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A OBRIGAÇÃO DE COMUNICAR OPERAÇÕES SUSPEITAS

 

Abel Fernandes Gomes

Especialista em Direito Penal

Integrante da Comissão do Conselho da Justiça Federal para Estudos Sobre o Crime de Lavagem de Dinheiro

Juiz Titular da 5ª Vara Federal Criminal – RJ

 

  1. Introdução.

 

  Com o advento da Lei n. 9.613, de 03 de março de 1998, surgiram no cenário legislativo nacional uma série de obrigações, atribuídas às pessoas físicas e jurídicas que atuam em determinadas áreas econômicas, ou que praticam determinados atos econômicos, as quais se lhes passaram a impor sob pena de sanções administrativas.

 

  Estas obrigações, derivam de compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, e que agora devem ser implementados em âmbito nacional.

 

  O que ora importa analisar, são as origens e fundamentos dessas obrigações, com enfoque específico naquela que impõe a comunicação de operações suspeitas de comportarem atos de lavagem de dinheiro, às autoridades competentes.

 

Para isso, passaremos à abordagem de alguns dos principais aspectos do tema, tais como a elaboração das relações de operações suspeitas, a cargo dos órgãos administrativos próprios, aos quais deverão ser comunicadas as referidas operações; o dever de comunicação das operações suspeitas em face do sigilo que se recomenda guardar em relação às mesmas e, finalmente, o alcance das sanções aplicáveis em caso de descumprimento dessas obrigações pelas pessoas enumeradas no art. 9º da Lei n. 9.613/98.

 

2. Origem da obrigação de comunicar operações suspeitas.

 

O Brasil ratificou a Convenção das Nações Unidas de Viena Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, de 20 dezembro de 1988, por intermédio do Decreto n. 154, de 26 de junho de 1991, por sua vez aprovado pelo Decreto Legislativo n. 162, de 14 de junho de 1991, a qual estipula que cada País subscritor, dentro dos limites dos princípios e regras de seu Direito interno, adotará as providências necessárias para a tipificação das diversas condutas que representam o crime de “lavagem de dinheiro”, assim como as medidas para seu efetivo combate.

 

Desse modo, a Lei n. 9.613, de 03 de março de 1998, representa, tal como consta expresso no item 08 da sua Exposição de Motivos, a efetivação da “execução nacional de compromissos internacionais assumidos”.

 

No caso específico do dever de comunicação de operações e transações suspeitas, às autoridades competentes, com sua recente aprovação como membro efetivo do Grupo de Ação Financeira sobre Lavagem de Dinheiro (GAFI), o Brasil ainda está sujeito à manutenção do cumprimento das recomendações do referido GAFI sobre a “lavagem de dinheiro”.

 

Dentre estas recomendações, estão aquelas que são destinadas às instituições financeiras e não financeiras, e que estão diretamente ligadas ao dever de identificar, manter registros e comunicar às autoridades competentes nacionais, as operações e transações suspeitas de constituírem uma das etapas da “lavagem de dinheiro” (Recomendação n. 15).   

 

3. A obrigação de comunicar na Lei n. 9.613 de 03/03/98.

 

Já na sistemática da Lei n. 9.613/98, a obrigação de comunicar está inserida dentro daquilo que se constituiu no regime administrativo do combate à lavagem de dinheiro.

 

Este regime lança o seu enfoque no trânsito dos recursos pelos setores da economia, recursos esses obtidos ilicitamente, e cuja origem se quer dissimular ou ocultar.

 

As ações características deste regime consistem em procedimentos ou estratégias para dificultar o encobrimento da origem dos recursos, e permitir o trabalho da investigação criminal

 

Para a efetivação destas ações, surge a idéia de ação compartilhada entre o Estado e os particulares, estes últimos identificados nos diversos setores da economia.

 

  No caso na Lei n. 9.613/98, o seu art. 9º enumera as pessoas jurídicas e físicas, cujas atividades econômicas estão, numa primeira análise, suscetíveis à utilização para a “lavagem de dinheiro”.

 

  Estas atividades vão desde a captação, intermediação e aplicação de recursos financeiros, até a comercialização de objetos de arte. É um rol taxativo a princípio, mas que pode e deve ser ampliado por meio de subseqüentes alterações legislativas, para atualizar estas atividades de acordo com a evolução da criminalidade específica da qual se trata.

