GOVERNO ELETRÔNICO: uma introdução
Aires J Rover
RESUMO
A sociedade e o Estado passam hoje por novas perspectivas. É possível construir a idéia de um cidadão mais presente através do chamado governo eletrônico. A construção do governo eletrônico envolve razões dos mais diversos tipos tais como de cunho econômico, político e cultural. Características importantes desse processo de construção são o gerenciamento eficiente dos trabalhos, a infra-estrutura tecnológica, os conteúdos disponíveis, a capacitação e participação das pessoas envolvidas. Existem fragilidades, riscos e inseguranças, mas os benefícios são imensos. Existem algumas formas de governo, porém o governo eletrônico no poder executivo é hoje mais visível com seus serviços. Outro tão importante é o governo eletrônico nos tribunais. Finalmente, terminamos a discussão fazendo um paralelo com o comércio eletrônico e a necessidade de defesa da privacidade dos cidadãos.
PROLEGÔMENOS
Vive-se atualmente um progresso contínuo e cumulativo na utilização das novas tecnologias de informação. Estas podem ser compreendidas como tecnologias de comunicação e de conhecimento. As primeiras referem-se aos mecanismos e programas que facilitam o acesso a dados de maneira universal, ou seja, sem impor nenhum tipo de barreira, a não ser aquelas que se referem à segurança e integridade dos sistemas. Exemplo disto são as tecnologias de redes de computadores. As tecnologias relativas ao conhecimento dizem respeito basicamente ao desenvolvimento de programas (software) que organizem, armazenem e manipulem os dados de tal forma que facilite a compreensão destes por um universo infinito de interessados (ROVER, 1997). Por outro lado, a transição acelerada para o modelo digital tem permitido uma verdadeira revolução em todas as áreas que envolvem estas duas vertentes tecnológicas.
Hoje em dia há um debate muito importante sobre os aspectos jurídicos do chamado governo eletrônico. Isto é o sinal da necessidade de respostas a desafios que a nova sociedade se coloca com a revolução da informática. Isto porque o desenvolvimento das tecnologias de informação nas últimas décadas tem dado à sociedade poder de ação antes jamais pensado e geralmente depositado em monopólios, em sua grande maioria estatais (ROVER, 2001, p. 247).
O velho paradigma, baseado não em bits, mas em átomos ou em coisas corpóreas (NEGROPONTE, 2001) vem dando a vez para a sociedade do conhecimento estruturada numa arquitetura em rede.
A relevância da Internet, do jeito que é hoje, é patente na medida em que as pessoas a usam como um lugar para se comunicar, fazer negócios e compartilhar idéias, e não como uma entidade mística em si mesma. Ela é uma poderosa ferramenta para integrar economias locais na economia global e estabelecer sua presença no mundo (CORRÊA, 1998). É neste caminho que seguem as práticas governamentais que vem passando por fantásticas transformações, decorrentes da redução das distâncias físicas e do desaparecimento das fronteiras territoriais.
Contudo, é de se verificar que este momento é de transição, uma verdadeira transição paradigmática, durante o qual haverá uma grande coincidência (embora nunca completa) entre os problemas que podem ser resolvidos pelo antigo paradigma e os que podem ser resolvidos pelo novo (KUHN, 1989). Note-se que esta transição ocorre tanto nas constantes mudanças e evoluções dos modelos tecnológicos como no mundo do direito e da governança.
Neste contexto, o governo eletrônico passa a ser um momento especial na evolução do estado e da sociedade. Ele representa para a chamada revolução da informação um avanço inesperado e a razão disso é a relativização do tempo e do espaço. A atuação hoje é global e mesmo que o governo atue num espaço local ou tópico necessita ter um padrão global de administração (OLIVO, 2000).
A interação entre as novas tecnologias, a sociedade e o Poder Público emoldura um momento único do qual emergem, simultaneamente, desafios enormes e vantagens sociais incríveis. Neste contexto, o aparecimento do Governo Eletrônico é uma decorrência das velhas e novas demandas da sociedade.
Administração Pública sempre foi vista como ineficiente e um espaço de privilégios para alguns. Em termos de gerência significa dizer que está repleta de procedimentos arcaicos e formalistas, sem qualquer vinculação com a racionalização e necessária segurança dos serviços prestados.
Essa situação dantesca está por mudar com a implantação paulatina do chamado governo eletrônico. Naturalmente, esta modernização dos poderes do Estado abrange questões complexas, tanto de instrumentalização tecnológica, capacitação dos seus agentes, bem como a mudança de cultura da sociedade como um todo.
