpa consciente – na qual o resultado foi previsto, mas o agente, contando com sua habilidade, acreditou, sinceramente, que este não aconteceria.
Para Zaffaroni (2011, v. I, p. 449),
Nesta esteira, conclui-se que a previsibilidade é um elemento objetivo, que deve ser levado a cabo por meio da substituição do agente por um homem médio no caso concreto. Se, ainda assim, persistir o resultado, não há de se falar em culpa, ou seja, “a previsibilidade é um dado objetivo; por isso, o fato de o agente não prever o dano ou perigo de sua ação (ausência de previsibilidade subjetiva), quando este é objetivamente previsível, não afasta a culpabilidade do agente [...].” (BITENCOURT, 2004, p. 227).
Porém, parte da doutrina classifica a previsibilidade em dois tipos: a objetiva e a subjetiva. Aquela, já mencionada nos parágrafos acima, dispõe sobre a percepção do homem médio, substituindo-o sempre ao caso concreto. Já na previsibilidade subjetiva, não se deve considerar a percepção do homem médio, mas sim a percepção exclusiva do agente que, por causas particulares e especiais, possui limitações ou experiências além da média. “Um técnico em eletricidade pode prever, com maior precisão do que um leigo, o risco que acarreta um fio solto.” (PIERANGELI, 2011, v. I, p. 449).
2.2.5 Tipicidade
O Código Penal Brasileiro, adotando o princípio da intervenção mínima, dispôs que a regra nos ilícitos penais é o dolo, sendo a culpa a exceção. Desta feita, só há de se falar em crime culposo quando este for expressamente previsto no tipo.
No crime de homicídio, por exemplo, a letra do tipo traz expressamente a possibilidade de existência de tal crime na modalidade culposa. De outro ângulo, no crime de dano não existe qualquer previsão de incidência da modalidade culposa, posto a omissão do tipo, fato este que acarreta a atipicidade da conduta do agente que provoca dano a outrem agindo “culposamente”.
Neste sentido, para que exista tipicidade nos crimes culposos se faz necessário, além da conjugação de todos os elementos acima estudados, que o suposto crime seja legalmente previsto na modalidade culposa.
Vale destacar, de igual forma, a possibilidade de incidência do princípio da insignificância nos crimes culposos, como bem exemplifica Rogério Greco (2008, v. I, p. 205):
2.3 MODALIDADES DE CULPA
Também chamadas de formas de manifestação da falta do cuidado objetivo, as modalidades de culpa estão literalmente elencadas no inciso II, do artigo 18, do Código Penal Brasileiro, que dispõe, in verbis: “[...] culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência e imperícia [...].”.
2.3.1 Imprudência
É a conduta arriscada, perigosa, e desacautelada, praticada comissivamente. Para Bitencourt (2004, p. 279), “é a imprevisão ativa (culpa in faciendo ou in committendo) [...] é aquela que se caracteriza pela intempestividade, precipitação, insensatez ou imoderação.”.
Nos dizeres de Luiz Regis Prado (2007, p. 378), imprudência “vem a ser uma atitude positiva, um agir sem a cautela, a atenção necessária, com precipitação, afoitamento ou inconsideração. É a conduta arriscada, perigosa, impulsiva.”.
A doutrina oferece diversos exemplos de condutas imprudentes, quais sejam: “manejar ou limpar arma carregada próximo a outras pessoas; caçar em local de excursões; dirigir sem óculos quando há defeito na visão, fatigado, com sono [...].” (MIRABETE, 2008, v. I, p.140).
2.3.2 Negligência
Enquanto a imprudência decorre de conduta comissiva, a negligência é a inércia psíquica, a omissão, a indiferença, é o deixar de fazer aquilo que deveria ser feito.
Luiz Regis Prado (2007, p.379) conceitua negligência como “a inatividade (forma omissiva), a inércia do agente que, podendo agir para não causar ou evitar o resultado lesivo, não o faz por preguiça, desleixo, desatenção ou displicência.”.
Tomemos os seguintes exemplos fornecidos por Mirabete (2008, v. I, p. 140) para ilustrar condutas negligentes: “Não colocar avisos junto às valetas abertas para um reparo na via pública; não deixar freado automóvel quando estacionado; deixar substância tóxica ao alcance de crianças, etc.”.
