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ABORTO: DESCRIMINAR PARA NÃO DISCRIMINAR

Silvia Pimentel e Valéria Pandjiarjian

“Para a mulher que aborta, repouso...”

Nando Reis

A Campanha Regional do 28 de Setembro – Dia de Ação pela Descriminalização do Aborto na América Latina - invoca-nos a refletir o tema do aborto no marco dos direitos humanos contemporâneos, a partir de uma perspectiva de gênero.

O direito à saúde da mulher, incluindo-se a saúde sexual e reprodutiva, tem-se constituído em componente essencial dos direitos humanos, concepção refletida em diversos documentos produzidos nas conferências internacionais das Nações Unidas das últimas décadas.

A Primeira Conferência Mundial sobre os Direitos Humanos - _ftn2 de Teerã (1968) reconheceu pela primeira vez o direito humano fundamental de pais e mães a determinar livremente o número de seus filhos e os intervalos entre seus nascimentos. A Conferência sobre População de Bucareste (1974), no mesmo sentido, reconheceu esse direito aos casais e indivíduos, estabelecendo, ainda, o papel que o Estado deve desempenhar para garantir o exercício desse direito. Destaca-se, ainda, nessa linha, a Conferência Mundial da Mulher do México (1975), na qual se reconhece à mulher o direito à sua integridade física, incluindo o direito a decidir sobre o prório corpo e à maternidade opcional.

Entretanto, é a partir das conferências internacionais celebradas no decorrer da década de 90, em especial a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (Cairo, 1994) e a IV Conferência Mundial sobre a Mulher (Beijing, 1995), que o tema ganha maior relevância, estabelecendo-se: que a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos são fundamentais para os direitos humanos e o desenvolvimento; que os direitos reprodutivos abrangem certos direitos humanos já reconhecidos em leis nacionais, em documentos internacionais sobre direitos humanos e em outros documentos consensuais, incluindo-se o direito de todo casal e de todo o indivíduo de tomar decisões sobre a reprodução, livre de discriminação; reconhecendo-se, ainda, a necessidade de se tratar o tema dos direitos reprodutivos da mulher, e especificamente o tema do aborto inseguro, de forma humana e solidária.

A partir das Conferências de Cairo e Beijing, a comunidade internacional passa a reconhecer expressamente o aborto inseguro como um grave problema de saúde pública e recomenda aos governos que considerem a possibilidade de reformar as leis que estabelecem medidas punitivas contra as mulheres que tenham sido submetidas a abortos ilegais, bem como que garantam às mulheres, em todos os casos, o acesso a serviços de qualidade para tratar complicações derivadas de abortos - _ftn3.

Apesar dos avanços ocorridos em alguns países, em termos de políticas e leis internas que buscam se adequar à recomendações de Cairo e Beijing, bem como aos compromissos assumidos pela ratificação de tratados internacionais de proteção aos direitos humanos, as mulheres que vivem em países nos quais o aborto, via de regra, ainda é considerado crime, como no Brasil, seguem sofrendo limitações aos exercício de seus direitos e liberdades fundamentais reconhecidos na legislação internacional e nacional. Limitações portanto ao direito de viver livre de violência e discriminação em razão de gênero, ao direito à intimidade, à saúde, à vida, à informação, à liberdade e à segurança pessoal.

A propósito, vale lembrar que o Estado Brasileiro não só assinou os documentos produzidos nas conferências acima mencionadas, assumindo o compromisso político e moral perante a comunidade internacional de revisar as leis internas que punem as mulheres submetidas a aborto ilegais, como também ratificou os principais tratados internacionais de proteção aos direitos humanos, em especial, a Convenção pela Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Convenção da Mulher, ONU, 1979) e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará, OEA, 1994).

Certo é que os documentos produzidos nas Conferências Internacionais são Declarações de direitos e recomendam diversas ações ao Estado para a garantia desses direitos, mas não tem força jurídica vinculante, obrigatória, ou seja, não são leis no sentido técnico, ao contrário das Convenções, estas sim tratados internacionais que obrigam o Estado legalmente a cumprir com suas obrigações partir do momento de sua ratificação. De qualquer forma, o texto das Declarações dessas Conferências tem sido cada vez mais utilizado e constitui uma força se não jurídica propriamente, mas política e moral, para exigir sua implementação, Isso além dessas Declarações servirem como subsídio fundamental para a interpretação e aplicação dos conceitos e direitos, enfim, do alcance das normas contidas na legislação internacional de direitos humanos.