 

Essas pessoas, segundo o art. 10, incisos I e II, da Lei n. 9.613/98, estão obrigadas, inicialmente, a identificar e cadastrar seus clientes, bem como registrar as transações realizadas em moeda nacional ou estrangeira, títulos e valores mobiliários, títulos de crédito, metais, ou qualquer ativo passível de ser convertido em dinheiro, que ultrapassem limites fixados pelas autoridades competentes. Esses cadastros e registros, conforme disposto no art. 10, § 2º, da Lei n. 9.613/98, ainda deverão ser mantidos pelo prazo mínimo de 05 anos.

 

Já no tocante à obrigação  de comunicar, a Lei n. 9.613/98, em seu art. 11, inciso II, prevê duas hipóteses de comunicação obrigatória:

 

1ª) A das transações em moeda nacional e estrangeira, títulos de crédito, metais, ou qualquer ativo passível de ser convertido em dinheiro, que ultrapassar o valor fixado pela autoridade competente.

 

  2ª) A das propostas ou a realização de transações que constituírem sérios indícios dos crimes de lavagem de dinheiro ou a eles relacionados, a critério das autoridades competentes.

 

As autoridades competentes, a quem serão dirigidas as comunicações, são aqueles órgãos fiscalizadores e reguladores de atividades, tais como Banco Central, a Comissão de Valores Mobiliários, a Superintendência de Seguros Privados  (SUSEP), o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) etc.

 

  As operações suspeitas serão assim consideradas em razão das suas características: valores, partes envolvidas, forma e instrumentos de realização ou falta de fundamento econômico ou legal (art. 11, § 1º, da Lei 9.613/98).

 

  Seguindo as recomendações do GAFI, a Lei 9.613/98 também determina que não seja dada ciência desta comunicação ao cliente interessado, e exclui a responsabilidade civil e administrativa quando a comunicação é feita com boa-fé.

 

Em caso do descumprimento das obrigações dispostas no regime administrativo de combate à lavagem de dinheiro, aí incluído o dever de comunicar, objeto dessa análise, serão aplicadas sanções às pessoas jurídicas e aos seus administradores, cumulativamente ou não, e que consistem em: advertência; multa; inabilitação temporária até 10 anos para administrar, e cassação de autorização para operar ou funcionar na atividade.

 

Desse regime administrativo, previsto na nossa Lei nacional de combate à “lavagem de dinheiro”, surgem como objeto de reflexão alguns pontos bastante interessantes. São eles:

 

3.1. Fundamento da obrigação de comunicar, atribuída aos particulares.

 

O primeiro ponto que merece reflexão, é o que diz respeito ao fundamento dessa obrigação de comunicar, atribuída aos particulares, e inserida dentro de uma responsabilidade compartilhada com o Poder Público no combate à ”lavagem de dinheiro”.

 

Como se pode perceber, a obrigação de comunicar deriva da responsabilidade compartilhada no desempenho de ações de combate à “lavagem de dinheiro”, mas é oriunda, normativamente, de Convenção firmada pelo Brasil, e de recomendações do GAFI, mas tudo, como já se mencionou acima, sempre dentro de princípios e regras de direito interno.

 

Onde estaria, então, o fundamento dessa responsabilidade compartilhada e dessa obrigação de comunicar, no ordenamento jurídico brasileiro? Existe fundamento de legitimidade para esta responsabilidade que a Lei n. 9.613/98 criou para os particulares?

 

Para responder a essas perguntas, primeiramente impõe-se delimitar o objeto jurídico da tutela penal do crime de “lavagem de dinheiro”, para verificarmos se existe em relação a ele, uma mínima proximidade com as atividades das pessoas que passam a ter as obrigações de colaborar com o Estado nesse combate.

 

Afora as discussões sobre as diversas posições a respeito da existência ou não de um concreto bem jurídico tutelado nos crimes de “lavagem de dinheiro”, compreendemos, como alguns estudiosos do tema, que a administração da justiça é objeto jurídico dos crimes de “lavagem de dinheiro”, assim como também entendemos que o são as ordens econômica e financeira, naquilo em que, concretamente, visam atingir em benefício de toda a coletividade.

 

No segundo caso, trata-se de objetos e tarefas concretas, de cariz constitucional, que se vêem ameaçadas pela lesividade das condutas que constituem o crime de “lavagem de dinheiro”.

