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(Ainda) a prisão civil do depositário infiel.

Notas sobre o posicionamento atual do STF

 

 

José Guilherme Berman Corrêa Pinto*

 

 

Sumário: 1. Introdução; 2. A prisão civil do devedor fiduciário (depositário por equiparação); 3. A prisão civil do depositário infiel; 4. A prisão civil do depositário judicial; 5. Conclusão


1. Introdução

A possibilidade da prisão civil por dívida é, certamente, uma das questões mais controvertidas no direito brasileiro. Seja pela diversidade de diplomas legais pertinentes à matéria, pelas idas e vindas na jurisprudência, admitindo ou rejeitando a possibilidade de prisão ou pela quantidade de detalhes que podem interferir na caracterização das hipóteses em que se admite a restrição da liberdade, fato é que ainda não há (e nem parece que haverá em breve) um consenso sobre o tema. Diante desse quadro de indefinição, o que se pretende é analisar os últimos desdobramentos decorrentes de julgamentos do STF que voltaram a discutir tal questão, sendo preciso fixar quais os textos normativos supostamente aplicáveis à hipótese e estabelecer algumas distinções necessárias.

Neste sentido, faz-se necessário distinguir entre a prisão civil (1) do devedor de alimentos e (2) do depositário infiel, e, dentro desta categoria, (2.1) do devedor fiduciário (depositário por equiparação) e (2.2) do depositário judicial (depositário necessário). É preciso, ainda, indagar acerca da aplicação dos seguintes dispositivos normativos: (1) Constituição da República Federativa do Brasil (art. 5º, inciso LXVII e parágrafos §§ 2º e 3º; (2) Código Civil Brasileiro, artigo 627 e segs.; (3) Código de Processo Civil brasileiro, art. 904, parágrafo único; (4) Decreto-Lei nº 911/69, art. 4º; e (5) Decreto nº 678/92 (Pacto de São José da Costa Rica), art. 7, § 7º.

A partir destes conceitos, pode-se distinguir diversos posicionamentos adotados pelo STF com relação a esta matéria, destacando-se: (1) o entendimento clássico, que permite a prisão tanto do depositário infiel (típico) como do devedor fiduciário (depositário por equiparação); (2) a discussão em andamento no julgamento do RE 466.343-SP, que poderá resultar na impossibilidade de prisão do devedor fiduciário ou até mesmo do depositário infiel típico; (3) os julgamentos do RHC nº 90.759 e do HC nº 90.172, nos quais se discute a possibilidade de prisão do depositário judicial.

Repise-se, trata-se de tema cuja discussão parece ainda longe de se encerrar, de maneira que o acompanhamento dos julgamentos aqui mencionados é indispensável para que se possa saber, com precisão, o que entenderá o STF de maneira definitiva (até quando?) sobre a matéria.


2. A prisão civil do devedor fiduciário (depositário por equiparação)

A Constituição de 1988, em seu artigo 5º, inciso LXVII, expressamente estabelece que "não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e do depositário infiel".

Não há dúvidas, portanto, que o texto constitucional, dotado da mais alta hierarquia no direito brasileiro (princípio da supremacia da constituição), autoriza a prisão do devedor de alimentos e do depositário infiel. No entanto, esta aparente clareza do texto não é capaz de evitar dúvidas sobre o alcance da referida norma, especialmente quando aplicada a categorias um tanto nebulosas.

Este é precisamente o caso do devedor fiduciário, ou seja, do devedor de um contrato de alienação fiduciária em garantia. O Decreto-Lei nº 911/69, que estabelece normas processuais sobre a alienação fiduciária, em seu artigo 4º, permite que o credor de tal contrato requeira a conversão de eventual pedido de busca e apreensão do bem alienado em ação de depósito, na forma prevista no Código de Processo Civil, o que abre as portas para a possibilidade de prisão do devedor, na medida em que este passa a ser considerado como depositário infiel [01].

A legislação infraconstitucional, desta maneira, equipara o devedor de um contrato de alienação fiduciária em garantia, cuja prisão civil não fora autorizada pelo texto constitucional, ao depositário infiel, este sim sujeito à restrição de sua liberdade em função de inadimplemento contratual de suas obrigações.

O Superior Tribunal de Justiça, ao interpretar tal dispositivo, entendeu que a Carta Magna, ao permitir a prisão civil por dívida do depositário infiel, referiu-se apenas ao devedor do contrato de depósito, contrato típico, disciplinado pelo Código Civil, atualmente em seu artigo 627 [02] e seguintes. Esta espécie contratual, de acordo com a melhor doutrina [03], tem por características ser um contrato (i) real; (ii) gratuito (embora as partes possam estipular em sentido contrário); e (iii) temporário. Por meio deste contrato, o depositário recebe um objeto móvel para guardar, até que o depositante o reclame. Destaque-se que o depositário guarda o objeto consciente de que ele não o pertence, sem qualquer pretensão de permanecer com a posse definitiva do mesmo.

