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Sistema Penal Brasileiro: execução das penas no Brasil

Damásio E. de Jesus


"O Direito Penal brasileiro se encontra em péssimas condições, com respingos de poucas reações corajosas."


         O Direito Penal e o Processo Penal que conheci eram clássicos. Naquele tempo, por volta de 1956, os professores indicavam e adotavam as obras de Nélson Hungria, Magalhães Noronha, Bento de Faria, Basileu Garcia e Heleno Cláudio Fragoso. No Processo Penal, estudávamos em Walter Acosta e Espínola Filho. O Direito Penal, naquela época, tinha uma feição tutelar, fragmentária e de intervenção mínima. De acordo com os conceitos que aprendi naqueles manuais, a norma penal incriminadora visa a proteger os bens jurídicos fundamentais da sociedade. Não, porém, de forma absoluta. Resguarda somente os bens considerados os mais relevantes, como a vida, a incolumidade física, a honra, etc. E em relação aos interesses mais importantes, não os ampara de todas as condutas ofensivas, incriminando exclusivamente as de maior gravidade. Esse caráter fragmentário do Direito Penal o conduz ao seu âmbito de incidência. Pretende-se que seja de intervenção mínima e subsidiária, cedendo às outras disciplinas legais, como o Direito Civil, o Comercial, o Administrativo, etc.

         A tutela imediata dos valores primordiais da convivência humana, atuando somente em último caso (ultima ratio). Dadas as suas características, só deve agir quando os demais ramos do direito, os controles formais e sociais tenham perdido a eficácia e não sejam capazes de exercer essa tutela (Nilo Batista, Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro, Rio de Janeiro, Editora Revan, 1990, pág. 84).

         Tivemos, entretanto, no final deste século e milênio, a introdução de um novo Direito Penal brasileiro, já atuante em outros países: simbólico, promocional, excessivamente intervencionista e preventivo, com fundamento na infusão do medo na população e na sugestão da suposta garantia da tranquilidade social. A difusão incontrolada de fatos aterradores, como latrocínios, estupros, homicídios, chacinas, etc. produz na população uma sensação de total insegurança. Valem-se disso os partidários do Movimento de Lei e Ordem, advogando medidas repressivas de extrema severidade.

         Preventivo, o Direito Penal de hoje descreve normas incriminadoras relacionadas a um sem-número de setores da atividade humana, pouco importando a natureza do fato, seja eleitoral, ambiental, referente ao consumo, Informática, etc. Atribui-se-lhe a tarefa de disciplinar os conflitos antes mesmo de serem regulamentados pelas disciplinas próprias dessas áreas. Com isso, perde o caráter de intervenção mínima e última, adquirindo natureza de um conjunto de normas de atuação primária e imediata. A sanção penal, por força disso, passa a ser considerada pelo legislador como indispensável para a solução de todos os conflitos sociais (Alberto Silva Franco, Crimes Hediondos, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 3ª ed., 1994, pág. 36 e nota 4). É o remédio para todos os males. Os políticos, como não têm projetos de impacto na área econômica e social, bandeiam-se para os lados do Direito Penal e Processual Penal, pugnando por medidas repressivas cada vez mais severas. Não é raro encontrarmos sobre o mesmo tema uma dúzia de projetos de leis, todos com o mesmo formato: repressivo e aterrador.

         Essa nova fisionomia da legislação criminal brasileira produz efeitos negativos. A natureza simbólica e promocional das normas penais incriminadoras, num primeiro plano, transforma o Direito Penal na mão avançada de correntes extremistas de Política Criminal. É o que está acontecendo no Brasil, onde movimentos de opinião partidária do princípio de lei e ordem pressionam o Congresso a elaborar leis penais cada vez mais severas. Sob outro aspecto, esse movimento faz com que o Direito Penal e o Direto Processual Penal percam a forma. Quanto ao estatuto penal, os tipos passam a ser descritos com a inclusão de normas elásticas e genéricas, enfraquecendo os princípios da legalidade e da tipicidade. Novas leis são incessantemente editadas, o que Juary C. Silva denomina "inflação legislativa" (A Macrocriminalidade, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1980, pág. 259) e Alberto Zacharias Toron, "esquizofrenia legislativa". Entram em vigor, "na mesma data de sua publicação", leis a granel, umas sobre outras, malfeitas, sem técnica, formando um emaranhado confuso e contraditório. No campo do processo penal, encurta-se a distância entre a investigação e o procedimento instrutório, desaparecendo o limite entre as fases investigatória e judicial. É o que acontece na vigência da Lei nº 9.034/95 (Lei do Crime Organizado), que, no art. 2º, regula meios de prova e procedimentos investigatórios "em qualquer fase de persecução criminal".