 

No concernente à administração da justiça, note-se que a “lavagem de dinheiro” atua em favor da impunidade do crime precedente, inclusive de seu incremento, vez que o dinheiro sujo obtido, uma vez reciclado, ainda é aplicado na acentuação da atividade ilícita, e, ademais, quando a “lavagem de dinheiro” transforma em lícito o proveito do crime, ainda inviabiliza a pretensão indenizatória da vítima, a restituição de valores desviados dos cofres públicos, e a perda do produto do crime em benefício da União, tudo isso identificado como finalidade da administração da justiça.

 

No referente ao segundo objeto jurídico, vemos que a “lavagem do dinheiro” afeta a segurança das relações que se processam através do sistema econômico e do sistema financeiro, em seus misteres de servirem ao bem de todos, ao direito de propriedade lícita e com função social, à livre concorrência, aos valores sociais do trabalho, ao planejamento econômico e ao investimento que também revertam em interesse da coletividade, dentre outras coisas.

 

Nesse segundo caso, os sistemas econômico e financeiro passam a ser utilizados em desacordo com os princípios insertos nos artigos 170 e 192 da Constituição da República, em episódios que desvirtuam totalmente sua função social, o que reclama das pessoas jurídicas que dele se valem, para desempenharem suas atividades e dele auferirem vantagens e lucro, uma postura que corresponda àquela vertente social e de interesse comum que também se exige que componha o seu perfil.

 

Sob o aspecto prático, considerando as características das condutas que constituem a “lavagem de dinheiro”, sua refinada especialidade, a clandestinidade, a sutileza e a complexidade, bem como os diversos meios e formas pelas quais são levadas a cabo, impossibilitando ao Estado manter funcionários com tantas e tão diversificadas formações técnicas, de prontidão e vigília, em todos os lugares em que podem ocorrer as transações econômicas ilícitas da “lavagem de dinheiro”, se faz necessária esta cooperação das pessoas jurídicas e físicas, especializadas nas várias áreas da atividade econômica de risco de ocorrência de “lavagem de dinheiro”.

 

O item 85 da Exposição de Motivos da Lei n. 9.613/98, ainda acena com o fundamento constitucional, contido no art. 144 da Constituição Federal, que prevê a segurança pública como um dever do estado e direito do cidadão, mas também como de responsabilidade de todos, aqui, especificamente, voltada para o aspecto da apuração das infrações penais.

 

Podemos, portanto, extrair desse enfoque, que a Constituição assegura às pessoas liberdade de iniciativa no empreendimento econômico, mas, dentro de um Estado Democrático de Direito, também impõe que esse empreendimento seja mantido dentro de parâmetros que se destinam a atender o bem comum.

 

Se a atividade econômica situa-se dentro do risco coletivo de servir à “lavagem de dinheiro”, sendo utilizada como instrumento para tão nocivo crime aos fins do Estado Democrático de Direito, e tendo em vista que  a própria apuração das infrações penais, como um dos aspectos da segurança pública, é também responsabilidade de todos os particulares, há de se concluir que, no caso, esta responsabilidade de cooperar com o Estado, a cargo daquelas pessoas que estão ligadas ao âmbito em que se projeta a tutela do bem jurídico, é muito mais justificada.

 

É preciso que os agentes envolvidos na prevenção e repressão dessa criminalidade, os operadores do Direito, as pessoas que desempenham atividade econômica com indicação de risco coletivo para a “lavagem de dinheiro”, e a sociedade em geral, compreendam duas coisas:

 

Primeira: Quando tratamos de atos voltados para a “lavagem de dinheiro”, não estamos mais diante daqueles exemplos tradicionais e simples que ouvimos nas aulas de Direito Penal do curso de graduação, sempre ligados aos crimes, hoje banais, e antes característicos daquilo que se pode apelidar de “era romântica da criminalidade”.

 

Para explicar essa mudança de paradigma, invocamos as ponderações que já escrevera NÉLSON HUNGRIA[2], em 1958, ao tratar do crime de estelionato, mas com pertinência ao raciocínio ora desenvolvido:

 

“O ladrão violento, tão comum em outras épocas, é, atualmente, um retardatário ou fenômeno esporádico. O cangaceiro do sertão brasileiro, o brigante do sul da Itália ou o outlaw do oeste norte-americano, são anacronismos, resíduos de barbaria. ... O expoente da improbidade operosa é hoje o architectus falacciarum, o scroc, o burlão, o cavalheiro de indústria. ... A mão armada evoluiu para o conto do vigário ...”.