Por sua vez, o contrato de alienação fiduciária em garantia possui disciplina especial, inserida na Lei nº 4.728/65 (Lei do Mercado de Capitais) e complementada pelo já referido Decreto-Lei nº 911/69. O saudoso mestre Caio Mario da Silva Pereira assim descreve este contrato:

Este novo contrato, criando "direito real de garantia", implica a transferência, pelo devedor ao credor, da propriedade e posse indireta do bem, mantida a posse direta com o alienante. É, portanto, um negócio jurídico de alienação, subordinado a uma condição resolutiva. Efetuada a liquidação do débito garantido, a coisa alienada retorna automaticamente ao domínio pleno do vendedor, independentemente de nova declaração de vontade. [04]

Na alienação fiduciária, diferentemente do que ocorre no contrato de depósito, o adquirente, embora não tenha a posse indireta do bem, jamais o guardará com a intenção de devolvê-lo assim que solicitado pelo alienante. Ao revés, este não poderá reaver o bem, salvo inadimplemento contratual (e mesmo assim não deverá ficar com ele para si). Nota-se, portanto, que a alienação fiduciária em garantia e o contrato de depósito possuem natureza distinta, não havendo grandes similitudes entre ambos.

Diante desta flagrante dissociação entre ambos os contratos, faz-se necessário indagar se, ao permitir a prisão civil do depositário infiel, a Constituição autorizou também que o legislador ordinário equiparasse outros institutos à figura do depósito. Em outras palavras, o constituinte autorizou a prisão exclusivamente do devedor de um contrato típico de depósito, nos termos estabelecidos pelo Código Civil, ou é possível que se equipare devedores de outras modalidades contratuais ao depositário infiel?

O Superior Tribunal de Justiça entende, há algum tempo, que esta equiparação não é possível [05]. As palavras do Ministro Barros Monteiro, neste ponto, são elucidativas:

Entre os argumentos acolhidos pelo ilustre Ministro Relator, aos quais prestei a adesão de meu voto em pronunciamentos recentes, está o de que inexiste neste caso o contrato de depósito, ao menos com o fim de excluir a prisão civil como conseqüência do inadimplemento de um negócio bancário. O credor não pode ser tido como proprietário do bem dado em garantia, nem o devedor pode ser considerado como depositário. Não é proprietário aquele que, ao retomar a posse da coisa, por meio de pedido de busca e apreensão, não pode com ela ficar para si, estando obrigado a vendê-la a terceiros, cujo preço assim obtido não é seu, senão na medida do seu crédito, devendo repassar o saldo ao devedor. Portanto, o credor, proprietário, não poderia ter dado o bem em depósito. Além do mais, conforme ainda consignado no voto do Sr. Relator do referido precedente – com remissão ao decidido no RHC nº 4.288-5/RJ, Relator Ministro Adhemar Maciel –, depositário infiel só pode ser aquele decorrente do contrato de depósito típico ou genuíno. O devedor fiduciante não se encontra na situação jurídica propriamente de depositário. Em verdade, a legislação ordinária procedeu a uma equiparação daquilo que não pode ser comparado para, ao fim e ao cabo, ensejar a cobrança de dívida mediante ameaça de prisão. [06] (grifou-se)

Repete-se no julgamento citado a orientação firmada pela Corte Especial do STJ em julgamento realizado em 05/05/1999 [07], até hoje insuperado.

No entanto, o STF recusou-se a aceitar tal argumento. Com efeito, a Suprema Corte brasileira, em diversas oportunidades, asseverou ser constitucional a prisão civil do depositário infiel, afirmando a recepção, pela Constituição de 1988, da regra contida no Decreto-Lei nº 911/69 [08].

E assim foi até recentemente. Neste momento, no entanto, já é possível afirmar que estamos diante de uma modificação na orientação adotada pelo Supremo. Com efeito, no julgamento, ainda não encerrado, do RE nº 466.343-SP, o Relator, Ministro Cezar Peluso, afirmou que "entre os contratos de depósito e de alienação fiduciária em garantia não há afinidade, conexão teórica entre dois modelos jurídicos, que permita sua equiparação" [09], adotando, assim, a tese acolhida pelo STJ de longa data. Antes de ser interrompido pelo pedido de vista do Min. Celso de Mello, outros seis ministros (Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa, Carlos Britto, Marco Aurélio e Gilmar Mendes) acompanharam o relator, o que já assegura, ressalvada a possibilidade de mudança de votos até o término do julgamento, maioria suficiente para afirmar que o STF já não mais considera constitucional a equiparação do contrato de alienação fiduciária em garantia ao contrato de depósito para fins de prisão do devedor.


