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PRINCÍPIO DA CONFIANÇA NO DIREITO PENAL

André Luís Callegari
Advogado, Doutorando em Direito Penal pela
Universidad Autónoma de Madrid Professor
de Direito Penal na Escola Superior do Ministério Público (RS)
Professor de Direito Penal na na Escola Superior da Magistratura (RS)

Introdução
 
 

Em determinados âmbitos sociais o perigo ou a lesividade de certas condutas assumidas pelo ordenamento jurídico depende não só da pessoa que as realiza, senão também do comportamento de outras pessoas (1). Por exemplo, o perigo derivado de conduzir um automóvel não depende só de como o motorista dirija, senão de como se comportem os outros participantes no tráfego viário.

O princípio da confiança significa que, apesar da experiência de que outras pessoas cometem erros, se autoriza a confiar - numa medida ainda por determinar - em seu comportamento correto (entendendo-o não como acontecimento psíquico, senão como estar permitido confiar) (2). Exemplo: "A", conduzindo o seu carro, atravessa um cruzamento com o semáforo verde, sem tomar medida alguma de precaução para o caso de que algum automóvel que circule na outra direção não respeite o semáforo vermelho que proíbe sua passagem. "B" desrespeita o semáforo vermelho e colide com o carro de "A", resultando a morte de "B". Este resultado não se imputa a "A" objetivamente pelo efeito do princípio da confiança. Isso é assim porque não se pode imaginar que todo motorista tenha que dirigir seu carro pensando continuamente que o resto dos participantes no trânsito possam cometer imprudências ou que existam crianças ou idosos frente aos quais se deve observar um maior cuidado; se fosse assim, as vantagens que o tráfego rodado nos oferece seriam bastante escassas (3).

De acordo com este princípio, o sujeito que realiza uma atividade arriscada, em princípio lícita, pode confiar que quem participa junto com ele na mesma atividade se comportará corretamente - de acordo com as regras existentes - enquanto não existam indícios de que isto não será assim (4). Stratenwerth afirma que, por regra geral, não se responde pela falta de cuidado alheia, senão que se pode confiar que todos cumprirão com seus deveres de cuidado (5).

Não obstante, ainda que desenvolvido para o trânsito, o princípio da confiança pode-se aplicar em todas aquelas atividades em que concorrem distintas condutas perigosas numa mesma situação. O princípio da confiança manifesta sua eficácia naqueles casos em que, com a atuação infratora de um sujeito, se misturam outros participantes na atividade de que se trate, que se encontram imersos no mesmo perigo criado pela infração (6).

Nos casos em que tem aplicação o princípio da confiança, deve-se levar em conta que o cuidado não está relacionado com um risco natural, senão com o comportamento de uma pessoa livre e responsável. Por exemplo, não devemos ter o mesmo cuidado com um pedestre menor de idade que com um pedestre maior de idade e responsável (7). O fundamento da impunidade está mais relacionado com certas conseqüências do princípio da culpabilidade e com certos princípios básicos de organização social: ninguém pode ser responsável por um fato alheio (8). Se imputamos um fato a uma pessoa que se comporta de forma cuidadosa, só porque outro se comportou de forma defeituosa, não se estaria reprovando um injusto próprio, senão um injusto alheio. E, tal modelo de imputação infringe, sem qualquer dúvida, o princípio da culpabilidade (9).

Em princípio, todos podemos confiar que os outros cidadãos se comportarão respeitando as normas, já que isto está garantido pelo Direito, a não ser que existam evidências em sentido contrário (10). Partir de uma sociedade de desconfiança em que se propusesse o contrário - a disposição permanente a infringir as normas por parte dos outros cidadãos - seria atentar contra a idéia do Direito como ordem vinculante nas relações sociais. O princípio da desconfiança conduz ao contra-senso de que o Direito se desautorize a si mesmo como sistema regulador de condutas vinculantes para todos os cidadãos (11).