Discutir sobre as potencialidades e os limites das tecnologias de informação na radicalização da democracia, com o avanço do chamado governo eletrônico, é o problema aqui proposto.
SOCIEDADE E ESTADO: NOVAS PERSPECTIVAS
A teoria política a muito decifrou os limites do Estado moderno, caracterizado que é por um governo dos técnicos, pelo crescimento aparato burocrático, hierarquizado, e pelo baixo rendimento do sistema democrático apontando para uma crescente ingovernabilidade. Tais fatores impediriam a participação dos indivíduos na tomada de decisões, seja pela dificuldade de acesso às informações, bem como pela dificuldade de compreensão de tais informações. Estes fatos demonstram o processo de contínuo aumento da complexidade do Estado. Isto também é demonstrado pelo aumento quantitativo dos órgãos tradicionais do Estado, bem como de outros institutos autônomos; como as empresas estatais, como também o aumento e diversificação das suas funções (GARCÍA-PELAYO, 1996).
Por outro lado a sociedade também está mais complexa, ao ponto de ser denominada sociedade da informação ou do conhecimento. A informação passa a ser o motor das transformações e o insumo mais importante nos sistemas modernos de produção. O uso intensivo da tecnologia da informação em forma digital tem proporcionado a superação das estruturas administrativas hierarquizadas e verticalizadas em direção a relações de poder horizontalizadas. Eis a sociedade em rede.
Esta complexidade, porém, vai além das relações de poder, atingindo a própria cultura, constituindo o fenômeno da cibercultura, que em essência se representa na democratização do acesso a bens culturais e informações diversas, na construção de uma inteligência coletiva (LÉVY, 1999). Porém, não obstante o enorme incremento na utilização da tecnologia da informação e suas conseqüências na sociedade, tudo não passa de uma possibilidade na democratização das relações entre o Estado e os cidadãos.
Se por um lado parece fácil concluir pela democratização dessas relações, por outro não é possível deixar de verificar a dificuldade em eliminar o poder invisível (BOBBIO, 1992) que gira em todo da atuação do Estado, através da ação de grupos organizados que fazem valer seus interesses particulares. É evidente que a Internet assume um papel fundamental para o controle e fiscalização da administração pública, bem como para desburocratizar as relações entre Estado e cidadãos/consumidores.
Esta é uma perspectiva por excelência otimista, pois as possibilidades oferecidas pelas diversas tecnologias de informação podem permitir a participação de uma grande maioria permanentemente excluída das decisões políticas. Porém, não se pode olvidar a possibilidade de sua utilização no processo de dominação, representado principalmente pela crescente desigualdade entre os países pobres e ricos em termos de desenvolvimento e utilização das novas tecnologias.
O CIDADÃO GOVERNANTE
Parece razoável concluir hoje que a Internet é uma boa mídia para a participação na política na medida em que pode ajudar as pessoas de todo o mundo a se envolverem mais com o governo, da mesma forma que facilita aos potenciais empresários se envolver no mundo dos negócios. Como premissa verdadeira temos que as ações de mobilização não precisam correr pelos canais oficiais, sendo esta uma característica importante das relações de poder.
É fato que os governos são monopólios em seus territórios geográficos o que vale dizer que os clientes não podem simplesmente escolher outro fornecedor. Mas não são monopólios permanentes. Com esforço suficiente, políticos podem ser tirados do cargo. Devido a essa realidade e ao poder cada vez maior dos indivíduos para se organizarem e se fazerem ouvir via Internet, os governos com o tempo se tornarão mais sensíveis.
Por outro lado, diferentemente das empresas que valorizam aqueles indivíduos que gastam mais, o governo NÃO deve tratar as pessoas com base em sua capacidade de consumir. Ao contrário, deve haver uma preocupação especial com aqueles que são frágeis economicamente. Isto não deve significar necessariamente a instalação de políticas protecionistas. Na maioria das vezes, dá mais resultado uma política de educação e acesso universal às informações sob responsabilidade dos órgãos públicos. Por outro lado, o governo deve tornar-se capaz de ouvir o que os cidadãos têm a dizer. Tudo isto tem a ver com os chamados novos direitos (BOBBIO, 1992), fundamentalmente o direito de acesso através dos meios eletrônicos. Não é por nada que vivemos a denominada era do acesso (RIFKIN, 2001).