Dos exemplos fornecidos acima, verifica-se que sempre existe uma ação negativa, um abster-se daquilo que a diligência normal impunha a todos os membros da sociedade.
Não obstante a patente diferença existente entre imprudência e negligência, essas duas modalidades de culpa, muitas vezes, coexistem, interligando-se no caso concreto.
Neste sentido, imaginemos a seguinte situação:
No caso acima, verifica-se que o agente agiu, ao mesmo tempo, de forma negligente e imperita: negligente quando deixou de efetuar os reparos necessários à manutenção dos freios (conduta omissiva); imprudente quando, mesmo sabendo da deficiência de seu automóvel, colou-o em movimento (conduta comissiva), dando causa à morte de um transeunte.
2.3.3 Imperícia
Perícia, derivada do latim peritia, consiste na destreza, habilidade, maestria de outrem que, executando determinada conduta, dá causa a um resultado.
Desta forma, subtende-se que imperícia é a falta de destreza, habilidade, maestria ou conhecimento para o exercício de arte, profissão ou ofício.
A doutrina entende que a imperícia sempre está ligada ao desempenho de determinada atividade profissional, ou seja, somente pode-se exigir perícia daquele que esteja habilitado para determinada prática.
Assim, Greco (2008, v. I, p. 205) dispõe que “fala-se em imperícia quando ocorre uma inaptidão, momentânea ou não, do agente para o exercício de arte, profissão ou ofício.”.
São exemplos de imperícia: “a falta de habilidade no conduzir veículo (motorista profissional); não saber praticar uma intervenção cirúrgica ou prescrever um medicamento (para o médico).” (PRADO, 2007, p. 379).
2.4 ESPÉCIES DE CULPA
Tal como nos crimes dolosos, a doutrina penal delimita, didaticamente, duas espécies de culpa, a saber: culpa consciente e culpa inconsciente. Alguns doutrinadores entendem por uma terceira espécie de culpa, qual seja a culpa imprópria, que entendemos ser desnecessária para o fim almejado no presente estudo.
Neste momento, os laços que, geralmente, mantém significativa distância entre o dolo e a culpa se estreitam sobremaneira, principalmente quando se põe paralelos o dolo eventual e a culpa consciente.
O epigrafado item visa apenas conceituar as espécies de culpa trazidas pela doutrina, reservando o debate entre o dolo eventual e culpa consciente nos crimes de trânsito para momento posterior.
2.4.1 Culpa inconsciente
Apesar de a doutrina tradicional tratar por primeiro a espécie culposa “culpa consciente”, entendemos, data vênia, por melhor explanar inicialmente a respeito da “culpa inconsciente”.
Também chamada de culpa sem representação, a culpa inconsciente é a culpa comum, aquela que decorre da conduta praticada sem a previsão do resultado que deveria ser objetivamente previsto.
Para Hungria, apud Bitencourt (2004, p. 281), “previsível é o fato cuja possível superveniência não escapa à perspicácia comum”, portanto denota-se que a grande diferença entre as espécies de culpa encontra-se albergada na “previsibilidade”.
Nesta esteira, nos casos imprevisíveis, não há de se falar em culpa, muito menos em dolo. Nos casos previsíveis, mas não previstos, fala-se em culpa inconsciente. E nos casos previstos, em regra, fala-se em culpa consciente.
Em suma, Mirabete (2008, v. I, p. 141) discorre objetivamente que “a culpa inconsciente existe quando o agente não prevê o resultado que é previsível. Não há no agente o conhecimento efetivo do perigo que sua conduta provoca para o bem jurídico alheio.”.
2.4.2 Culpa consciente
A contrário sensu, a culpa consciente ocorre quando o agente, diante da situação in concreto, prevê o resultado, mas, mesmo assim, acredita, sinceramente, que este não vá ocorrer. É a chamada culpa com previsão.
Enquanto a conduta que desrespeita um dever de cuidado dando causa a um resultado naturalístico previsível se encaixa na culpa inconsciente, a conduta que desrespeita tal cuidado dando causa à um resultado lesivo previsto, mas com resultado não “assumido”, enquadra-se, em tese, na culpa consciente.