         É o império do "Movimento de Lei e Ordem", responsável pela perda da finalidade precípua do Direito Penal e da atuação disforme do Direito Processual Penal.

A pena passa a ser exclusivamente castigo e retribuição. Exemplo desse caráter retributivo da pena se encontra no art. 59 do Código Penal, que, disciplinando a individualização judiciária, determina sua dosagem de acordo com o que seja "necessário" para a "reprovação do crime". Mantém-se a reprimenda como castigo e expiação.

         A pena, segundo os princípios de lei e ordem, deve ser severa e duradoura. Foi o que ocorreu com a Lei dos Crimes Hediondos, que agravou as penas dos crimes de estupro, atentado violento ao pudor, latrocínio, etc. (art. 6º da Lei nº 8.082, de 25 de julho de 1990).

A execução da pena criminal, para a lei e ordem, deve ser de extrema severidade. A Lei dos Crimes Hediondos, atendendo a esse discurso, determinou o cumprimento da pena privativa de liberdade, nos crimes que considerou, em estabelecimentos penais de segurança máxima (art. 3º), proibindo a progressão nos regimes (art. 2º, § 1º).

         A prisão provisória, segundo os ditames de lei e ordem, deve ser ampliada. Nesse campo, a Lei dos Crimes Hediondos proibiu a fiança e a liberdade provisória (art. 2º, II), tendo ampliado o prazo da prisão temporária (art. 2º, § 3º). E a Lei do Crime Organizado, além de também impedir a liberdade provisória (art. 7º), fixou o seu termo máximo em cento e oitenta dias (art. 8º). Na fase recursal, proibiu a apelação em liberdade (art. 9º).

         O juiz, na fase de individualização e execução da pena, nos termos dos considerandos do Movimento de Lei e Ordem, deve ter menor poder. Durante o cumprimento da pena o controle deve ficar a cargo, quase que exclusivamente, das autoridades penitenciárias. Nesse aspecto, a Lei dos Crimes Hediondos impediu a individualização judicial na fase de cumprimento da pena, proibindo a progressão executória para regime menos rígido (art. 2º, § 1º), o mesmo ocorrendo com a Lei do Crime Organizado (art. 9º da Lei nº 9.034/95).

         Um dos princípios do "Movimento de Lei e Ordem" separa a sociedade em dois grupos: o primeiro, composto de pessoas de bem, merecedoras de proteção legal; o segundo, de homens maus, os delinquentes, aos quais se endereça toda a rudeza e severidade da lei penal. Adotando essas regras, o Projeto Alternativo alemão de 1966 dizia que a pena criminal era "uma amarga necessidade numa comunidade de seres imperfeitos". É o que está acontecendo no Brasil. Cristalizou-se o pensamento de que o Direito Penal pode resolver todos os males que afligem os homens bons, exigindo-se a definição de novos delitos e o agravamento das penas cominadas aos já descritos, tendo como destinatários os homens maus (criminosos). Para tanto, os meios de comunicação tiveram grande influência (Raul Cervini, Incidencia de la "mass media" en la expansión del control penal en Latinoamérica, Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1994, 5: 36), dando enorme valor aos delitos de maior gravidade, como assaltos, latrocínios, sequestros, homicídios, estupros, etc. A insistência do noticiário desses crimes criou a síndrome da vitimização. A população passou a crer que a qualquer momento o cidadão poderia ser vítima de um ataque criminoso, gerando a idéia da urgente necessidade da agravação das penas e da definição de novos tipos penais, garantindo-lhe a tranquilidade. E essa pressão alcançou os legisladores.

         Da aceitação dos princípios do "Movimento de Lei e Ordem" temos como exemplos recentes a Lei dos Crimes Hediondos e a Lei do Crime Organizado, respectivamente, Lei nº 8.072/90 e Lei nº 9.034/95.

         A Lei nº 8.072/90, com fundamento no Direito Penal simbólico, ao tempo do crescimento entre nós da prática do crime de extorsão mediante sequestro, resultou da pressão social sobre o fenômeno, derivando o agravamento da pena e o tratamento severo dos delinquentes, como a proibição da prisão provisória, graça e anistia, imposição do cumprimento integral da pena em regime fechado, restrição ao livramento condicional, etc. Isso causou um descompasso entre os delitos por ela tratados e os outros crimes, regidos ainda pelo Direito Penal clássico.

         Em 1994, por causa do homicídio de uma artista de televisão e da chacina de menores delinquentes por grupos extremistas, o legislador brasileiro editou a Lei nº 8.930, de 7 de setembro, incluindo no rol dos crimes hediondos o homicídio simples cometido em ação típica de grupo de extermínio e o homicídio qualificado. De péssima redação, o texto apresenta enorme dificuldade de interpretação.

