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O CONDENADO ESTRANGEIRO E A PROGRESSÃO DO
REGIME PRISIONAL
Alberto Zacharias Toron
O art. 3º, inc. IV, da Constituição Federal proclama constituir objetivo fundamental na
nossa República, "promover o bem de todos, sem preconceitos de
origem...". Corolário disso é a garantia a um tratamento isonômico perante
a lei, tal como disciplina o art. 5º, caput, do mesmo diploma que, assim, sela
o direito do indivíduo a não sofrer discriminações.
Afora as disposições da nossa Carta Política, é imperioso destacar que o Brasil
é signatário do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de Nova
Iorque. Este documento, logo no seu art. 2º, registra que os Estados-partes
comprometem-se a garantir a todos os indivíduos que se encontrem em seu
território e sujeitos a sua jurisdição os direitos ali reconhecidos "sem
discriminação alguma" e, entre outras, especialmente, em razão da origem
nacional. No art. 14 convencionou-se que "todas as pessoas são iguais
perante os Tribunais e as Cortes de Justiça".
Não por acaso, de forma eloqüente, o art. 26 do mesmo diploma internacional,
estabelece: "Todas as pessoas são iguais perante a lei e têm direito, sem
discriminação, a igual proteção da lei. A este respeito, a lei deverá proibir
qualquer forma de discriminação e garantir a todas as pessoas proteção igual e
eficaz contra qualquer discriminação por motivo de raça, cor, sexo, língua,
religião, opinião, política ou de outra natureza, origem nacional ou social,
situação econômica, nascimento ou qualquer outra situação".
Na mesma linha desta e de outras disposições, vamos encontrar também no Pacto
de San José da Costa Rica (art. 1º), vedação à discriminação do invidíduo em
razão de sua nacionalidade.
Como se sabe, as garantias fixadas em Convenções das quais o Brasil seja parte
incorporam-se ao Direito pátrio e são exigíveis por força do que dispõe o art.
5º, § 2º, da própria Constituição(1). Além disso, o disposto no art. 105, inc.
III, letra a, pela via do recurso especial, assegura o seu cumprimento caso uma
decisão judicial venha contrariá-las. Diante deste plexo de normas, é
inaceitável constatar que inúmeras decisões têm proclamado que o estrangeiro
condenado não tem direito à progressão no regime prisional enquanto estiver
pendente o processo de expulsão (TJSP, Agravos nºs 181.639-3, rel. des.
Gonçalves Nogueira e 211.074-3, rel. des. Jarbas Mazzoni) e, sobretudo, quando
esta já tiver sido decretada (RTJ 139/527, rel. min. Paulo Brossard e RTs
518/442, rel. min. Moreira Alves e 616/405, rel. min. Aldir Passarinho). Estes
arestos prestigiam a idéia de que a eficácia da expulsão não pode prescindir da
manutenção da prisão.
Malgrado a pletora de julgados que, da Suprema Corte aos diferentes tribunais
federais e estaduais, afastam a possibilidade de o estrangeiro condenado obter
melhora na sua situação prisional, é notório, ao menos à luz de uma
Constituição que afirma a igualdade de todos perante a lei e de uma República
que subscreveu Pactos Internacionais no mesmo sentido, que tal entendimento
representa odiosa discriminação. Primeiro, porque a Lei de Execução Penal não
faz diferença entre a nacionalidade dos sentenciados para conferir os direitos
que elenca. Depois, porque se houvesse esta odiosa distinção entre condenados brasileiros
e estrangeiros, no mínimo, haveria ofensa ao princípio da isonomia jurídica,
que assegura a todos um tratamento igual perante a lei (art. 5º, caput da
Constituição Federal).
Como adverte Celso Antonio Bandeira de Mello, citando Kelsen "colocar (o
problema) da igualdade perante a lei é colocar simplesmente que os órgãos de
aplicação do Direito não têm de tomar em consideração senão as distinções
feitas nas próprias leis a aplicar"(2). Tem-se aqui, como sustenta Manoel
Gonçalves Ferreira Filho, "um autêntico princípio de interpretação, de
acordo com o qual o juiz deverá dar sempre à lei o entendimento que não crie
privilégio de espécie alguma"(3), ou seja, que não desampare uns em razão
pura e simplesmente da nacionalidade.
Nessa conformidade, o ministro Carlos Thibau ao tempo em que judicava no
extinto Tribunal Federal de Recursos, deixou assentado: "Não existe
proibição legal que vede ao estrangeiro a concessão de benefício de progressão
de regime carcerário, desde que os pressupostos objetivos e subjetivos para sua
concessão estejam atendidos, devendo a transferência ser feita de forma
progressiva..." (Ac. un. da 1ª Turma do TFR, no Agravo em Execução Penal
nº 1.292/RJ, j. em 20.02.87 — Apud: Bol. AASP nº 1.491 de 15.07.87). No mesmo
sentido decidiu a 2ª Turma do TFR, em acórdão da lavra do ministro Costa Lima,
onde se salientou que a mencionada progressão tem lugar, mesmo quando tenha
sido decretada a expulsão do sentenciado estrangeiro (cf. Ac. do Ag. em Exec.