Em poucas linhas, Zaffaroni (2011, v. I, p. 450) conceitua culpa consciente da seguinte maneira:
Chama-se culpa com representação, ou culpa consciente, aquela que o sujeito ativo representou para si a possibilidade da produção do resultado, embora a tenha rejeitado, na crença de que, chegado o momento, poderá evitá-lo ou simplesmente ele não ocorrerá.
Desta feita, como o próprio nome já diz, tal espécie culposa aperfeiçoa-se quando o agente tem consciência de que sua conduta poderá gerar um resultado lesivo, porém não assume tal, ou seja, ele prevê o resultado como possível, mas acredita, sinceramente, que suas habilidades pessoais são suficientes para evitá-lo.
3 DOLO EVENTUAL X CULPA CONSCIENTE
3.1 LIMITES FRONTEIRIÇOS
Como já visto nos capítulos anteriores, as diferenças entre dolo direto e culpa inconsciente (culpa propriamente dita) são bastante latentes e de entendimento não conturbado na doutrina e jurisprudência. Em sentido contrário, as ramificações desses elementos, mais precisamente no que se refere às espécies dolo eventual e culpa consciente, se estreitam de tal forma que a linha diferenciadora entre os dois torna-se bastante tênue e cinzenta, gerando, por conseguinte, uma turbulenta discussão jurisprudencial e doutrinária quanto à incidência do dolo eventual nos casos concretos, principalmente no tocante aos crimes contra a vida praticados à direção de veículos automotores.
Não é à toa que Bitencourt (2007, p. 288) afirma que “os limites fronteiriços entre o dolo eventual e a culpa consciente constituem um dos problemas mais tormentosos da Teoria do Delito.”. Seguindo tal entendimento, que é unanimidade na doutrina, Juarez Cirino dos Santos (2008, p. 141) corrobora que “a definição do dolo eventual e sua distinção da imprudência consciente, como conceitos simultaneamente excludentes e complementares, é uma das mais controvertidas e difíceis questões de direito penal [...].”.
Em verdade, o dolo eventual posiciona-se no extremo mais brando do dolo, enquanto a culpa consciente (ou culpa com previsão) situa-se no mais grave extremo da culpa. Esta encontra sua principal semelhança com aquele, justamente, na previsão do resultado.
A culpa consciente possui uma previsão genérica positiva colocada ao lado de uma previsão concreta negativa (Costa Jr., 2009, p.101), ou seja: existe a previsão do evento lesivo (previsão genérica positiva), todavia o agente acredita, sinceramente, que tal evento não ocorrerá ou que poderá evitá-lo (previsão concreta negativa).
Por outro lado, nos dizeres de Costa Jr. (2009, p. 101), o dolo eventual possui “uma previsão genérica positiva seguida de outra, de caráter parcialmente positivo: é possível que o evento se verifique. Inobstante tal previsão, o agente não se detém. Continua a agir, custe o que custar (coûte que coûte).”.
Para a maioria da doutrina penal, o dolo eventual deve apresentar dois componentes: a previsão do resultado e a anuência à sua ocorrência (Bitencourt, 2008, p. 288). Se o agente não prestar anuência ao resultado previsto, acreditando que o mesmo não vá ocorrer, restará, em tese, configurada hipótese de culpa consciente. De outro giro, “se o sujeito assume o risco de produzir o resultado, isto é admite e aceita o risco de produzi-lo” (DAMÁSIO, 2009, p. 286), ter-se-á, em tese, dolo eventual.
Luiz Flávio Gomes (2007, v. II, p. 379), por seu turno, acredita que o dolo eventual deve apresentar, na verdade, três componentes: o agente representa o resultado como possível (previsão do resultado), assume o risco de produzi-lo (anuência à sua ocorrência) e ainda atua com total indiferença frente ao bem jurídico. No que tange à culpa consciente, o mencionado autor afirma que esta possui dois requisitos: “o agente representa o resultado como possível, mas confia que não vai acontecer (confia em sua habilidade para evitá-lo). Não o aceita. Não atua com indiferença frente ao bem jurídico.” (GOMES, 2007, v. II, p. 379).