 

E, de nossa parte, complementando o mestre, hoje poderíamos acrescentar que o enterrar o dinheiro obtido ilicitamente, no fundo do quintal, se transformou na refinada “lavagem de dinheiro”, que se realiza nas entranhas dos diversos setores econômicos. 

 

 Por outro lado, é bom que não esqueçamos, só haverá “lavagem de dinheiro” se o lucro com a atividade criminosa antecedente for muito grande, de tamanho tal, que seja capaz de chamar atenção, a imediata utilização dos recursos obtidos com o crime, sem que haja a ocultação ou a dissimulação de sua origem ilícita.

 

Daí, que um lucro assim tão grande, no contexto que se apresenta, está diretamente ligado a crimes anteriores que sugerem uma relação diretamente proporcional entre a sua gravidade concreta e a obtenção exorbitante de lucro.

 

Contamos, hoje, com uma fórmula bastante letal, no que tange à sua ocorrência como fenômeno criminoso. Ela é composta pelos seguintes ingredientes:

 

1º) Crimes abstratamente graves ou praticados concretamente com gravidade (como tráfico de entorpecentes, contrabando de armas, todo tipo de desvio de verba pública ou lesão ao erário, dentre outros), cujo objeto é um bem precioso, e cuja carência, proibição ou dificuldade, são capazes de trazer rendimentos exorbitantes.

 

Observe-se que, aqui, a gravidade concreta está ligada às circunstâncias, meios e forma da prática do crime; aos motivos e condições sociais e pessoais do autor; e às conseqüências de seu resultado.

 

2º) Corrupção instalada ou infiltrada nos Poderes Públicos, como meio de garantir o sucesso daquelas atividades criminosas e assegurar sua impunidade.

 

3º) “Lavagem de dinheiro”, não só para assegurar também a impunidade, mas para permitir o reinvestimento ou outros investimentos, agora lícitos, e até beneméritos e filantrópicos, que ainda tragam ao agente a simpatia, a legitimidade, e o trânsito social nos mais distintos e nobres salões.

 

Ocorre que o resultado da “ingestão prolongada e sem controle desta fórmula” para a sociedade, poderá representar, se já não for o caso, pelo menos em alguns lugares, a exclusão da igualdade de oportunidades, da livre concorrência, da corrosão de valores virtuosos, da própria liberdade, da segurança pública, da democracia e do estado de Direito.   

 

De modo que não seria exagero considerarmos que, neste Terceiro Milênio, esta estrutura criminal que compusemos através daquela fórmula, consistirá no novo enfoque da questão da segurança nacional.

 

Segundo: É preciso que a sociedade  se conscientize de sua responsabilidade na participação ampla nas questões de interesse coletivo.

 

É necessário que as pessoas exercitem, efetivamente, os instrumentos colocados à sua disposição, para atuarem concretamente na defesa de seus interesses e direitos, dentre eles a própria segurança pública.

 

Não será mais possível, daqui para frente, achar que o Estado, sozinho, poderá atuar efetivamente na solução de problemas ligados à criminalidade, em Cidades que crescem desordenadamente em conglomerados urbanos, com populações cada vez maiores e repletas de camadas de excluídos, assim como revestidas de pessoas cada vez mais camufladas pelas cifras dourada e azul da criminalidade.

 

Devemos repudiar o esvaziamento do Estado, sobretudo em áreas cujo interesse público reclame sua presença, como é o caso da segurança pública. Mas devemos também contribuir, de todas as maneiras possíveis, para atingir esses fins: desde a utilização do disque-denúncia, por exemplo, que muito teria contribuído, segundo as autoridades policiais, para a prisão de Elias Maluco, apontado como assassino do repórter Tim Lopes, no Rio de Janeiro, até a colocação em prática da obrigação de comunicar atividades suspeitas de “lavagem de dinheiro”. 

 

3.2. Elaboração de relação de operações suspeitas pelas autoridades competentes.

 

Esta questão, sobre a qual muito caberia comentar, consiste na opção legal de deixar a critério de autoridades de regulação e controle de determinadas atividades (como é o caso do BACEN, da CVM, da SUSEP do COAF etc.), assemelhadas em muitos pontos às agências reguladoras, a tarefa de elaborar uma relação de operações suspeitas, calcadas em caracteres técnicos, afim de que, em sua presença, as pessoas jurídicas e físicas específicas, tenham a obrigação de comunicá-las às autoridades (art. 11, inciso I e § 1º, da Lei n. 9.613/98).