No exemplo de Feijoó Sanchez, numa sociedade em que primasse a desconfiança e o legislador suspeitasse sempre das pessoas como infratoras das normas, nem sequer se poderia aceitar uma atividade como o tráfego viário, por supor uma oportunidade para que os cidadãos se comportem de forma defeituosa e lesionem antijuridicamente bens jurídicos (12).

Com efeito, no campo do Direito Penal o princípio da confiança tem uma função concreta: delimitar o alcance da norma de cuidado, determinando os limites do dever de cuidado, atenção ou diligência com respeito à atuação de terceiras pessoas. Referido princípio tem seu fundamento no princípio de auto-responsabilidade que provoca a delimitação de âmbitos de organização e responsabilidade e tem como conseqüência a determinação da confiança permitida - que não incorre em descuido ou temeridade - com respeito ao comportamento correto de outras pessoas (13).

Nesse passo, a extensão de contatos sociais de caráter anônimo e a divisão de trabalho fizeram com que a problemática da confiança e seus limites estejam presentes em todo momento na vida social, tanto em sua vertente profissional como privada (14). O princípio da confiança é um instituto que serve para determinar os deveres de cuidado que tem que ver com terceiras pessoas e que opera como limite objetivo ou normativo da responsabilidade penal por imprudência (especialmente da "previsibilidade objetiva") (15). Tal princípio tem como conseqüência prática que a pessoa que se comporta adequadamente não tem que contar com que sua conduta possa produzir um resultado típico devido ao comportamento antijurídico de outro, ainda que desde um ponto de vista psicológico fosse previsível dada a habitualidade desse tipo de condutas (16).

Assim que não se pode exigir a previsão de tudo o que é possível prever ou de tudo o que uma pessoa extraordinariamente cuidadosa e diligente poderia prever ("previsibilidade objetiva do resultado") (17). Portanto, nos casos em que o autor atua dentro dos limites impostos pelo ordenamento vigente, é dizer, com a diligência exigida, ainda que se produza um resultado, este não poderá ser imputado ao autor.

Em outras palavras, dito resultado não ingressará na esfera da tipicidade penal.

Notas:

(1) Feijoó Sanchez, Bernardo, "Homicidio y Lesiones Imprudentes: Requisitos y Límites Materiales, Editorial Edijus, 1999, pp. 225/226.
(2) Jakobs, Günther, "Derecho Penal, Parte General", tradução de Joaquin Cuello Contreras e José Luis Serrano Gonzales de Murillo, Marcial Pons, 1997, p. 253.
(3) Martinez Escamilla, Margarita, "La Imputación Objetiva del Resultado", Edersa, 1992, p. 336.
(4) Cancio Meliá, Manuel, "Conducta de la Víctima e Imputación Objetiva en Derecho Penal", J. M. Bosch Editor, 1998, p. 322; Bacigalupo, Enrique, "Principios de Derecho Penal, Parte General", 4ª ed., Akal, p. 191.
(5) AT I, 1155, em Cancio Meliá, Manuel, ob. cit., p. 322.
(6) Corcoy Bidasolo, Mirentxu, "El Delito Imprudente - Criterios de Imputación del Resultado", PPU, 1989, p. 327.
(7)Feijoó Sanchez, Bernardo, pp. 227/228.
(8)Feijoó Sanchez, Bernardo, p. 228.
(9)Feijoó Sanchez, Bernardo, p. 228.
(10)Feijoó Sanchez, Bernardo, p. 228.
(11)Feijoó Sanchez, Bernardo, p. 228.
(12)Ob. cit., pp. 228/229.
(13)Feijoó Sanchez, Bernardo, pp. 229/230.
(14)Feijoó Sanchez, Bernardo, p. 230.
(15)Feijoó Sanchez, Bernardo, p. 230.
(16) Cerezo Mir, PG, II, p. 161; Reyes, "Imputación", pp. 143 e ss., em Feijoó Sanchez, Bernardo, p. 230.
(17) Feijoó Sanchez, Bernardo, p. 230.
 
 

retirado da internet:

 http://www.direitopenal.adv.br/artigo42.doc