Nesta esteira, verifica-se que a previsão do resultado é ponto comum entre as espécies em tela, ao passo que sua diferença reside na aceitação deste resultado.
Assim, para entender tais institutos, necessário se faz compreender, por primeiro, que na culpa consciente, o agente, diante da representação de um resultado lesivo (ponto comum), acredita, sinceramente, que este não irá sobrevir (ponto diferenciador), tendo em conta seu conhecimento ou habilidade, sendo que “se estivesse convencido de que o resultado poderia ocorrer, sem dúvida, desistiria da ação.” (BITENCOURT, 2007, p. 288). Já no dolo eventual, diante da previsão do resultado lesivo (ponto comum), o agente atua com indiferença (ponto diferenciador), aceitando-o, ou seja: “se morrer morreu”, “que se dane”, “não me importo”, “aconteça o que acontecer, continuarei agindo”.
Elucidando o requisito “aceitação do resultado” mediante a assunção do risco, Luiz Regis Prado (2007, p. 381) ensina que,
Importante pontuar que não se pode confundir a previsibilidade (consciência do risco) com a aceitação do resultado. O cuidado objetivo constitui um elemento do tipo culposo e, justamente por isso, quando o resultado, embora previsto, carecer de aceitação, não há de se falar em dolo, pois, para que este se aperfeiçoe, o agente deve consentir – na modalidade indiferença/aceitação –, com o resultado.
Esclarecendo as principais diferenças entre o dolo eventual e a culpa consciente em sede doutrinária, Juarez Cirino dos Santos (2008, p. 143) explana que,
De igual forma, Cleber Masson ratifica (2010, p. 268):
Insta destacar, também, um dos pontos diferenciadores entre dolo eventual e culpa consciente mais citados pela doutrina penal, que toma forma por meio da utilização da renomada Teoria Positiva do Conhecimento, criada pelo alemão Reinhart Frank. Segundo tal teoria, para que seja verificado o dolo eventual, o agente deve dizer a si próprio “seja como for, dê no que der, em qualquer caso, não deixo de agir.” (HUNGRIA apud BITENCOURT, 2007, p. 272) e ainda “seja assim ou de outra maneira, suceda isto ou aquilo, em qualquer caso agirei.” (MASSON, 2010, p, 251).
À luz da doutrina parece-nos pacífico o conceito diferenciador de dolo eventual e culpa consciente, todavia, quando adentra-se ao campo prático, inicia-se a turbulência. É o que demonstra o seguinte exemplo trazido por Masson (2010, p. 268):
Certamente lhe é previsível que, assim agindo, pode atropelar pessoas, e, conseqüentemente, feri-las e inclusive matá-las. Mas vai em frente e acaba por colidir com uma senhora de idade, matando-a.
Do exemplo acima fornecido, pode-se chegar a duas conclusões: a) se o agente, após representar como possível o resultado “morte ou lesão de um transeunte”, acreditar, sinceramente (luxúria), que este não irá ocorrer, pois fará de tudo para evitá-lo, o caso concreto amolda-se, em tese, à figura da culpa consciente. b) todavia se o agente, após representar como possível o resultado “morte ou lesão de um transeunte”, agir com indiferença frente a possibilidade de que este sobrevenha, assumindo o risco de sua produção (se ocorrer, que se dane), estar-se-á frente a um caso de dolo eventual.
Daí demonstra-se a tênue linha que paira entre as duas espécies de dolo e culpa. Como identificá-las nos casos práticos? Como saber se o agente acreditou, sinceramente, que o resultado não sobreviria ou agiu com indiferença frente ao perigo previsto, aceitando-o? Como empregar a fórmula de Frank para confirmar se o agente, intrinsecamente, mentalizou as expressões “que se dane”, “se ocorrer, ocorreu”, “aconteça o que acontecer, continuarei”?