3. A prisão civil do depositário infiel

Observa-se que, até o momento, falou-se apenas da (im)possibilidade de prisão civil do depositário infiel assim considerado por meio da equiparação feita pelo Decreto-Lei nº 911/69, sem que se tenha mencionado a possibilidade, ou não, da prisão civil do devedor de um contrato de depósito típico, autorizada pela Constituição e prevista na legislação processual civil brasileira [10].

Esta questão ganhou novos contornos a partir da ratificação, pelo Brasil, do Pacto de São José da Costa Rica, ocorrida no ano de 1992 (Decreto nº 678, de 06 de novembro de 1992). Em seu artigo 7, § 7º, o referido tratado dispõe que "Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar".

Em face do texto convencional, o STF foi novamente provocado a se pronunciar acerca da possibilidade de prisão civil por dívida, notadamente por haver um suposto confronto entre a mencionada norma convencional, que só permite a prisão civil do devedor de alimentos, e o texto da Constituição Federal, que autoriza também a prisão do depositário infiel (art. 5º, inciso LXVII ).

Parte da doutrina passou a defender a impossibilidade da prisão do depositário infiel [11]. Para estes autores, os tratados internacionais sobre direitos humanos possuiriam status de normas constitucionais, por força do § 2º do art. 5º da Constituição, que estabelece: "os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte". Para esta corrente doutrinária, portanto, o Pacto de São José da Costa Rica teria derrogado, neste ponto, a Constituição de 1988, ampliando-se a proteção contra a prisão civil.

Em outras palavras, passou-se a defender que os tratados internacionais sobre direitos humanos ratificados pelo Brasil ingressam em nosso ordenamento jurídico não com força de lei ordinária (conforme entendimento do STF), mas sim como norma constitucional, dotada, portanto, de supremacia. Desta forma, o conflito entre o Decreto-Lei nº 911/69 (recepcionado como lei ordinária) e o Decreto nº 628/92 (ao qual se atribuiria status de norma constitucional) deveria ser resolvido pelo critério hierárquico, prevalecendo este último, na medida em que se trata justamente de tratado internacional sobre direitos humanos.

Mais uma vez, no entanto, o STF não acolheu os fortes argumentos da doutrina. Este entendimento foi consolidado no julgamento do HC 72.131-RJ, em que prevaleceu, por maioria de sete votos contra quatro, a tese defendida pelo Ministro Moreira Alves, que sustentava: (i) que os tratados internacionais, independentemente da sua matéria, ingressam no ordenamento jurídico como leis ordinárias; e (ii) que, no conflito entre o Decreto-Lei nº 911/69 (recepcionado materialmente como lei ordinária) e o Decreto nº 628/92 (também com hierarquia de lei ordinária), aquele deveria prevalecer, pelo critério da especialidade (afastando-se, assim, o critério cronológico, que daria prevalência ao Pacto de São José da Costa Rica).

Veja-se, a respeito, longo, mas elucidativo, trecho da argumentação desenvolvida pelo relator do caso:

Por fim, nada interfere na questão do depositário infiel em matéria de alienação fiduciária a Convenção de San José da Costa Rica, por estabelecer, no § 7º de seu artigo 7º que: "Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar". Com efeito, é pacífico na jurisprudência desta Corte que os tratados internacionais ingressam em nosso ordenamento jurídico tão somente com força de lei ordinária (o que ficou ainda mais evidente em face de o artigo 105, III, da Constituição que capitula, como caso de recurso especial a ser julgado pelo Superior Tribunal de Justiça como ocorre em relação à lei infraconstitucional, a negativa de vigência a tratado ou a contrariedade a ele), não se lhes aplicando, quando tendo eles integrado nossa ordem jurídica posteriormente à Constituição de 1988, o disposto no artigo 5º, § 2º, pela singela razão de que não se admite emenda constitucional realizada por meio de ratificação de tratado. Sendo, pois, mero dispositivo legal ordinário este § 7º do artigo 7º não pode restringir o alcance das exceções previstas no artigo 5º, LVII, da nossa atual Constituição (e note-se que essas exceções se sobrepõem ao direito fundamental do devedor em não ser suscetível de prisão civil, o que implica em verdadeiro direito fundamental dos credores de dívida alimentar e de depósito convencional ou necessário), até para o efeito de revogar, por interpretação inconstitucional de seu silêncio no sentido de não admitir o que a Constituição brasileira admite expressamente, as normas sobre a prisão civil do depositário infiel, e isso sem ainda se levar em consideração que, sendo o artigo § 7º, § 7º, dessa Convenção norma de caráter geral, não revoga ele o disposto, em legislação especial, como é a relativa à alienação fiduciária em garantia, no tocante à sua disciplina do devedor como depositário necessário, suscetível de prisão civil se se tornar depositário infiel.