 

Note-se que, aqui, não se atribuiu àquelas autoridades a elaboração de normas técnicas integradoras de normas penais em branco, mas tão somente as operações que, por suas características, sugerem ato de “lavagem de dinheiro”, levantando suspeita sobre a operação.

 

Com efeito, longe de nós negarmos que, diante da especificidade que envolve alguns atos de “lavagem de dinheiro”, será necessária a participação daquelas autoridades que possuem o conhecimento técnico fundamental para a definição da situação suspeita.

 

Mas, por outro lado, teme-se que uma visão compartimentada de cada ramo das atividades econômicas, e mesmo desprovida de uma contribuição específica de quem atua por função no ramo da investigação, como o Ministério Público e a Polícia, acabe se ressentindo de uma melhor escolha na elaboração desta relação de atividades.

 

Do mesmo modo que nosso entendimento geral, em termos de combate à “lavagem de dinheiro”, é exatamente sobre a necessidade do permanente trabalho conjunto, de todos os órgãos que possam contribuir para o esclarecimento de uma situação delituosa, e que acaba sendo multidisciplinar, e, como dispõe a Recomendação n. 02 do GAFI, resultando em questões jurídicas, financeiras e operacionais,  entendemos que, desde a origem desse combate, quando se irá elaborar as relações de operações que possam interessar para a formação de juízos das diversas autoridades, se poderia trabalhar de forma conjunta e também multidisciplinar.

 

Sem uma visão ampla e conjugada do fenômeno que se pretende combater, com a convergência dos conhecimentos e experiência das diversas áreas envolvidas nos aspectos técnicos da atividade em questão, entendemos que em muito estará dificultada a tarefa de combate preventivo e repressivo do crime de “lavagem de dinheiro”.

 

3.3. A questão do sigilo em relação à obrigação de comunicar operações suspeitas.

 

A Lei n. 9.613/98 traz uma situação bastante interessante em relação ao sigilo: é que diante dos indícios (na verdade suspeitas) dos crimes de “lavagem de dinheiro”, quando por ocasião da realização de alguma proposta ou transação, a cargo do cliente, imediatamente o dever de sigilo se inverte.

 

 Note-se que pelo art. 11, inciso II, da Lei n. 9.613/98, o funcionário ou administrador da pessoa jurídica onde o cliente realiza a transação, deverá comunicá-la às autoridades competentes no prazo de 24 horas, ao mesmo tempo em que deve, já nesse momento, guardar sigilo dessa comunicação em relação ao cliente, abstendo-se de lhe dar ciência de que a realizou.

 

O art. 11, § 2º, da Lei em exame, constitui norma de exclusão da responsabilidade administrativa e civil dos funcionários ou administradores das pessoas jurídicas comunicadoras, desde que a comunicação tenha sido feita de boa-fé.

 

Duas questões são então aqui suscitadas:

 

Primeira: A que diz respeito à definição dessa boa-fé: Trata-se aqui, a nosso juízo, daquilo que se concebe como boa-fé objetiva, dentro de uma bi-partição assumida pelo difícil instituto da boa-fé, no Direito Civil.

 

Como ressalta FLÁVIO ALVES MARTINS[3], numa excelente monografia sobre o tema, a boa-fé objetiva é aquela em que, além da confiança que terceiros tenham depositado no agente, ainda se completa com elementos externos ao agente, ligados a um dever de agir de acordo com normas de conduta, expressas num comportamento leal para com o outro.   

 

Trata-se de uma boa-fé princípio, que supera o mero agir inocente de quem desconhece a ilicitude de seu ato, e que reclama do sujeito um atuar de acordo com regras de conduta.

 

No caso, por princípio, o caráter de privacidade que envolve as transações econômicas e financeiras, sobretudo aquelas que estão protegidas pelo sigilo bancário, impedem o funcionário da pessoa jurídica de comunicá-las a esmo a quem quer que seja.

 

Ainda por normas de conduta ligadas a essa área, tais transações poderão ser comunicadas às autoridades competentes, quando requisitadas ou solicitadas, conforme o caso, como se depreende da disciplina contida na Lei Complementar n. 105, de 10 de janeiro de 2001.