CONCEITUANDO GOVERNO ELETRÔNICO
Governo eletrônico é uma infra-estrutura única de comunicação compartilhada por diferentes órgãos públicos a partir da qual a tecnologia da informação e da comunicação é usada de forma intensiva para melhorar a gestão pública e o atendimento ao cidadão. Assim, o seu objetivo é colocar o governo ao alcance de todos, ampliando a transparências das suas ações e incrementando a participação cidadã.
Em síntese o Governo Eletrônico é uma forma puramente instrumental de administração das funções do Estado (Poder Executivo, Poder Legislativo e Poder Judiciário) e de realização dos fins estabelecidos ao Estado Democrático de Direito que utiliza as novas tecnologias da informação e comunicação como instrumento de interação com os cidadãos e de prestação dos serviços públicos.
De uma forma mais genérica, o governo eletrônico é uma forma de organização do conhecimento que permitirá que muitos atos e estruturas meramente burocráticas simplesmente desapareçam e a execução de tarefas que exijam uma atividade humana mais complexa seja facilitada.
O governo eletrônico pode ser dividido em 3 categorias: G2G, que envolve compras ou transações entre governos; G2B caracterizado pela relação entre governo e fornecedores e G2C, relação entre governo e cidadãos. As duas primeiras categorias ainda são as responsáveis pela maior parte dos investimentos feitos.
CONSTRUINDO O GOVERNO ELETRÔNICO
O processo de adaptação à via digital passa necessariamente pela desburocratização: um caminho em busca da eficiência e da eficácia frente à capacidade de intercomunicação entre os diversos agentes, superando as diversas barreiras de ordem material, financeira, geográfica ou hierárquica na prestação dos serviços públicos.
Assim, de maneira funcionalista, o governo eletrônico deve constituir-se em um processo de definição de políticas e diretrizes para articular as ações de implantação de serviços e informações que vão naquela direção.
Para tanto existem algumas tarefas ou etapas que devem ser planejadas e realizadas para a realização do Estado digital ou Estado plugado. Estes objetivos fazem parte das competências do Comitê ou Grupo de Trabalho Inter-Ministerial, formado por representantes de órgãos e entidades públicas e privadas, através da Presidência da República (casa civil), também conhecido como Grupo de Trabalho em Tecnologia de Informação – GTTI. São eles:
- coordenar e articular a implantação de programas e projetos para racionalização da aquisição e da utilização da infra-estrutura, dos serviços e das aplicações de tecnologia da informação e comunicação;
- estabelecer diretrizes para a formulação de plano de tecnologia da informação e comunicação;
- estabelecer diretrizes e estratégias para o planejamento da oferta de serviços e informações por meio eletrônico;
- definir padrões de qualidade para as formas eletrônicas de interação;
- estabelecer níveis de serviços para a prestação de serviços e informações por meio eletrônico;
RAZÕES DE CUNHO ECONÔMICO E POLÍTICO
O governo eletrônico é uma exigência emergencial de ordem econômica e gerencial. A simplificação da burocracia estatal, a agilização dos procedimentos, utilizando menos e melhor os recursos humanos, e a incrível redução das necessidades de aquisição, transporte e armazenamento de papéis não são opções, mas a base para a redução de custos que hoje se tornou obrigatória para a maioria dos estados nacionais. As planilhas financeiras dos administradores públicos e as limitações orçamentárias norteiam e muito a instituição do Governo Eletrônico neste seu princípio.
Evidentemente, os custos de implantação e manutenção do governo eletrônico não são insignificantes, mas no cômputo geral representam um verdadeiro milagre de economia com a eliminação quase que total dos suportes físicos das informações.
Porém, é incorreto ter como único parâmetro estes efeitos econômicos. Deve-se levar em conta fundamentalmente a relação do governo com a sociedade, na qual o papel do cidadão é fundamental, seja em relação ao exercício de seus direitos como no cumprimento de seus deveres.
Infelizmente, este movimento apenas se inicia.
GERENCIAMENTO E COORDENAÇÃO DOS TRABALHOS
A gestão deve ser descentralizada, visto que o Estado administra uma quantidade de informações praticamente infinita. O resultado é uma maior área de atuação do Estado, bem como o surgimento, desenvolvimento e aproveitamento de novas idéias. Isso, porém, não pode significar isolamento nem, tampouco, autonomia dos órgãos.
Por isto, a coordenação deve ser centralizada, respondendo pela uniformização dos serviços e sua fiscalização. A implementação de controles estatísticos e programas de simulação que permitam a geração de vários relatórios sobre o uso dos serviços, facilitando o seu planejamento futuro é importante nesse nível.