Resumindo, o Ministro Moreira Alves afirmou que (i) é possível a equiparação da alienação fiduciária à ação de depósito; (ii) os tratados internacionais, mesmo aqueles que versam sobre direitos humanos, possuem status de leis ordinárias; e (iii) o conflito entre o Pacto de San Jose e o Decreto-Lei nº 911/69 deve ser resolvido pelo critério da especialidade, em favor deste último.

Em que pese a bem desenvolvida argumentação do Ministro Moreira Alves, este não parece ser o melhor entendimento.

Com relação à possibilidade de equiparação entre alienação fiduciária e depósito, sendo certo que a Constituição somente permite a prisão civil neste último caso, deve se destacar, além da distinta natureza de ambos os contratos, o fato de que, em se tratando de norma que visa a restringir o exercício de um direito fundamental (liberdade), qualquer dispositivo deve ser interpretado restritivamente [12].

É com base na força irradiante [13] das normas de direitos fundamentais – entre elas a que protege a liberdade de ir e vir do indivíduo – que se estabelece a necessidade de se colocar filtros para a adequada leitura de todo o ordenamento jurídico à luz do que estabelecem as normas protetivas dos direitos fundamentais. No caso específico da prisão civil do depositário infiel, esta tarefa dirige-se à verificação da validade da equiparação feita pelo Decreto-Lei nº 911/69 em face do que estabelece a Constituição de 1988. E não parece possível chegar à conclusão de que uma norma infraconstitucional (materialmente recepcionada como lei, mas promulgada sob a autoritária forma do Decreto-Lei, instrumento legislativo típico de regimes de exceção) poderia ampliar o alcance de uma restrição a direito fundamental.

A contrario senso, é de se admitir que normas que ampliem o conteúdo de direitos fundamentais sejam perfeitamente compatíveis com o texto da Constituição [14]. É o que acontece justamente com o Pacto de São José da Costa Rica, que amplia a proteção conferida ao devedor, no sentido de que ele só será preso em caso de dívida alimentar. Desta forma, o tratado não contraria a Constituição, apenas amplia uma proteção por ela conferida.

Note-se que o Min. Moreira Alves inverte a premissa constitucional, entendendo que o art. 5º LXVII destina-se a proteger não o devedor contra a prisão civil por dívida, mas sim o credor, contra o possível inadimplemento de obrigação contratual. Tal entendimento, no entanto, subverte a lógica dos direitos fundamentais, colocando um direito obrigacional acima da liberdade individual [15].

Este ponto merece melhor desenvolvimento. É costume apontar a historicidade como uma das características dos direitos fundamentais: eles não são aqueles que a natureza conferiu aos seres humanos, mas sim aqueles reconhecidos como imprescindíveis por determinadas comunidades em determinado momento histórico [16]. E é fato, também, que os direitos fundamentais surgiram para a proteção do indivíduo em face do Estado. Não se está aqui a negar a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, [17]ou seja, a sua aplicação a relações travadas entre particulares, mas é preciso reconhecer que, nestes casos, somente se justifica a sua utilização como mecanismo de proteção da parte mais fraca da relação (enquanto nas relações indivíduo-Estado esta submissão é flagrante, nas relações privadas ela deverá ser demonstrada, como ocorre com o trabalhador em face do patrão e do consumidor em face do prestador de serviços).

No caso específico da prisão civil, o direito fundamental protegido é, à toda evidência, a liberdade do cidadão. Neste ponto, a vinculação é vertical, típica, protegendo o particular em face do Estado (único autorizado a restringir a sua liberdade de locomoção). Como um direito fundamental, somente seria admissível a sua aplicação a relações privadas se houvesse uma justificativa para tanto (como a necessidade de proteger a parte mais fraca da relação). Não é o que acontece quando se afirma, como o Min. Moreira Alves, que a norma constitucional destina-se a proteger o credor contra o inadimplemento do devedor – neste caso, o que se estaria fazendo é aplicando um direito fundamental a uma relação entre particulares, mas não como forma de proteger o hipossuficiente, mas, ao revés, como garantia de recebimento do crédito pela parte mais forte da relação!