Justamente por isso “alguns doutrinadores criticam o dolo eventual, dizendo ser inócuo, pois sua prova residiria exclusivamente na mente do autor.” (MASSON, 2010, p. 252). Cediço é a impossibilidade de adentrar a mente do agente e arrancar-lhe pensamentos que comprovem que este mentalizou as expressões mencionadas alhures. Logo, na prática,
Portanto, para que o juiz, bem como o conselho de sentença, verifique a incidência de dolo eventual, necessário se faz que socorram-se das circunstâncias fático probatórias, ignorando a possibilidade de adentrar o consciente do agente e extrair-lhe pensamentos capazes de sanar a eterna dúvida entre o dolo eventual da culpa com previsão. Neste ponto, imperioso destacar, novamente, os chamados “indicadores objetivos” do dolo eventual, apresentados por Damásio de Jesus (2009, p. 288):
De igual forma se posiciona Cleber Masson (2010, p. 252), afirmando que,
Esta também é a atual posição dos tribunais pátrios:
E mais,
E ainda,
3.2 HOMICÍDIOS DE TRÂNSITO
No Brasil, o trânsito possui um índice assustador de mais de 40 mil mortes por ano. Tal índice poderia ser bem maior em termos informativos, todavia só integram a contagem as vítimas fatais verificadas no momento dos acidentes, ou seja, as vítimas que vêm a óbito em hospitais não entram no computo estatístico.
Em termos comparativos, as estatísticas apontam que o Brasil ainda está muito aquém do índice almejado pela Organização Mundial de Saúde. “O trânsito brasileiro mata 2,5 vezes mais que nos Estados Unidos, e 3,7 mais que na União Européia (CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS MUNICÍPIOS, 2009, p. 04).
Inobstante o endurecimento da legislação em relação às normas de trânsito, principalmente no tocante ao advento do Código Brasileiro de Trânsito - Lei 9.503/97 -, o índice de mortalidade cresceu drasticamente nos últimos anos, encontrando tímido decréscimo no ano de 2009, em função do advento da Lei 11.705/2005 – a chamada Lei Seca, e voltando a subir em 2010.
O alto índice de acidentes de trânsito com vítimas fatais se deve, principalmente, aos condutores totalmente indiferentes para com a vida humana. Dentre as principais causas desses acidentes pode-se citar: embriaguez ao volante e excesso de velocidade.
Diante de tal cenário, que há muito fora considerado uma questão de saúde pública pela Organização Mundial de Saúde, surgem inúmeras discussões, dentre as quais destacamos o tema do presente estudo: a aplicação do dolo eventual nos homicídios de trânsito.
Decerto que o clamor social muito influencia e pressiona o Judiciário na tentativa de buscar soluções à altura para os casos concretos. Porém, é válido anotar que a visão dos leigos, na grande maioria das vezes, é atécnica. Daí a necessidade de sedimentar um entendimento justo e equitativo para definir os casos de dolo eventual e culpa consciente.
Apesar de serem separados por uma tênue linha no campo teórico, o dolo eventual e a culpa consciente possuem um enorme abismo em relação às penas que lhes são abstratamente cominadas.
Enquanto a reprimenda penal de um homicídio doloso praticado na direção de veículo automotor varia de 6 (seis) a 20 (vinte) anos em sua forma simples e de 12 a 30 anos em sua forma qualificada, a pena dos homicídios culposos praticados no trânsito varia de 2 (dois) a 4 (quatro anos), podendo ser aumentada pela metade nos casos previstos em Lei.
O artigo 302 do Código Brasileiro de Trânsito, chamado por muitos autores de homicídio culposo qualificado, estipula uma pena mais severa em relação aos homicídios culposos abarcados pelo Código Penal, gerando por parte da doutrina uma crítica “sobre a questão da proporcionalidade: qual a justificativa para que a morte derivada de culpa seja maior quando o instrumento é um veículo automotor do que quando se utiliza, por exemplo, uma arma de fogo?” (JUNQUEIRA, 2008, p. 371).
Inobstante a real desproporcionalidade entre as penas cominadas aos dois tipos de homicídios culposos, visível é a preocupação do legislador com o crescente índice de morte nas vias brasileiras, principalmente pelo fato de os condutores esquecerem que seus veículos são somente veículos, e não armas.