INFRA-ESTRUTURA TECNOLÓGICA – HARDWARE E SOFTWARE
A infra-estrutura tecnológica é a base necessária para a implantação do Governo Eletrônico. É o elemento físico, material, que possibilitará a existência eletrônica do governo tais como cabos de fibra ótica, satélites de comunicação, provedores de acesso à Internet, prestadoras de serviços de telefonia e comunicação de dados em alta velocidade, computadores e periféricos (modens, hub, roteadores), softwares.
Temos ainda as novas tecnologias da informação e comunicação, ligadas à convergência de um conjunto dinâmico de equipamentos eletrônicos e digitais, e áreas do conhecimento extremamente avançadas (TAKAHASHI, 2000).
Enfim, eis algumas tecnologias importantes:
- Portais na web
- Assinatura eletrônica e autenticação
- Comunicação sem fio
- Videoconferência
- Ferramentas de trabalho em grupo
- Gerenciamento eletrônico de documentos
- Central de relacionamento
- Leilão eletrônico
- Correio eletrônico
- Inteligência Artificial
- Gestão do conhecimento
Portanto, investir na infra-estrutura física e na sua atualização permanente é fundamental e depende de um imenso investimento inicial pelo Poder Público. Evidentemente, a iniciativa privada participa também desse processo, principalmente na expansão da Internet.
CONTEÚDOS COMPLETOS E ATUALIZADOS
Não basta ter uma boa base tecnológica instalada se o conteúdo disponível não atinge os objetivos propostos, pois insuficientes ou de qualidade duvidosa. Devem estar disponíveis o máximo de informações possíveis, em constante atualização. Ou seja, informações completas, atualizadas e confiáveis. Naturalmente, de nada valeria este conteúdo se não fosse de fácil acesso. Evidentemente, isso é um forte elemento de desmotivação do cidadão.
O que fazer? É fundamental uma estratégia de gerência da informação, como por exemplo, organizá-la de forma simplificada. Esta é uma lição que poucos aprenderam.
PEOPLEWARE: CAPACITAÇÃO, PARTICIPAÇÃO E MULTIDISCIPLINARIDADE
A capacitação dos usuários e do pessoal responsável pelo Governo Eletrônico é outro fator importante para o seu sucesso.
A capacitação dos servidores públicos é um passo fortemente planejado e depende de investimento direto na tarefa. Inicia-se no âmbito interno com a promoção da informatização da administração pública e de uso de padrões e o treinamento para capacitação no uso desses sistemas. No âmbito externo esse treinamento passa pela implementação de uma infra-estrutura básica nacional, integrando as diversas estruturas de redes do governo, incluindo o setor privado.
O envolvimento de pessoas relacionadas às mais diferentes áreas do conhecimento científico ou de atuação profissional, característica importante na construção do Governo Eletrônico, deve ser levado em conta nesse processo. Somente com trabalho conjunto é possível dar conta da realidade e de sistemas complexos, no sentido de melhor compreender as variáveis envolvidas. Além disto, permite superar velhos hábitos e adquirir novas capacidades.
Outro elemento de discussão é o desemprego decorrente desse processo. Achar que isso é um resultado necessário demonstra haver uma dose de ingenuidade. Evidentemente, as pessoas serão chamadas a se capacitar para as novas tarefas ou serão relocadas para as atividades fins do Estado, hoje deficientes.
Já a capacitação dos cidadãos-usuários depende mais de uma alfabetização digital de toda a sociedade, processo muito mais complexo e sem delimitação de prazos. Envolve também um intercâmbio direto, sem intermediações, sem resistências em que os cidadãos podem participar do processo, aprendendo. Aqui também vale afirmar categoricamente que é preciso garantir a privacidade dos mesmos.
DIREITO AO ACESSO
Evidentemente, o objetivo final do governo eletrônico é a universalização de serviços. Para isso, o acesso universalizado (TAKAHASHI, 2000) ao governo eletrônico é condição fundamental para sua realização.
Paradoxalmente, é este mesmo Governo Eletrônico que deve combater essa forma de exclusão a partir de iniciativas em várias frentes hoje identificadas pela expressão inclusão digital.
Para tanto é preciso facilitar o acesso aos diversos sistemas de comunicação, buscando soluções alternativas de acesso coletivo ou compartilhado. O uso da Internet é o mais evidente, mas há as centrais de atendimento telefônico, já muito utilizadas para sugestões e denúncias.