Ademais, o critério utilizado para estabelecer a relação de especialidade entre o Decreto-Lei nº 911/69 e o Decreto 628/92 é, no mínimo, questionável: afinal de contas, o Decreto-Lei nº 911/69 é especial em relação a quê? Ao contrato de alienação fiduciária? Mas o Decreto nº 628/92 não seria especial em relação à liberdade do indivíduo? E por que não utilizar este segundo critério de especialidade?

Mas, em que pese as críticas dirigidas a este precedente, o fato é que ele foi mantido por longo tempo pelo STF, e a possibilidade concreta de sua superação surgiu apenas recentemente, justamente no julgamento do já citado RE 466.343-SP.

Como se assinalou, o voto do Relator deste caso, Ministro Cezar Peluso, considerou inconstitucional a prisão do depositário infiel "por equiparação", não adentrando ao exame da posição hierárquica ocupada pelo Pacto de São José da Costa Rica no ordenamento jurídico brasileiro. Mantida a orientação anterior do STF, pode-se concluir que a prisão do depositário infiel "legítimo" permaneceria possível, nos termos do posicionamento do Ministro Moreira Alves.

No entanto, o voto-vista proferido pelo Ministro Gilmar Mendes no indigitado recurso extraordinário levantou uma nova discussão sobre esta matéria. Retomando a discussão sobre a posição dos tratado internacionais de direitos humanos no direito brasileiro, ele destaca que a Emenda Constitucional nº 45/2004, ao introduzir a possibilidade de aprovação de tais tratados por quórum qualificado, idêntico ao necessário para a aprovação de emendas constitucionais, hipótese em que possuirão força de normas constitucionais [18], por um lado, esvaziou a tese que defendia justamente, com base no § 2º, do art. 5º, que tais tratado já possuíam este status [19].. Mas, por outro lado, "a reforma também acabou por ressaltar o caráter especial dos tratados de direitos humanos em relação aos demais tratados de reciprocidade entre os Estados pactuantes, conferindo-lhes lugar privilegiado no ordenamento jurídico" [20].

Este lugar privilegiado a que se refere o Min. Gilmar Mendes implica a revisão do entendimento acerca da posição hierárquica dos tratados internacionais de direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro. Em vez de equipará-los às leis ordinárias, como faz tradicionalmente o STF, ou às emendas constitucionais, como pretendia parte da doutrina, Gilmar Mendes entende que esses tratados possuem força supralegal, ou seja, que se encontram abaixo da Constituição, porém acima das leis ordinárias. [21] [22] De acordo com a sua posição, a "internalização no ordenamento jurídico, por meio do procedimento de ratificação previsto na Constituição, tem o condão de paralisar a eficácia jurídica de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional com ela conflitante" [23].

A prevalecer a tese defendida pelo Ministro Gilmar Mendes, será impossível não apenas a prisão do depositário infiel por equiparação (como defendido pelo Relator, Min. Peluso), mas também a do depositário infiel típico, pois o Pacto de São José será considerado hierarquicamente superior ao CPC, que autoriza tal prisão.

O voto seguinte, apresentado pelo Ministro Celso de Mello, foi ainda mais além. Reformulando seu próprio posicionamento anterior, o mais antigo integrante do STF afirmou estar convencido de que os parágrafos 2º e 3º do artigo 5º da Constituição conferem hierarquia constitucional aos tratados internacionais sobre direitos humanos, sem necessidade de submissão dos atos anteriores à Emenda Constitucional nº 45/2004 à votação pelo quorum estabelecido pelo já referido § 3º do art. 5º, justamente acrescentado por tal Emenda. Destaca, em seu voto, o Ministro: [24]

É preciso ressalvar, no entanto, como precedentemente já enfatizado, as convenções internacionais de direitos humanos celebradas antes do advento da EC nº 45/2004, pois, quanto a elas, incide o § do art. 5º da Constituição, que lhes confere natureza materialmente constitucional, promovendo sua integração e fazendo com que se subsumam à noção mesma de bloco de constitucionalidade. (grifos no original)


4. A prisão civil do depositário judicial

Até a data do término deste trabalho, o julgamento do RE 466.343-SP ainda não foi retomado pelo STF. No entanto, seus efeitos já começam a ser percebidos na apreciação de outros casos pela instância máxima da justiça brasileira.