Penal nº 7.169/RJ. Apud: Bol. AASP nº 1.440 de 23.07.86).
Mais recentemente, já no Superior Tribunal de Justiça, o ministro Assis Toledo
manifestou sua repulsa ao tratamento discriminatório que se tem dado ao
condenado não brasileiro que, além de não encontrar amparo em norma legal
expressa, "não tem justificativa razoável, visto que o regime semi-aberto
é, na verdade, regime semi-fechado (...) oferecendo as garantias contra fuga,
permitindo, pois, a execução da ordem de expulsão" (DJ de 26.02.94, apud:
Alberto Silva Franco em "Código Penal e sua Interpretação
Jurisprudencial", 6ª ed., SP, ed. Revista dos Tribunais, 1997, p. 548).
Por outro lado, a decretação da expulsão, medida de natureza administrativa,
oriunda do Poder Executivo, "não pode ter efeito decisivo no campo penal,
pois é fenômeno jurídico pertinente a outro campo de atuação estatal" (RT
724/627, rel. des. Oliveira Ribeiro). Tanto que o art. 67 da Lei nº 6.815/80,
tomado aqui a contrario sensu, admite a expulsão desde logo, ainda que esteja
tramitando o processo ou mesmo se já editada a condenação. Ora, se o mais é
possível, isto é, ignorarem-se os gravames processuais e até a condenação
penal, abstraindo-se o caráter nacional da jurisdição, é incompreensível que o
menos, a obtenção de um benefício prisional, não possa ser deferido a quem
preencha os requisitos de lei.
Os julgados que indeferem as pretensões de melhora no regime prisional costumam
fazer remissão a um outro da lavra do ministro Moreira Alves (RT 518/442) e
concluem ser um paradoxo permitir que o condenado com expulsão decretada possa
circular livremente pelas ruas do País fruindo, por exemplo, o livramento
condicional (RT 616/405). O paradoxo, com a devida venia, é mais aparente do
que real.
Fixado que expulsão tem natureza administrativa e que os benefícios prisionais
são de índole jurisdicional-penal, torna-se fácil perceber que o condenado
estruturado para voltar gradativamente ao convívio social pode fazê-lo se
atendidos os critérios legais. Saber se o indivíduo segregado merece uma
atenuação no rigor penitenciário é uma questão estritamente penal e
criminológica. Se o decreto de expulsão existe, ou bem as autoridades
administrativas aguardam o cumprimento da pena, ainda que em regime aberto,
para depois efetivá-lo, ou bem, desde logo, verificado que o condenado não tem
mais porque ocupar o cárcere, aliás, via de regra superlotados, expulsam-no
independentemente da extinção de punibilidade pelo cumprimento da pena. O mesmo
raciocínio, ipsis literis, vale para a hipótese do livramento condicional.
Revela-se inadmissível que o estrangeiro, pela só condição da sua origem
nacional, seja excluído dos benefícios prisionais em razão de um decreto de
expulsão que atina com critérios de conveniência e oportunidade estranhos à
avaliação criminológica que é decisiva para se diminuir o rigor carcerário. Se
é inconveniente a permanência do estrangeiro condenado nas ruas, que se efetive
sua expulsão, mas daí a exigir o cumprimento integral da pena em regime fechado
chega a ser cruel, verdadeiramente hediondo.
NOTAS
(1) Sobre a força jurídica das Convenções e Tratados subscritos pelo Brasil,
constitui leitura obrigatória o esplêndido "Direitos Humanos e o Direito
Internacional" (SP, ed. Max Limonad, 1996, p. 81) e a dissertação de
Mestrado apresentada pela desembargadora federal Sylvia Steiner na FADUSP
(1998) sob o título: "Convenção Americana sobre Direitos Humanos e seus
reflexos no Processo Penal".
(2) "O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade", SP, ed. Revista
dos Tribunais, 1978, p. 14 na nota de rodapé nº 2.
(3) "Curso de Direito Constitucional", 7ª ed., SP, ed. Saraiva, 1978,
p. 268.
Alberto Zacharias
Toron
Advogado,
Mestre em Direito Penal pela USP
Prof. de Direito Penal na PUC-SP e
Ex-presidente do IBCCrim.
Extraído do Boletim IBCCrim
Incluído no site em 08/09/99
http://www.neofito.com.br