Assim, deve haver tanto a capacitação da população, promovendo desde os primeiros anos escolares a possibilidade de alfabetização digital até o barateamento dos custos de aquisição e manutenção de computadores e acesso à Internet através de pontos de acesso públicos.
BENEFÍCIOS A SEREM ALCANÇADOS
O governo eletrônico ideal permitiria que o cidadão em geral tivesse acesso a todos os procedimentos de seu interesse ou da coletividade e que dependam da ação governamental, a qualquer tempo e em qualquer lugar.
De outra maneira, ocorriam a melhoria da qualidade dos serviços prestados pelo Estado e a sociedade tornar-se-ia mais ciente de seus direitos e deveres. Como exemplo podemos verificar o avanço em várias áreas:
- Simplificação dos procedimentos e integração das informações com conseqüente aperfeiçoamento dos modelos de gestão pública (diminuição da burocracia)
- Integração dos órgãos do governo em todos os seus âmbitos, municipal, estadual e federal
- Transparência e otimização das ações do governo e dos recursos disponíveis, através da prestação eletrônica de informações, serviços e das contas públicas
- Desenvolvimento do profissional do serviço público
- Avanço da cidadania e da democracia com a promoção do ensino, alfabetização e educação digital
FRAGILIDADES, RISCOS E INSEGURANÇAS
Aspecto geral que influi no sucesso do governo eletrônico diz respeito a sua implantação e manutenção: devem ser feitos com transparência garantindo-se a credibilidade e confiança necessária ao sistema. São os mesmos princípios impulsionadores da Internet, aberta e democrática e que podem tornar o governo o que deveria ser, um espaço público, transparente e acessível a todos. Evidentemente, a barbárie sempre é uma possibilidade (ARENDT, 1988). Na sociedade da informação, porém, é mais fácil esta surgir não de uma ditadura que censura, mas de uma sociedade cuja transparência (BRIN) é cada vez maior.
As máquinas e as tecnologias, semelhantes ao seu criador, são frágeis e sofrem panes. Na medida em que dependemos cada vez mais delas, esta situação pode fragilizar todo e qualquer serviço intermediado por elas. Aqui, a questão da segurança do processo e dos sistemas é tão importante que dela depende a credibilidade e adesão ao governo eletrônico. Dependente tanto do elemento tecnológico como das pessoas envolvidas, tem conseqüências também em termos da segurança jurídica.
Várias normas disciplinam esta área como o Decreto 3.505 de 13/06/2000, que estabeleceu a Política de Segurança da Informação Pública do Poder Executivo Federal, e a Lei nº 9.983, de 14/07/2000, que estabelece as regras básicas de segurança da informação no âmbito da Administração Pública Federal.
Além disto, a previsão legal é uma exigência do Estado Democrático de Direito que passa pelo debate político e legislativo sobre as diretrizes gerais de implantação do Governo Eletrônico bem como sobre definições bem particulares nas mais diversas áreas.
A título do problema de segurança, intrínseco em qualquer sistema de informação, existem outros fatores que dificultam a construção do governo eletrônico:
- falta de determinação e de um esforço coordenado, dificuldades em dar o primeiro passo, conservadorismo, medo
- obstáculos culturais: cultura do curto prazo faz com que se pense que mudanças importantes podem ocorrer facilmente e rapidamente, dificuldade em adaptação às mudanças
- burocracia representada em estruturas e normas arcaicas
- chefias castradoras de novas idéias
- duplicidades, fracionamento de serviços
- escassez de recursos
- há serviços que não podem ser prestados sem a presença do cidadão
- a automação dos processos gera desemprego e exige maior escolaridade da mão de obra
- a infra-estrutura da comunicação deve ser objeto de permanente investimento
- há muita diversidade de padrões de procedimentos nas diferentes entidades o que exige muita articulação e um maior custo no processo
A complexidade oculta é muito grande e não precisa ser representada para o cidadão, que não necessita saber como o governo é organizado. Nem por isto a tarefa de minimizar os riscos é menor, exigindo permanente reengenharia dos processos e vigilância por parte das pessoas envolvidas.
GOVERNMENT TO BUSINESS (G2B)
Vários são os exemplos de forte investimento no chamado government to business, um conceito que envolve o uso das redes globais e de sistemas de informática, para as compras e serviços contratados pelo Governo, através de processos de licitação, leilões e pregões. Com certeza esta é uma área sensível e com grande repercussão na sociedade e nas contas do Estado, pressionado cada vez mais na busca de maior eficiência. Note-se a lei de responsabilidade fiscal.