Com efeito, no julgamento do HC 90.172-SP, realizado pela Segunda Turma do STF, o Relator, Min. Gilmar Mendes, deferiu a ordem de habeas corpus a paciente que havia sido preso como depositário infiel de 87.500 quilos de aço galvanizado. Neste caso, repetindo os argumentos aduzidos por ele próprio por ocasião do julgamento do indigitado RE 466.343-SP, o relator determinou a soltura do paciente, afirmando que estava a levar em consideração a "plausibilidade da orientação que está a se firmar perante o Plenário desta Corte – a qual já conta com 7 votos".

Parece, entretanto, que a decisão incorreu em um pequeno equívoco. É que a orientação que já possui 7 votos perante o STF é aquela defendida pelo relator, Min. Cesar Peluzo, que não admite a prisão do depositário infiel quando este for assim considerado por meio da equiparação prevista no Decreto-Lei 911/69, não havendo qualquer menção à impossibilidade de prisão do depositário infiel típico. Apenas a posição defendida por ele, Gilmar Mendes, sobre a qual nenhum outro ministro se manifestou ainda, é que coloca o Pacto de São José da Costa Rica acima da legislação ordinária, inviabilizando, assim, a prisão de qualquer espécie de depositário infiel (típico ou por equiparação). Não obstante, a ordem de habeas corpus foi deferida pela unanimidade dos membros da 2ª Turma do STF, o que pode indicar uma boa aceitação da tese desenvolvida por Gilmar Mendes naquela Corte.

Esta boa aceitação da tese formulada pelo Ministro Gilmar Mendes, que, lembre-se, leva à impossibilidade de prisão de qualquer espécie de depositário infiel, vem sendo confirmada em outros julgamentos, ainda mais recentes do STF. Chama a atenção o fato de que a 1ª Turma do STF, a partir do julgamento do RHC nº 90.759-MG, no qual estava em jogo (assim como no HC 90.172-SP, muito embora naquela oportunidade este fato não tenha sido levado em consideração) decidiu permanecer possível a prisão de um depositário infiel que se tornara devedor não por disposição contratual, mas sim por determinação judicial [25]. Ou seja, como acontece rotineiramente na execução de decisões judiciais, após efetuada a penhora de bens suficientes para a garantia do débito, o paciente fora nomeado, pelo juízo da execução, fiel depositário dos mesmos, os quais, por sua vez, não foram encontrados posteriormente.

Neste segundo caso, aquele órgão fracionário do STF julgou necessário fazer a distinção entre o depósito judicial e o depósito convencional. O relator, Min. Ricardo Lewandowski, salienta que, no primeiro caso, por se tratar de depósito necessário, mesmo que o STF venha a adotar a posição já prevalecente no RE 466.343-SP, a prisão civil permaneceria possível. De acordo com o seu voto, "O depósito judicial, enquanto obrigação legal e que, nesses termos, estabelece relação típica de direito público e de caráter processual entre o juízo da execução e o depositário judicial dos bens penhorados, permite a prisão civil" [26] (grifou-se).

Durante os debates que se seguiram ao voto do ministro Relator, o Ministro Marco Aurélio reafirmou sua posição de que após a ratificação do Pacto de São José da Costa Rica a prisão civil do depositário infiel não tem mais lugar no nosso ordenamento jurídico. Mas a Ministra Cármen Lúcia voltou a chamar a atenção para o fato de se tratar de uma circunstância diferente, ao afirmar que "O caso dele tem um diferencial por ser um depósito judicial, porque, quanto aos outros, realmente eu acompanharia o Ministro Marco Aurélio. Mas aqui a única coisa que me toma com um cuidado especial é a circunstância de ser um depósito determinado judicialmente. Então, a relação muda em referência a qualquer outro tipo de depósito que possa ser considerado e até de depósito que pudesse ser submetido" [27] (grifou-se). E, com base neste argumento, a Min. Cármen Lúcia acompanhou o relator do caso, afirmando ser possível a prisão civil do depositário necessário apenas.

O mesmo entendimento foi aplicado no HC 92.514--RS, também da lavra da 1ª Turma. Ocorre, no entanto, que o plenário do STF não referendou a distinção feita entre depósito necessário e depósito convencional. Isto se deu na análise de Questão de Ordem levantada no HC 94.307-RS, quando o Plenário do STF deferiu o pedido de liberação cautelar formulado, alegando a existência de vários votos favoráveis à tese da paciente no julgamento do RE 466.343. [28] Note-se que os Ministros Ricardo Lewandowsi e Cármen Lúcia, defensores da necessidade de se distinguir as espécies de depósito para fins de possibilidade da prisão, não estavam presentes à sessão. Nada obstante, os seis Ministros que participaram do julgamento votaram pelo deferimento da ordem, nos termos propostos pelo Relator, Ministro Cezar Peluso. Com isso, confirma-se a impressão de que a tese do Ministro Gilmar Mendes (que, ao lado do voto do Ministro Celso de Mello, acarreta a impossibilidade de prisão de qualquer espécie de depositário infiel) deverá mesmo prevalecer ao final do julgamento do RE 466.343.