Para que se entenda os possíveis casos de dolo eventual e culpa consciente praticados na direção de veículos automotores, primeiramente se faz necessário conceituar veículo automotor, que para o Código de Trânsito Brasileiro (BRASIL, Lei 9.503/97, anexo I) é
Todo veículo a motor de propulsão que circule por seus próprios meios e que serve normalmente para o transporte viário de pessoas ou coisas, ou para tração viária de veículos utilizados para o transporte de pessoas e coisas. O termo compreende os veículos conectados a uma linha elétrica que não circulam sobre trilhos.
Por sua vez, “estar na direção significa conduzir o veículo de maneira normal, ou seja, não está na direção de veículo automotor aquele que empurra seu carro.” (JUNQUEIRA, 2008, p. 372). Assim, quem estaciona seu carro em uma descida sem acionar o feio de mão e, por tal motivo, possibilita que o carro desça de forma desgovernada até atingir e ceifar a vida de outrem, responderá por homicídio culposo aos moldes do Código Penal.
Quanto ao conceito de trânsito, o Código de Trânsito também é preciso em seu artigo 1º: “Considera-se trânsito a utilização de vias por pessoas, veículos e animais, isolados ou em grupos, conduzidos ou não, para fins de circulação, parada, estacionamento e operação de carga ou descarga.”.
Desta feita, superado os breves conceitos de veículo automotor e trânsito, cabe-nos comentar os principais casos de homicídios praticados no trânsito que geram discussão a respeito da incidência do dolo eventual e culpa consciente.
3.3 PRINCIPAIS CASOS DE HOMICÍDIOS DE TRÂNSITO E SUAS INTERPRETAÇÕES DOUTRINÁRIAS E JURISPRUDENCIAIS.
Como mencionado alhures, os tribunais brasileiros, tal como a doutrina, firmaram entendimento no sentido de que o dolo eventual não é extraído da mente do agente, mas sim das circunstâncias fáticas do crime. Assim sendo, necessário se faz analisar quais as circunstâncias fáticas idôneas à reconhecer o dolo eventual ou culpa consciente adotadas pela jurisprudência.
Almejando aproximar ao máximo o tema do presente estudo à realidade brasileira, discorremos abaixo sobre os principais casos de delitos de trânsito e suas interpretações doutrinárias e, principalmente, jurisprudenciais.
3.3.1 Embriaguez ao volante
Uma das principais causas de acidentes de trânsito no Brasil, a embriaguez ao volante é, talvez, o ponto de maior discussão doutrinária, jurisprudencial e social na atualidade.
Todavia, tal conduta, por si só, não tem o condão de transformar o crime de homicídio culposo em homicídio doloso. Resta sedimentado na doutrina e jurisprudência dos tribunais superiores que aquele que dirige alcoolizado, dando causa ao resultado morte, não incide, via de regra, no crime de homicídio doloso.
Diante da constante pressão social, foi criada uma perigosa fórmula matemática: “embriaguez + velocidade excessiva + direção de veiculo automotor + morte = dolo eventual”, que apesar de adotada por muitos tribunais Brasil afora, sofre grande crítica por parte da doutrina, como bem sustenta Rogério Greco (2008, p. 208): “Não se pode partir do princípio de que todos aqueles que dirigem embriagados e com velocidade excessiva não se importam em causar a morte de outras pessoas.”.
O mencionado autor justifica seu entendimento citando o seguinte exemplo:
Greco defende que o agente, no exemplo acima, jamais consentiu com tal resultado, visto que se assim o fizesse, aceitaria sua própria morte e a dos demais membros de sua família.
Inobstante o posicionamento do ilustre doutrinador, pergunta-se: Se a jurisprudência brasileira, como já demonstrado nos itens anteriores, firmou entendimento que o dolo não é extraído da mente do agente e, muito menos, necessita de disposição expressa do mesmo no sentido de ter assumido o risco, sendo consubstanciado, em verdade, nas circunstâncias fáticas do evento, como se pode afirmar que o agente que conduz seu veículo em estado de embriaguez, imprimindo-lhe velocidade excessiva, não assente com a morte de outrem?
Diante de tal indagação, verifica-se o tamanho da dificuldade enfrentada quando da delimitação do dolo eventual e da culpa consciente nos crimes de trânsito.