Na realidade já existem parâmetros para a execução destes serviços eletrônicos. A legislação define limites para a atuação dos estados e municípios. Para o governo federal não há esta delimitação de valores.
Desde logo é possível afirmar que se abre espaço para um número ilimitado de empresas a um procedimento sempre caracterizado pela dificuldade de acesso às informações.
Além do mais, os sistemas automáticos (quem contabiliza as compras são máquinas) permitem que as auditorias sejam feitas pelos sistemas sem a necessária intervenção dos agentes governamentais. Toda aquisição fica registrada e disponível na rede, permitindo a comparação de preços pelas unidades e interessados. Isto tem permitido a redução de custos, tanto nos preços das mercadorias, como a redução dos custos administrativos (papel, telefone e funcionários).
Outra conseqüência positiva á a transparência das ações dos agentes, bem como a permanente fiscalização dos fornecedores (todos ficam sabendo). Assim desveladas várias anomalias nos processos de atuação, haveria em conseqüência uma menor corrupção.
Ocorre também a eficiência em termos de tempo. Com a menor burocracia nas decisões torna-se inevitável a diminuição de 70 a 80% do tempo de transação.
GOVERNO ELETRÔNICO NO PODER EXECUTIVO
Exemplo prático de government to business do governo federal é o comprasnet. Também há o acompanhamento e fiscalização das obras públicas, sistema denominado Obrasnet. Feito através de um banco de dados com informações sobre preços de mercado, este serviria de parâmetro para definições para futuras obras. Tal sistema também facilitaria o acompanhamento da padronização e qualidade das obras. É intenção do governo federal também investir num sistema de informações sobre as principais ações judiciais em tramitação (Jurisnet). O foco aqui serão os processos de revisão judicial de obras, desapropriações, ações trabalhistas e previdenciárias, execuções, indenizações, falências e concordatas.
Todos esses sistemas ficam integrados em um portal na Internet cujo objetivo seria divulgar os gastos do governo, colocando à disposição do público todos os serviços e informações do Governo Federal. O grande trunfo do projeto é a integração com outros portais do Legislativo, Judiciário, Estados, Municípios e Distrito Federal com os serviços já disponíveis do governo federal, criando-se uma grande rede. Além disso, a página da Internet teria um fórum para o debate público, com participação de especialistas, autoridades, além da população em geral.
Não podemos esquecer o maior exemplo na esfera federal e um dos primeiros sucessos que é a Declaração de Imposto de Renda pela Internet. Mais recentemente, a Secretaria da Receita Federal colocou à disposição da sociedade inúmeros serviços, como legislação e estudos tributários, certidões negativas, pagamento on-line de tributos, formulários.
No Ministério da Saúde há o Datasus que reúne diversos sistemas existentes, englobando informações hospitalares, ambulatoriais, gerenciais de ambiente, programas de prevenção, estatísticas vitais e de gestão administrativa.
Outro exemplo prático é a divulgação dos dados e informações acerca da administração pública pelo Tribunal de Contas da União através da Internet (Lei nº 9.755/98)
A esfera estadual não deixa de seguir na mesma direção, como a implementação de Postos Fiscais Eletrônicos, Delegacia Virtual, entre outros. O Estado de SC desde 1998 vem implantando programas e projetos de governo eletrônico, hoje denominado de Governo Cidadão. Também a Secretaria da Fazenda tem mostrado seu pioneirismo na construção do governo eletrônico, investindo fortemente nos sistemas de informação, na busca de adequação, implantação e melhoria dos sistemas de bases de dados fazendários, que geram hoje mais de 10 serviços fundamentais para a fiscalização e os contribuintes. Além do investimento em equipamentos e programas a secretaria tem feito o treinamento e a capacitação dos seus servidores, o que é premissa fundamental para o sucesso do programa.
No âmbito municipal a maioria das Prefeituras com mais de 200.000 habitantes já utilizam a Internet para prestar serviços.