E o que traz de relevante para o tema os tratados internacionais ratificados pelo Brasil a que nos refirimos, vale dizer, a Convenção da Mulher e a Convenção de Belém do Pará? Embora não haja uma Convenção específica para tratar do tema dos direitos sexuais e reprodutivos e, tampouco, que enfrente especificamente a questão do aborto – matéria complexa e de consenso quase impossível, em especial no âmbito internacional - estes direitos estão de formas diversas presentes em nosso ordenamento jurídico internacional e nacional. E se não estão presentes às vezes tão diretamente, a sua proteção decorre do fato de trabalharmos o tema no marco conceitual e jurídico dos direitos humanos.

Vejamos então como podemos, através de alguns exemplos, interpretar dispositivos das duas Convenções mencionadas de maneira a verificar o quanto, juridicamente, a criminalização do aborto configura-se como uma discriminação e violência contra a mulher.

Ao ratificar a Convenção da Mulher, em 1984, o Estado brasileiro passou a contar, em seu ordenamento jurídico, com um conceito de “discriminação contra a mulher, estabelecido no artigo 1º da Convenção. Diz o artigo 1º:

“Para fins da presente Convenção, a expressão ‘discriminação contra a mulher” significará toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo”

Também assumiou o Estado brasileiro, ao incorporar essa normativa internacional na sua ordem jurídica interna, o dever de: (art. 2º, alíneas f e g da Convenção da Mulher)

v Adotar todas as medidas adequadas, inclusive de caráter legislativo, para modificar ou derrogar leis, regulamentos, usos e práticas que constituam discriminação contra a mulher

v Derrogar todas as disposições penais nacionais que constituam discriminação contra a mulher

Ao ratificar a Convenção de Belém do Pará, em 1995, o Estado brasileiro obrigou-se legalmente a adotar, por todos os meios apropriados e sem demora, políticas que visem eliminar toda e qualquer forma de violência contra a mulher, inclusive abolindo leis e regulamentos vigentes que respaldem a persistência e a tolerância da violência contra a mulher (art. 7, alínea e) da Convenção de Belém do Pará).

Cumpre lembrar que, de acordo com a Convenção de Belém do Pará, o direito de toda mulher a viver livre de violência abrange, entre outros, o direito a ser livre de todas as formas de discriminação (art. 6º, alínea a). E, na medida em que se considera a criminalização do aborto como uma forma de discriminação contra a mulher, que restringe o exercício de seus direitos humanos e liberdades fundamentais nos termos inclusive também já definidos no artigo 1º da Convenção da Mulher, incluindo-se também o direito de decidir livremente a respeito de sua saúde sexual e reprodutiva e o direito a ter controle sobre a fecundidade, esta consiste também em uma forma de violência tolerada e, até mesmo, perpetrada pelo Estado.

Assim sendo, a criminalização do aborto, segundo essa interpretação fere tanto a Convenção da Mulher quanto a Convenção de Belém do Pará, por constituir-se como forma de tolerância e perpetuação do Estado na discriminação e violência contra a mulher.

Ademais, a criminalização do aborto, em especial nos países em desenvolvimento, como o Brasil, tem como principal consequência sua prática clandestina e em condições insalubres, custando a vida de milhões de mulheres, em especial de mulheres pobres do terceiro mundo. Pelas altas taxas de morbidade e mortalidade relacionadas ao aborto e suas implicações éticas, religiosas, jurídicas, médicas e sociais, esta prática constitui um complexo problema de justiça social e de saúde pública, determinado por fatores diversos, entre os quais se destacam: a diferença de poder entre os gêneros, a insuficiente educação sexual e reprodutiva, bem como a impossibilidade de acessos a serviços básicos de saúde e de planejamento familiar, na maioria das vezes, decorrentes justamente da omissão do Estado em relação ao cumprimento de suas obrigações legais.

Diante do quadro acima descrito, cabe indagarmos: qual o sentido jurídico-social de se manter, em nossa legislação nacional, a criminalização do aborto?

No Brasil, como sabemos, o Código Penal de 1940, via de regra, considera crime a prática do abortamento, exceto quando não há outro meio de salvar a vida da gestante (aborto necessário) ou se a gravidez é resultante de estupro (aborto sentimental consentido). Apesar desse direito, há 60 anos garantido pela legislação nacional, as mulheres que desejam recorrer à prática do abortamento nas condiçoes legalmente autorizadas encontram inúmeros obstáculos para garantir o exercício desse direito.