         A Lei do Crime Organizado constitui nosso mais recente exemplo de normas simbólicas e promocionais. A Lei nº 9.034, de 3 de maio de 1995, que na verdade não trata do fenômeno do crime organizado e, sim, disciplina a produção de prova e procedimentos investigatórios, permite o "flagrante esperado retardado" em face de mera "suposição" da autoridade policial da existência de atividade criminosa de quadrilha ou bando (art. 2º, II). Não se exige nem indícios de autoria e materialidade do crime para o início das investigações. Além disso, desconhecendo nosso processo penal acusatório, atribui ao juiz a missão de pessoalmente colher provas, previsão de atuação judicial absurda e inconstitucional, estreitando os limites entre as fases de investigação criminal e de instrução processual.

         E esse pensamento tem chegado à jurisprudência, que tem admitido, nos delitos societários, o recebimento da denúncia carente de descrição da conduta dos acusados, bastando a narração genérica do fato (Supremo Tribunal Federal, Revista Trimestral de Jurisprudência, 101:563 e 114:228; Superior Tribunal de Justiça, Habeas Corpus 3.335, 5ª Turma, DJ 07.08.95, pág. 23050). Transforma-se a instrução criminal em procedimento de coleta de dados, tornando tênue o limite entre a fase investigatória e a judicial instrutória, orientação muito nos moldes da "lei e ordem".

         Enfrentamos a falsa crença de que somente se reduz a criminalidade com a definição de novos tipos penais, o agravamento das penas já cominadas, a supressão de garantias do acusado durante o processo e a acentuação da severidade da execução das sanções, posição mundialmente generalizada, como expõe Hassemer (Fundamentos del Derecho Penal, 1984, pág. 94). Na palavra de Luiz Flávio Gomes e Raúl Cervini, "duas vêm sendo as premissas básicas dessa política puramente repressiva no Brasil: a) incremento de penas (penalização); b) restrição ou supressão de garantias do acusado" (Crime organizado, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1995, pág. 28). A sanção detentiva é cominada para delitos de grande e de pequeno poder ofensivo, sendo de pouca aplicação as penas alternativas, de modo que encontramos cumprindo pena privativa de liberdade, muitas vezes sem separação celular, infratores de intensa periculosidade e condenados que poderiam estar submetidos a medidas sancionatórias não-detentivas.

         Hoje, está desacreditada a idéia de que o delito é um comportamento anormal do homem e, por isso, deve ser combatido com princípios rígidos da lei da ordem. Nos tempos modernos, considera-se o crime como uma atitude, infelizmente, "normal", atingindo a humanidade de forma integral no tempo e no espaço, nos planos horizontal e vertical. O delito sempre existiu e sempre existirá. Ocorre em todos os países, em todas as civilizações, sejam quais forem os seus costumes, alargando-se no campo horizontal, tendo o dom da ubiquidade. Na vertical, praticado por homens bons e maus, atinge todas as camadas sociais, do mais humilde agrupamento humano ao mais desenvolvido socialmente. É impossível extingui-lo. Isso não quer dizer que o aceitamos. Pode-se, entretanto, reduzi-lo a níveis razoáveis e toleráveis (Antonio Garcia – Pablos de Molina, La prevención del delito en um estado social y democrático de derecho, in Estudios penales y criminológicos, 15:183 e ss.).

         O Direito Penal brasileiro se apresenta em péssimas condições, com respingos de poucas reações corajosas em alguns setores. O Governo Federal, que em alguns momentos parece claramente intencionado no sentido de impor um sistema criminal moderno e justo, outras vezes rende-se à pressão do movimento repressor. Incursionando no rumo da "Corrente de Lei e Ordem", a legislação criminal está colhendo o fracasso dos frutos de seus princípios. Além de não conseguir baixar a criminalidade a índices razóaveis, gerou a sensação popular da impunidade, a morosidade da justiça criminal e o grave problema penitenciário. O Processo Penal, que o executa, segue-lhe os passos: confuso e casuísta, não é aplicado de modo a tornar célere a resposta penal. Suas disposições mais severas, por falta de suporte estrutural, não são aplicadas, enquanto o juízes, acertadamente, fazem largo uso das que contêm benefícios. Na maioria das vezes para impedir que o réu ou condenado enfrente um sistema prisional desumano. O resultado é uma descrença total na Justiça: esta não funciona e, quando o faz morosamente, tropeça na falta de recursos, mau pagamento de seus funcionários, etc.