ALGUNS SERVIÇOS DE SUCESSO E ALGUNS NEM TANTO
- pagamento de tributos em geral;
- consulta da validade do CPF;
- informações sobre multas;
- resultado de concursos públicos;
- pesquisas no cadastro da previdência social;
- pagamentos de multas de trânsito e licenciamento de veículos;
- denúncias de consumidores nos Procons;
- pedido de passaporte na polícia federal;
- serviços de utilidade pública;
- agendas culturais;
- informações sobre secretarias e órgãos;
- estatísticas diversas;
- inscrições de interessados para cadastros diversos como empregos, para serviços;
GOVERNO ELETRÔNICO NOS TRIBUNAIS
A Justiça Brasileira tem muitas deficiências e a principal é a velha lentidão da prestação jurisdicional. Entretanto, ela vem alcançando, nos últimos anos, um elevado e sofisticado grau de informatização. A grande maioria dos tribunais brasileiros disponibiliza, via Internet, suas decisões, bem como permite o acompanhamento remotamente ao andamento dos processos, salvo aqueles cobertos pelo segredo de justiça; alguns já permitem o envio de petições via internet sem a necessidade de posterior envio dos originais; outros realizaram experiências em interrogatório por videoconferência, mesmo com a opinião oposta da OAB.
Finalmente, inicia-se um movimento de reflexão e instalação do processo digital que elimina a velha forma de registrar os diversos momentos de um processo judicial, através do papel.
A eliminação do cartório judicial, estrutura administrativa responsável por classificar e encaminhar os processos ao juiz para despachos e sentenças, atender ao público, emitir certidões, realizar intimações, é o início de tudo. Os autos físicos deverão deixar de existir. Os benefícios são imensos: sem limite de vida útil, não demandam espaço para o armazenamento, acesso às informações ilimitado independente de local e espaço, rápida solução dos litígios, prazos correndo simultaneamente para todas as partes envolvidas, existência de mecanismos que potencializam o trabalho dos juízes, árbitros e mediadores (acesso a banco de decisões com sistemas inteligentes de busca, contato constante com seus pares e agenda automática de marcação de compromissos).
Muitas são as tecnologias disponíveis e muitos são os campos de sua aplicação.
Outro exemplo é a TV Justiça, canal de notícias do Supremo Tribunal Federal que pode ser acompanhada em tempo real pela Internet. A TV veicula programas feitos pelos tribunais e entidades de representação dos profissionais ligados ao mundo jurídico como a Ordem dos Advogados do Brasil, a Associação dos Juízes Federais do Brasil, o Ministério Público e a Procuradoria-Geral da República.
O GOVERNO E O COMÉRCIO ELETRÔNICO
É evidente que a contrapartida do governo eletrônico é o que se denominou Comércio Eletrônico, sendo o governo um elemento importante no seu desenvolvimento. Por outro lado, deste desenvolvimento dependente também o avanço do governo eletrônico, na medida em que o investimento na infra-estrutura de rede e na segurança dos serviços nela implantados é fundamental para qualquer ação profissional nesse meio.
É evidente que o desenvolvimento do comércio eletrônico depende muito do setor privado. Isto não quer dizer que o governo não tenha um papel importante, regulando o setor e criando condições para o seu desenvolvimento. Vale dizer que deveria haver esforços para criar uma estrutura legal competente e ambiente propício que estimulem o aparecimento de cientistas, pesquisadores, homens de negócio, trabalhadores, investidores e consumidores interessados no setor.
Neste sentido caberiam iniciativas como:
- aprovação de uma legislação tributária que incentive as atividades virtuais, com regras permanentes e universais;
- redução de impostos e taxas para produtos e serviços que envolvam a adoção das tecnologias acima indicadas;
- liberalização do mercado de telecomunicações, em todos os níveis (telefonia local e internacional, transmissões via satélite, cabo);
- estruturação da cobrança das contas telefônicas que permita uma redução de gastos para quem usa as linhas prioritariamente para a recepção e transmissão de dados;
- homogeneização da legislação comum aos blocos econômicos para o comércio eletrônico;
- implementação e agilização dos programas de criação do governo eletrônico, integrando os diversos sistemas usados no setor público, permitindo uma maior divulgação das ações do governo e estimulando a participação de empresas e dos cidadãos;
- fomento de trabalhos de caráter educacional desenvolvido junto à população em geral como cursos sobre o uso da Internet, ministrados em escolas públicas, durante o período noturno;
- investimento na capacitação de pequenas e médias empresas, para que elas possam identificar, desenvolver e transformar em oportunidades de negócio on-line seus produtos e serviços;
- investimento em universidades e centros de pesquisa para que produzam conhecimento de base que possam ser convertidos em conhecimento tecnológico aplicáveis na indústria da informação;
- criação de fórum que permita a formação de alianças e parcerias entre fornecedores, distribuidores e consumidores;
- criação de organizações (fundeadas pela iniciativa privada com o auxílio do governo) para o financiamento de cursos, aluguel de equipamentos e de instalações para treinamento com custos subsidiados, para as pequenas e médias empresas interessadas;
- desenvolvimento de um programa de publicidade que inclua concursos nacionais para as pequenas e médias empresas que estão desenvolvendo as iniciativas mais interessantes na área de Comércio Eletrônico;
- aprimoramento da legislação sobre assinaturas eletrônicas, que garanta segurança e liberdade de atuação das empresas. A base do Comércio Eletrônico é a credibilidade dos procedimentos que ocorrem, sua segurança técnica e jurídica. Para isso a assinatura ou certificação digital passa a ser importante na garantia de autenticidade e integridade dos documentos, indo muito além dos modelos de tecnologias que tentam garantir essas características.