Podemos considerar, de alguma forma, que a regra geral de proibição do aborto em nosso ordenamento jurídico acaba por funcionar assim como que uma válvula de escape para aqueles que buscam sustentar o falacioso argumento de que os permissivos legais estabelecidos no artigo 128 do Código Penal brasileiro não constituem umdireito da mulher para a prática do abortamento, tentando, assim, no entendimento do juiz José Henrique Torres, justificar “a injustificável omissão do Estado, que ‘dá com uma mão e toma com a outra, ou seja, admite a prática do abortamento sentimental ou necessário e, ao mesmo tempo, na grande maioria dos casos, não dá nenhuma assistência ou garantia às mulheres vítiimas de violência sexual ou expostas à perigo de vida”.

E, nesse sentido, prossegue Torres: “não se pode olvidar que as normas insertas nas Convenções Internacionais de Direitos Humanos, as quais têm natureza de norma constitucional (CF, art. 5º Parágrafos 1º e 2º), asseguram às mulheres o direito à garantia de sua diginidade e de sua integridade física e psíquica, impondo aos Estados subscritores , e o Brasil é um deles, o dever de garantir tal direito (...). Assim, induvidosamente, por força dos preceitos e princípios constitucionais garantistas, o Estado, quer queira quer não, tem o dever de implementar no serviço público de saúde o atendimento às mulheres que necessitam do abortamento para não morrer ou para preservar sua integridade física e psíquica (CF, arts. 196, 198, II e 226, parágrafo 7º)”.

Ora, a escolha pela manutenção de dispositivos que penalizam a prática de aborto consentida em nosso país é duplamente discriminatória, seja porque fere a autonomia e os direitos humanos e liberdades fundamentais de todas as mulheres, seja porque afeta de maneira distinta as mulheres segundo seus recursos econômicos, discriminando aquelas que, por carência de meios suficientes se vêem obrigadas a recorrer ao aborto inseguro, violando-se, assim, o princípio de justiça e equidade. Vale lembrar: ao Estado, cumpre garantir os direitos humanos fundamentais dos indivíduos e promover a justiça social mediante políticas e leis adaptadas à realidade social do momento, sem pretender estabelecer ou impor uma moral pública única.

A propósito, vale frisar que, ao contrário do que se imagina, os países que legalizaram o aborto provocado e criaram programas acessíveis de planejamento familiar, combinados com um acesso efetivo à informação, tiveram como consequência a diminuição do número de abortos realizados. Na Holanda, por exemplo, onde o aborto não é considerado crime e existem serviços gratuitos de aborto, com um amplo e efetivo acesso a anticonceptivos e serviços, assim como proteção social para a mulher, a taxa de abortos é estimada em 0,53 para cada 100 mulheres, uma das mais baixas de toda a Europa. Por sua vez, em Cuba, país que conta com uma legislação liberal sobre aborto, a taxa ainda permanece alta devido ao fato de não haver recursos suficientes de informação e acesso a métodos contraceptivos. Nos países da América Latina com legislações que criminalizam o aborto ou o permitem em alguns poucos casos, a taxa chega a serdez vezes maior, comparada com as de países onde as leis sobre aborto foram liberalizadas.

Como se não bastasse o acima alegado, no dizer do estudioso da criminologia crítica, Alessandro Bratta, a criminalização do aborto também serve, “em primeiro lugar, para representar simbolicamente o papel conferido à mulher na esfera (privada) da reprodução natural. Depois, para assegurar o domínio patriarcal sobre a mulher; por derradeiro, para impor à mesma – através de sua função na esfera reprodutiva – um papel subordinado no regime de transmissão da propriedade e na formação dos patrimônios”. Configura-se, pois, na mesma linha de nossa argumentação, como uma inegável discriminação contra a mulher.

Ronald Dworkin, famoso jurista anglo-saxão, tem uma contribuição muito importante na discussão do tema do aborto e de outros afins, que nos colocam diante dos difíceis sentidos de vida e morte, como a eutanásia. Ele faz em um momento de sua obra uma colocação bastante pertinente e sensível em relação ao aborto. Para Dworking, o debate sobre o tema do aborto gravita entre duas formas extremas de escolha: frustar o investimento natural-biológico ou o investimento humano na vida. Argumenta Dworkin, por exemplo, nem todos os religiosos ou aqueles que veneram a natureza são necessariamente contrários ao aborto. Muitos são sensíveis e chegam a admitir que em algumas circunstâncias uma mulher pode fazer a escolha pelo aborto quando investir na gravidez ponha em risco o investimento em sua própria vida.