Em um dos julgados mais recentes da história do Brasil a respeito de embriaguez ao volante, o Supremo Tribunal Federal (STF) manifestou-se de forma favorável à culpa consciente do acusado L.M.A, motorista que, ao dirigir em estado de embriaguez, envolveu-se em um acidente de trânsito, causando a morte de uma pessoa. De acordo com a maioria dos ministros, a embriaguez, por si só, não tem o condão de transformar a culpa consciente em dolo eventual. Vejamos:
Neste mesmo sentido, sustentando que a embriaguez não autoriza a presunção automática de dolo eventual, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) vem decidindo:
Também é o entendimento coadunado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Pará (TJPA):
De forma contrária, os demais Tribunais Estaduais de Justiça tem decidido, constantemente, pró-dolo eventual quando a embriaguez é somada ao excesso de velocidade. Citam-se os seguintes julgados:
e mais,
e mais,
e ainda,
3.3.2 “Racha”
Sinônimo de corrida, disputa ou competição automobilística não autorizada em via pública, o “racha” também é objeto de grande discussão quando o assunto em tela é dolo eventual.
Todavia, a prática de tal conduta, que é altamente reprovada pela sociedade, não encontra muitos percalços na jurisprudência, que vem entendendo, com enorme freqüência, que os homicídios causados por “rachas” em vias públicas de grande fluxo, constituem, quase pacificamente, crimes dolosos (dolo eventual).
Cleber Masson (2010, p. 251) justifica o endurecimento jurisprudencial da seguinte forma:
Tais advertências são suficientes para esclarecer os motoristas da vedação legal de tais condutas, e, mais, dos resultados danosos que em razão delas são rotineiramente produzidos. E, se mesmo assim continua o condutor de veículo automotor a agir de forma imprudente, revela inequivocamente sua indiferença com a vida e a integridade corporal alheia, devendo responder pelo crime doloso a que der causa.
Adotando a mesma linha de pensamento, a doutrina esmagadora, ao abordar o tema “dolo eventual x culpa consciente”, cita constantes exemplos de homicídios provocados por “rachas” para ilustrar o dolo eventual, como bem demonstram Fernando Capez (2006, p. 203) e Eugênio Zaffaroni (2011, p. 435), respectivamente: “São também casos de dolo eventual: [...] participar de inaceitável disputa automobilística realizada em via pública (‘racha’), ocasionando morte”; “Quem se lança numa competição automobilística de velocidade, numa cidade populosa, à custa da possibilidade de produção de um resultado lesivo, age igualmente com dolo eventual de homicídio, lesões e danos”.
Segundo o site do Superior Tribunal de Justiça, um dos primeiros casos em que essa egrégia corte se manifestou de forma favorável à aplicação do dolo eventual, foi no episódio acontecido no dia 05 de abril de 1996, na estrada que liga a cidade mineira de Mar de Espanha a Bicas, episódio este que ficou conhecido como “A tragédia de Mar de Espanha” (STJ: HC 71331/MG, Rel. Min. Felix Fischer).
Relatava a denúncia que, no supracitado dia, o industrial Ismael Keller Loth participava de um “racha”, a 140 km/h, com o médico Ademar Pessoa Cardoso, instante em que a Blazer conduzida pelo industrial atingiu um fusca com cinco pessoas (um condutor e quatro passageiros) da mesma família, que morreram na hora.
Apesar de o Tribunal de Justiça de Minas Gerais ter entendido que o caso acima configurava culpa consciente, o STJ decidiu que o dolo eventual restara demonstrado, submetendo, desta feita, os criminosos à julgamento perante o Tribunal do Júri, que condenou um a 12 anos e nove meses de reclusão e outro a doze anos.
Importante destacar, ainda, a possibilidade da incidência de qualificadores em crimes revestidos de dolo eventual, como demonstra o seguinte julgado do STJ, em mais um caso de “racha” nas vias brasileiras:
Ademais, destaca-se também o brilhante entendimento do STJ dispondo que o tráfego é atividade própria de risco permitido, todavia o racha é uma anomalia. Vejamos:
Por fim, o STF não entende de forma diversa:
3.3.3 Velocidade Excessiva
Dos exemplos acima mencionados verifica-se que a grande maioria da jurisprudência vem reconhecendo o dolo eventual nos casos em que o excesso de velocidade soma-se a outros fatores, como nos casos de corridas automobilísticas (que naturalmente ocorrem em excesso de velocidade) e embriaguez ao volante.