 

No que tange ao disposto no art. 11, § 2º, da Lei n. 9.613/98, deverão ser comunicadas as operações econômico-financeiras, voluntariamente, pelo funcionário da instituição financeira ou empresa econômica, quando apresentarem o perfil que enseja a suspeita da prática de ato de “lavagem de dinheiro”.

 

Será na constatação dessa situação suspeita, que residirá a boa-fé excludente das responsabilidades civil e administrativa, recomendando-se que haja uma fundamentação dessa comunicação, ainda que breve, por parte do funcionário, justamente para expressar a boa-fé.

 

Segunda: Esta comunicação voluntária, quando de boa-fé, é também conduta atípica em face do Direito Penal.

 

A revelação de segredo profissional, crime previsto no art. 154 do Código Penal, exige que a conduta ocorra sem justa causa, considerando a doutrina que esta justa causa, que torna atípica a conduta, seja aquela que tenha fundamento, direta ou indiretamente, na lei[4].

 

No caso, a comunicação voluntária de boa-fé, presentes as circunstâncias que a impõem, conforme o disposto no art. 11, inciso II, da Lei n. 9.613/98, dá o suporte legal de justa causa à conduta do agente, tornando-a atípica.

 

3.4. Sanções penais para a violação da obrigação de comunicação.

 

O art.14.3, do Regulamento Modelo sobre Crimes de “Lavagem de Dinheiro”, da Comissão Interamericana para Controle do Abuso de Drogas (CICAD), da OEA, prevê:

 

“Comete delito penal a instituição financeira, seus empregados, funcionários, diretores, proprietários ou outros representantes autorizados, que, atuando como tal, deliberadamente não cumpram as obrigações estabelecidas nos artigos 10 a 13 do presente Regulamento, ou que falseiem ou adulterem os registros ou informações aludidos nos mencionados artigos”.

 

Trata-se de uma punição expressa para o descumprimento das obrigações derivadas do regime administrativo de controle da “lavagem de dinheiro”, e que não encontra correspondente no nosso Direito.

 

Não havendo em nosso Direito tipo penal autônomo semelhante, é de se indagar se as deliberadas omissões da comunicação da proposta de transação ou realização de transação suspeita, a qual resulte na configuração de um dos crimes previstos no art. 1º da Lei n. 9.613/98, poderão ser punidas na forma deste mesmo artigo, com a incidência do disposto no art. 13, § 2º, do Código Penal brasileiro?

 

A questão da omissão em Direito Penal, como se sabe, é tema que encerra alguma complexidade, sobretudo no que diz respeito aos crimes omissivos impróprios.

 

Todavia, apesar da exiguidade do tempo e dos limites desse estudo, é interessante levantar esta reflexão sobre o tema.

 

Recordando, a estrutura típica de um crime comissivo por omissão inclui: a) a ocorrência do resultado típico; b) a omissão da ação devida e a possibilidade de agir; c) a causalidade hipotética; d) o dolo de decidir-se pela inatividade; e) a posição do garantidor, essa calcada num dever jurídico e não meramente moral ou ético[5].

 

Esta posição do garantidor, no nosso Código Penal, é definida por critérios formais, ligados a deveres oriundos da lei, do contrato ou da criação do risco de ocorrência do resultado, mas que também devem ser confirmados por critérios materiais sobre  o conteúdo do dever de agir do garantidor, segundo a doutrina[6].

 

No presente caso, vimos que os artigos 10 e 11 da Lei n. 9.613/98, criaram uma responsabilidade para os funcionários e administradores das pessoas jurídicas relacionadas no art. 9º, compartilhada com a do Estado, no combate à “lavagem de dinheiro”, e que ensejaria, a princípio, um dever de agir para impedir o resultado típico dos crimes do art. 1º.

 

Observe-se que, se considerarmos o requisito do resultado típico como a lesão ou perigo de lesão para o bem jurídico tutelado, tudo descrito e contido no tipo, e não sua mera ocorrência no mundo natural, a omissão da ação imprópria seria possível, em tese, nos crimes formais e de perigo, contidos no art. 1º da Lei n. 9.613/98.

 

O problema surge, com mais intensidade, entretanto, quando se busca um conteúdo material para fundamentar a posição de garantidor, que se pretende atribuir, por lei, aos funcionários e administradores das pessoas jurídicas.