Não estamos aqui advogando a prática irresponsável do aborto, o qual, em si, não consideramos um bem, mas sim propugnando por sua descriminalização. Descriminar para não discriminar.É mister, pois, deslocar o tratamento jurídico punitivo tradicionalmente dado ao aborto do campo do direito criminal cuja responsabilidade recai sobre o indivíduo-mulher, impondo-lhe a obrigação de não-fazer (o aborto, mesmo em condições legalmente autorizadas), para o campo da educação e da saúde pública, recaindo sobre o Estado a responsabilidade que lhe é inerente, exigindo-lhe a obrigação de fazer cumprir as leis estabelecidas no âmbito internacional e nacional.....É o Estado que deve assumir suas responsabilidades e, através de políticias públicas adequadas, criar condições para que as mulheres possam evitar gravidezes indesejadas e assim não se depararem com estas duas formas extremas – e difíceis - de escolha a que se refere Dworkin.

Advogamos, sim, condições de saúde e dignidade para os casos de abortamento provocado quando o casal ou, em útlima instância, a mulher, não se sinta em condições (sociais, econômicas, psicológicas ou médicas) de levar a cabo uma gravidez indesejada.

Convidamos, pois, todos e todas que buscam a (re) construção de uma sociedade mais justa, menos opressiva, discriminatória e desigual, a refletir sobre qual o sentido e força simbólica, bem como sobre as consequências práticas que a existência de uma legislação que criminaliza o aborto acarreta na vida de milhões de mulheres brasilieiras.

E aqui, voltamos ao marco teórico-filosófico, histórico-político e jurídico que os direitos humanos contemporâneos nos apresenta, e que nos invoca, por fim, o tema da solidariedade, mesmo que isso exija a tolerância por parte de muitos que, por razões respeitáveis, se posicionam de forma contrária à descriminalização do aborto.

E se tomamos por princípio que a descriminalizão do aborto é uma legítima questão de direitos humanos, segundo a qual devem ser respeitados os princípios da diginidade humana, igualdade e não-discriminação, impõe-se a exigência da tolerância, sim, por parte daqueles que têm um entendimento diferenciado.A partir da tolerância, vale dizer, busca-se compreender as convicções adversas, sem, entretanto, necessariamente a elas aderir. A prática do aborto jamais deve ser imposta a qualquer mulher, mas a sua não-prática também. Portanto, não buscamos impor àqueles que são contrários à descriminalização que a respaldem, mas simplesmente que a compreendam, como entendemos ser legítimo não exigir às mulheres que efetivamente não se sintam em condições de procriar e exercer a maternidade de forma responsável, que a ela tenham que obrigatoriamente se submeter. Isso porque o princípio que impulsiona nossa atitude coerente e consentânea com o respeito dos direitos humanos é aquela que nos move no sentido de exercitar a solidariedade, a tolerância e o respeito à diversidade de concepções perante a difícil questão sobre os sentidos de vida e morte. A dificuldade no enfrentamento do tema se dá, também, do ponto de vista das diferentes concepções acerca da sexualidade humana, de seu exercício e de como a sociedade e os indivíduos dão (ou não dão) conta dessa questão. Porque nenhuma mulher quer abortar, mas quando precisa abortar, o que ela necessita e merece receber, além de assistência social, médica, jurídica e psicológica é, mais do que tudo, afeto, solidariedade, tolerância, respeito e repouso.....e não prisão....Como diz a música de Nando Reis, para a mulher que aborta, repouso...........

- _ftnref1 Silvia Pimentel: professora doutora em Filosofia do Direito da PUC/SP; coordenadora nacional do Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM-Brasil); membro do Conselho Diretor da Comissão de Cidadania e Reprodução (CCR) e do Instituto para Promoção da Eqüidade (IPÊ).

Valéria Pandjiarjian: advogada e pesquisadora; membro do CLADEM-Brasil e do IPÊ, organizações não-governamentais através das quais desenvolve trabalhos de investigação, consultoria e treinamento em direito internacional dos direitos humanos, com ênfase para questões de gênero e violência.

- _ftnref2 Ver item 16 do documento da Conferência .

- _ftnref3 Consultar, nesse sentido, o Programa de Ação da Conferência do Cairo, em seu parágrafo 8.25 e a Plataforma de Ação de Beijing, em seu parágrafo 106 (k).

Retirado de: http://www.jep.org.br/abortodescriminar.htm