         A pena privativa de liberdade, como sanção principal e de aplicação genérica, está falida (Cézar Roberto Bitencourt, Falência da Pena de Prisão, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1993). Manoel Pedro Pimentel, em 1977, já dizia que nesse campo "nosso insucesso é total" (O Estado de S. Paulo, edição de 1º de julho de 1977, declaração recordada e mencionada por Virgílio Donnici, A criminalidade no Brasil, Rio de Janeiro, Editora Forense, 1984, pág. 98). Urge que a prisão seja imposta somente em relação aos crimes graves e aos delinquentes de intensa periculosidade. Nos outros casos, deve ser substituída pelas medidas e penas alternativas e restritivas de direitos, como multa, prestação de serviço à comunidade, limitação de fim de semana, interdições de direitos, sursis, etc. (Jason Albergaria, Das penas e da Execução Penal, Belo Horizonte, Del Rey, 1995, pág. 38, 5.3). A aplicação irrestrita da pena de prisão e seu agravamento, como vem acontecendo no Brasil, não reduzem a criminalidade. Prova disso é que não conseguimos diminuí-la após o advento da Lei dos Crimes Hediondos e da Lei nº 8.930/94, esta incluindo algumas formas de homicídio no rol da Lei nº 8.072/90. Em outro plano, a imposição da pena privativa de liberdade sem um sistema penitenciário adequado gera a superpopulação carcerária, de gravíssimas consequências, como temos visto nas sucessivas rebeliões de presos, fenômeno que vem ocorrendo em todos os países.

         Essa é a posição das Nações Unidas e que deverá constituir o rumo do legislador penal no próximo milênio. No 9º Congresso da ONU sobre Prevenção do Crime e Tratamento do Delinquente, realizado no Cairo (abril-maio de 1995), recomendou-se a utilização da pena detentiva em último caso, somente nas hipóteses de crimes graves e de condenados de intensa periculosidade; para outros delitos e criminosos de menor intensidade delinquencial, medidas e penas alternativas. A orientação não é nova. As Resoluções nºs 8 e 10 do 6º Congresso da ONU (Caracas, 1980), em caráter prioritário, encareceram a urgência dessas medidas. E a Resolução nº 1/83 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (Brasil) recomendou a aplicação daquelas duas Resoluções. Com isso, desafoga-se a Justiça e o sistema penitenciário, podendo aquela tratar com mais cuidado dos delitos mais graves. Desta forma, restaura-se o valor preventivo da justiça penal e da sanção criminal. Nesse congresso, ao qual comparecemos como representante brasileiro, tomamos conhecimento durante quase duas semanas de dezenas de depoimentos dos 1.600 delegados de 160 países a respeito do fracasso da pena de prisão. E os documentos que nos foram distribuídos são no mesmo sentido: a cadeia fracassou, devendo ser reservada para casos especiais. Dado importante está nas estatísticas: a reincidência é maior em relação aos condenados que cumpriram pena privativa de liberdade; menor, no tocante aos submetidos a medidas alternativas, como o sursis e a probation, ou a penas substitutivas ou alternativas, como a prestação de serviço à comunidade, que tem a preferência da comunidade mundial. E essas informações não constituem novidade. Há duas décadas que nos Estados Unidos a reincidência do egresso prisional varia de 40 a 80%; na Espanha, chega a 60% (Cézar Roberto Bitencourt, op. cit., pág. 149). No tocante a quem cumpriu pena ou medida alternativa, como o sursis, a reincidência não supera 25%.

         É, pois, crença errônea, arraigada na consciência do povo brasileiro, a de que somente a prisão configura a resposta penal. A pena privativa de liberdade, quando aplicada genericamente a crimes graves e leves, só intensifica o drama carcerário e não reduz a criminalidade. Com uma agravante: a precariedade dos estabelecimentos prisionais no Brasil, permitindo a convivência forçada de pessoas de caráter e personalidade diferentes. Por isso, como diz Raul Eugênio Zaffaroni, "devemos estar convencidos de que a pena privativa de liberdade é o recurso extremo com que conta o Estado para defender seus habitantes das condutas antijurídicas de outros" (Política Criminal Latinoamericana, Buenos Aires, Editorial Hammurabi,1982, pág. 29, d).

         No próximo milênio, a sociedade que nos tem ouvido, porém não nos dá a devida atenção, afinal entenderá que o sistema criminal em que o Brasil tem insistido por mais de meio século deve ser abandonado, que o Direito Penal e o Processo Penal possuem a missão de preservar os direitos mais relevantes do homem, e não de resolver todos os problemas sociais. Nesse tempo, viveremos mais em paz e o Direito Criminal terá alcançado a sua meta.
 
 

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Procurador de Justiça aposentado do Estado de São Paulo.

Retirado de: http://www.angelfire.com/ok/vladimedeiros/jus.html