 

Estariam, de fato, aquelas pessoas, em uma tal relação próxima com os sujeitos passivos dos crimes de “lavagem de dinheiro”, que sugerisse uma função de confiança, própria do dever jurídico de garantidor? Esta hipótese nos parece de todo afastada.

 

Mas se poderia dizer que aquelas pessoas guardam um tal nexo com uma fonte de perigo (as atividades econômicas suscetíveis à prática de atos de “lavagem de dinheiro”), capaz de ameaçar vários titulares de bens jurídicos, cabendo-lhes, portanto, uma função de vigilância para interferir na configuração desse perigo?

 

  Ou será que a transferência de vigilância, quanto aos atos que representam ameaça para o bem jurídico ora tutelado, para os funcionários e administradores das pessoas jurídicas, transformando-os em garantidores, e, por isso, passíveis de sanção penal, não estaria representando a punição pela mera desobediência, desprovida, portanto, de conteúdo material?

 

Afinal, se por um lado há uma responsabilidade administrativa de colaborar com o Poder Público nas suas funções de controle e regulação administrativa da utilização lícita dos sistemas econômicos, por parte das pessoas que atuam nessa área, por outro, talvez devamos estar sensíveis para a possibilidade, indesejável, de que a atribuição da posição de garantidor esteja a criar aquele risco penal, do qual nos fala FRANCESCO PALAZZO[7], para tais atividades, derivado de uma artificial ligação dessas pessoas com o bem jurídico visado.

 

Nesse caso, a sanção pelo não cumprimento da obrigação de comunicar, derivada do art. 11 da Lei n. 9.613/98, encontraria suporte apenas administrativo, e estaria excluída do âmbito penal, em atenção aos princípios da legalidade, da lesividade e da subsidiariedade. 

 

Todavia, não é o objetivo deste estudo esgotar esta questão específica, sobretudo neste seu aspecto qualitativo, de modo que, por ora, nos damos por satisfeitos em suscitar esta reflexão sem, contudo, apresentar uma posição definitiva.

 

  4. Conclusão.

 

Como visto, a obrigação de comunicar operações suspeitas, inserida dentro do regime administrativo do combate à “lavagem de dinheiro”, por força dos artigos 9º, 10 e 11, da Lei n. 9.613/98, acarreta aquilo que se denomina transferência das cargas de vigilância sobre os atos que possam constituir prática de ilícito penal.

 

Trata-se de um instrumento preventivo e repressivo das atividades criminosas, especificamente do crime de “lavagem de dinheiro”, que surge como uma alternativa condizente com a modificação no cenário criminal e criminológico, estabelecido com o advento de outros fenômenos que, se não se pode afirmar novos, pelo menos se pode considerar intensificados com a modernidade.

 

A finalidade do presente estudo, entretanto, não é esgotar a discussão em torno do surgimento de atividades de risco em nossa sociedade, muito menos de exaurir argumentos no sentido de que o crime de “lavagem de dinheiro” constitui uma dessas atividades, diretamente voltada para a vertente do risco direcionado à derrocada da economia mundial, como prenuncia ANTHONY GIDDENS[8], tema que deixaremos para outra oportunidade.

 

Contudo, não se pode olvidar a existência deste novo instrumento no Direito pátrio, o qual, como se procurou enfatizar acima, encontra suporte constitucional e, portanto, legitimidade, no ordenamento jurídico nacional, para ser observado e atendido por seus destinatários, mediante sanção, ao menos na esfera administrativa.

 

A par disto, a obrigação de comunicar atividades suspeitas ainda se inclui na nova disciplina do sigilo sobre operações econômico-financeiras, reunindo em seu bojo questões como a inversão do dever de sigilo frente ao próprio cliente interessado, e a boa-fé na transferência voluntária do sigilo, como excludente de toda responsabilidade do empregado, funcionário ou agente da pessoa jurídica comunicante.

 

Enfim, o instrumento, ora analisado, ainda reafirma a necessidade de um trabalho permanentemente conjunto entre todas as autoridades encarregadas do combate ao crime de “lavagem de dinheiro”, desde a elaboração de normas mais eficazes na delimitação e controle de atividades suspeitas, até a aplicação de medidas investigatórias para melhor reunir elementos de convicção.

 

 

 

Retirado de: www.lazaro.tk/obcomun.htm