O mesmo ocorre nos casos em que o excesso de velocidade é somado à realização de manobras perigosas e arriscadas. Capez (2006, p. 202) cita os seguintes exemplos:
É o caso do motorista que se conduz em velocidade incompatível com o local e realizando manobras arriscadas. Mesmo prevendo que pode perder o controle do veículo, atropelar e matar alguém, não se importa, pois é melhor correr este risco, do que interromper o prazer de dirigir (não quero, mas se acontecer, tanto faz). É também o caso do chofer que em desabalada corrida, para chegar a determinado ponto, aceita, de antemão o resultado de atropelar uma pessoa.
Da mesma forma manifesta-se a jurisprudência dos Tribunais de Justiça do país:
e mais,
e mais,
e ainda,
Importante destacar também, que na sentença de pronúncia, o juiz não deve imiscuir-se profundamente no mérito da causa, pois a análise do dolo eventual é de competência do Tribunal do Júri. Desta feita, na dúvida, decidi-se em favor da sociedade. Assinala-se as seguintes decisões do Superior Tribunal de Justiça:
e ainda,
3.3.4 Outros Casos
Superados os pontos mais polêmicos do tema, juntamos neste subitem demais casos de homicídios praticados no trânsito e seus respectivos entendimentos jurisprudenciais.
Contramão da direção:
Trafegar pelo acostamento:
Conversão à esquerda:
CRUZAMENTO NÃO SINALIZADO E AVANÇO DE PREFERENCIAL:
CONCLUSÃO
Diferenciar o dolo eventual da culpa consciente não é das tarefas mais fáceis do direito penal. Apesar de existir um conceito teórico sedimentado doutrinariamente, quando se parte para o campo prático nota-se a extrema dificuldade de distinguir quando o agente assumiu ou não o risco de produzir determinado resultado lesivo.
Tanto é verdade que a jurisprudência atual não mantém entendimentos totalmente uniformes em relação as questões mais polêmicas de dolo eventual e culpa consciente, principalmente no tocante aos crimes de homicídio praticados na direção de veículos automotores.
Na grande maioria das decisões, os Tribunais pátrios tem se posicionado de forma favorável ao dolo eventual quando se trata de homicídios praticados em situações de “racha”. De outro lado, o mesmo não se verifica quando o homicídio de trânsito é ocasionado tão somente por embriaguez ao volante ou excesso de velocidade. Nestes casos a jurisprudência entende que tais condutas, por si só, não ensejam o dolo eventual, posto que para que este se configure necessário se faz que as circunstâncias fáticas demonstrem o assentimento do agente quanto ao resultado lesivo previsto.
Assim, ponto crucial na distinção de tais institutos reside na assunção do risco por parte do agente. Se este assumiu o risco do resultado lesivo previsto, ter-se-á dolo eventual. Se diante da previsão, acreditou, sinceramente, que o resultado não se verificaria, ter-se-á culpa consciente.
Daí surge o principal problema: como saber se o agente assumiu ou não o resultado lesivo previsto?
Diante da intensa pesquisa doutrinária e jurisprudencial realizada no presente estudo, concluiu-se que a verificação da vontade do agente jamais poderá limitar-se ao seu subjetivismo, eis que seria impossível adentrar-lhe a mente e confirmar se este assentiu ou não com o resultado.
Para tanto é indispensável analisar os elementos externos do fato criminoso, ou seja, as circunstâncias fáticas e indícios materiais capazes de apontar o dolo eventual ou a culpa consciente em cada caso concreto.
Certo é que tais institutos devem ser manejados com extremo cuidado. Não se pode banalizar o dolo eventual, sob pena do descrédito das decisões judiciais, pois o clamor social, por si só, não é idôneo a transformar condutas patentemente culposas, em dolosas.
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