5. Conclusão

Teme-se que a conclusão a ser apresentada neste breve estudo possa ser um tanto frustrante para o leitor. Diante de tamanha indefinição, o que se quis foi apenas desfazer um pouco da confusão e apontar possíveis soluções para a questão. No estado atual de coisas, é possível afirmar que:

I- o STF provavelmente deixará de considerar possível a prisão civil do depositário infiel por equiparação, ou seja, do devedor fiduciário artificialmente considerado como depositário por força do Decreto-Lei nº 911/69;

II- é possível que o STF, caso decida nos termos propostos pelo ministro Gilmar Mendes, venha a considerar impossível a prisão não apenas do depositário infiel por equiparação, mas também a do depositário infiel típico, sob o argumento de que tratados internacionais sobre direitos humanos (como o Pacto de São José da Costa Rica) possuem hierarquia supralegal;

III- neste último caso, dois ministros do STF, Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski, defenderam a necessidade de se diferenciar o depositário convencional do depositário necessário, sendo impossível a prisão deste, mas admitida a restrição da liberdade do primeiro. O Plenário, no entanto, não referendou este posicionamento, o que indica uma boa aceitação dos votos dos Ministros Gilmar Mendes e Celso de Mello, acima referidos.

Como se vê, há mais dúvidas do que certezas. Espera-se, apenas, que se tenha contribuído para saber que dúvidas são essas e quais os caminhos a serem trilhados.


Notas

1.                  Decreto-Lei 911/69, art. 4º: "Se o bem alienado fiduciariamente não for encontrado ou não se achar na posse do devedor, o credor poderá requerer a conversão do pedido de busca e apreensão, nos mesmos autos, em ação de depósito, na forma prevista no Capítulo II, do Título I, do Livro IV, do Código de Processo Civil".

2.                  Código Civil, art. 627: "Pelo contrato de depósito recebe o depositário um objeto móvel, para guardar, até que o depositante o reclame.

3.                  PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil, vol. III. Rio de Janeiro: Forense, 2003, pp. 359 e segs.

4.                  Idem, p. 578.

5.                  Rosália Monteiro Figueira aponta ter havido, inicialmente, divergência entre a 5ª e a 6ª Turmas do STJ, sendo que esta não admitia a prisão do devedor fiduciante e aquela sim, tendo prevalecido o entendimento da 6ª Turma. V. "A Prisão do depositário infiel no caso de alienação protegida pela cláusula de alienação fiduciária em face da Constituição Federal de 1988 e dos tratados internacionais", in DEL´OLMO, Florisbal de Souza. Curso de Direito Internacional Contemporâneo: Estudos em homenagem ao Prof. Dr. Luís Ivani de Amorim Araújo pelo seu 80º aniversário. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 595 e segs.

6.                  STJ, 4ª Turma, HC nº 36.871-DF, publicado no DJ de 13/12/2004.

7.                  STJ, Corte Especial, ERESP nº 149.518-GO, publicado no DJ de 28/02/2000.

8.                  Em pesquisa de jurisprudência no sítio do STF, comprova-se que desde a promulgação do Decreto-Lei nº 911/69 aquele tribunal adotou entendimento admitindo a equiparação realizada entre alienação fiduciária em garantia e depósito. V., a respeito, RE 73.220-DF, HC 51.186-SP, RHC 51.934-AL, HC 51.969-SP, entre outros julgados, todos da década de 1970. Destaca-se o resultado do julgamento proferido no RE 69.404-SP, relatado pelo Min. Aliomar Baleeiro, que inadmitiu o recurso por reconhecer que a impossibilidade de equiparação do adquirente fiduciário ao depositário infiel, com base na natureza de cada um dos contratos, consiste em interpretação razoável da lei, realizada pelo tribunal recorrido.

9.                  STF, RE 466.343, divulgado no Informativo STF nº 449.

10.              CPC, art. 904, parágrafo único: "Não sendo cumprido o mandado [de restituição da coisa depositada], o juiz decretará a prisão do depositário infiel".