DEFESA DA PRIVACIDADE
A privacidade é um bem fundamental do indivíduo e deve ser protegido, tendo em vista o aumento exponencial da capacidade de juntar informações sobre os cidadãos, através do governo eletrônico e do Comércio Eletrônico. Dentre estas informações estão aquelas confidenciais como os dados sobre saúde, financeiros, histórico de trabalho.
É evidente que cidadania e negócios não se antagonizam com a defesa da privacidade, pois os mercados e o governo só funcionariam na rede se houver confiança, previsibilidade e estabilidade.
Isto não quer dizer que se está imune aos ataques à privacidade. Os perigos existem, desde que haja o arquivamento de informações pessoais sem autorização, haja o cruzamento de dados que identifiquem os costumes de alguém ou seja difícil corrigir informações erradas baseadas em simplificações grosseiras das vidas das pessoas, que são em princípio contraditórias, desordenadas e complexas.
Por outro lado há o perigo da espionagem política, industrial e comercial. É o caso do echelon, um sistema organizado por diversos países do primeiro mundo que consiste numa rede de grampos em diversos sistemas de comunicações, comandados pela Agência Nacional de segurança dos EUA (NSA). As razões de Estado estão sempre presentes nestes casos, justificando ações do governo, ativas (FBI com seu carnivore grampeando a internet de pessoas suspeitas) ou passivas (na Inglaterra os provedores são obrigados a registrar o tráfego e encaminhá-lo ao governo).
Verifica-se contudo, que num ambiente seguro e de confiança, os próprios cidadãos aceitam e entregam seus dados. É fato que as novas tecnologias têm permitido um controle descentralizado e consensual das informações. Dessa forma, a privacidade tende a ser reduzida apenas ao espaço privado. restando ao espaço público a maior de todas as transparências (BRIN).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não existem soluções mágicas nem o governo perfeito. Evidentemente, com o governo eletrônico, muitos problemas e deficiências do serviço público poderão ser sanados ou minimizados. Da mesma forma, novos problemas surgirão para serem resolvidos.
Diante diversidade de vantagens e dificuldades, o fato é que muitas são as possibilidades e perspectivas do desenvolvimento do governo eletrônico e que parece difícil não dar certo. Isto porque não há outra saída para o aumento de eficiência dos governos. No Brasil este processo já não é mais ficção, estando na frente, em alguns casos, de muitos países de primeiro mundo.
A construção do governo eletrônico não pode ser encarada como uma possibilidade, mas uma necessidade.
Porém, é preciso ter claro que a questão central de todo este processo não é tecnológica, mas cultural, na medida em que é preciso compreender que as tecnologias ou as escolhas tecnológicas são produtos de relações sociais, fortemente marcadas por padrões e determinações construídas ao longo da história da comunidade e dos indivíduos.
Se há muitos desafios por superar, por outro lado há muitas vantagens em acelerar o processo de construção do governo eletrônico. Não há como negar a maior rapidez e precisão no acesso às informações, a redução dos custos com papel e com pessoal para atendimento direto, a melhoria na prestação dos serviços e conseqüente melhoria na administração dos recursos públicos, a simplificação das rotinas permitindo maior agilidade na gestão de pessoal, enfim, redirecionando os esforços para áreas consideradas essenciais. Em conseqüência, fica fácil observar que a satisfação do contribuinte, do cidadão em geral, teria a contrapartida da melhoria na imagem e credibilidade do governo.
Resta saber em que medida aqueles setores que ainda não estão conscientes deste movimento tomarão as ações devidas em tempo de não causar grandes prejuízos à sociedade. Por outro lado, fica a incógnita de se verificar até que ponto a tecnologia da informação pode agregar eficiência neste setor tão marcado por outras variáveis que não levam em conta o interesse do cidadão. Neste sentido, mais do que nunca, deve haver um concerto para diminuir este longo caminho.
REFERÊNCIAS
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