11.              Entre outros, podem ser citados Antônio Augusto Cançado Trindade, Celso Mello, Flávia Piovesan e Valério Mazzuoli. Conferir, por todos, o brilhante artigo do saudoso professor MELLO, Celso Renato Duvivier de Albuquerque. "O 2ºdo art. 5º da Constituição Federal", in TORRES, Ricardo Lobo (Org.). Teoria dos Direitos Fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 1-33.

12.              Sobre o regime imposto às leis restritivas de direitos fundamentais, v. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 6ª edição. Coimbra: Almedina, 2002, pp. 448-467.

13.              V., a respeito, SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais, 7ª edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, pp. 167-177 e SARMENTO, Daniel. "A Dimensão Objetiva dos Direitos Fundamentais: Fragmentos de uma Teoria", in SAMPAIO, José Adércio Leite. Jurisdição Constitucional e Direitos Fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, pp. 279-294.

14.              Um exemplo singelo, mas ilustrativo, refere-se à lei nº 9.534/97, que estabeleceu a gratuidade das certidões de nascimento e de óbito a todos, não obstante a Constituição, em seu art. 5º, LXXVI, assegurar apenas aos reconhecidamente pobres tal direito. Seria correto dizer que, ao estender a gratuidade a todos, e não apenas aos pobres, o legislador ordinário incorreu em inconstitucionalidade? Parece que não, justamente porque o objetivo da norma contida no art. 5º é facilitar o acesso a tais documentos, imprescindíveis ao exercício da cidadania, e não restringi-lo. Este foi, também, o entendimento do STF (ADI nº 1.800 e ADC nº 5).

15.              A se aplicar o entendimento do Ministro Moreira Alves ao exemplo acima citado, seria possível chegar-se à conclusão de que a Lei nº 9.534/97 é inconstitucional, uma vez que o art. 5º, LXXVII conferiria um direito fundamental aos titulares de cartórios consistente no fato de que somente os reconhecidamente pobres teriam direito a certidões de nascimento e de óbito gratuitamente, enquanto os demais seriam obrigados a pagar por tais documentos, o que não parece nada razoável.

16.              Conferir, especialmente, SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais, 7ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 43 e segs.

17.              Sobre o tema, v., especialmente, os relevantes trabalhos de SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004 e SILVA, Virgílio Afonso da. A Constitucionalização do Direito: Os Direitos Fundamentais nas Relações entre os Particulares. São Paulo: Malheiros, 2005.

18.              CRFB, art. 5º, § 3º: "Os tratados e convenções internacionais que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais".

19.              Valério Mazzuolli chega a defender a tese de que o § 3º do art. 5º, acrescentado pela EC 45/2004, é inconstitucional, justamente por esvaziar o § 2º. Ver, a respeito, MAZZULOI, Valério. "O novo § 3º do art. 5º da Constituição e sua eficácia", in Revista de Informação Legislativa, ª 42, n. 167, jul./set. 2005.

20.              STF, RE 466.343, voto-vista do Min. Gilmar Mendes, p. 11.

21.              Diversos argumentos são utilizados pelo Min. Gilmar Mendes em defesa desta tese. Em síntese, baseia-se na abertura cada vez maior dos Estados constitucionais a ordens jurídicas supranacionais de proteção aos direitos humanos, citando vários exemplos de direito estrangeiro, bem como em disposições da própria Constituição de 1988 que destacam o papel das normas de direito internacional, como o parágrafo único do art. 4º, o parágrafo 2º do art. 5º, e os parágrafos 3º e 4º do mesmo art. 5º, acrescentados pela Emenda Constitucional nº 45/2004. Aduz, ainda, ao fato de o art. 98 do Código Tributário Nacional ter adotado a supralegalidade dos tratados internacionais, e que não faria sentido admiti-la quanto a tratados de direito tributário e negá-la aos tratados de direitos humanos.

22.              Comunga deste entendimento o recém aposentado Ministro Sepúlveda Pertence, como revela seu interessante voto proferido no julgamento do RHC 79.785-RJ, em que se discutia a questão do duplo grau de jurisdição.

23.              STF, RE 466.343, voto-vista do Min. Gilmar Mendes, p. 11.

24.              STF, RE 466.343, voto do Ministro Celso de Mello.

25.              Código Civil, arts. 647 e seguintes.

26.              STF, RHC nº 90.759-MG, voto do min. Ricardo Lewandowski.

27.              STF, RHC nº 90.759-MG, voto da min. Cármen Lúcia.

28.              STF, HC-QO 94.307-RS.

 

 

* Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC Rio. Professor de Direito Constitucional da Universidade Estácio de Sá

 

 

Disponível em:

http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10857

Acesso em: 08 out. 2008.