Artigo: NEM TODO ABORTO É CRIMINOSO   

Autor: Luiz Flávio Gomes

 

 

 

 

 

Nosso Código Penal (de 1940) permite aborto em duas situações: (a) risco concreto para a gestante; (b) gravidez resultante de estupro. O primeiro chama-se aborto necessário; o segundo humanitário. O aborto por anencefalia (feto sem ou com má formação do crânio) não está expressamente previsto na lei penal brasileira. Tampouco outras situações de má formação do feto (aborto eugênico ou eugenésico). Também não se permite no Brasil o chamado abordo a prazo (que ocorre quando a gestante pode abortar o feto até a décima segunda semana, conforme decisão sua) nem o aborto social ou econômico (feito por razões econômicas precárias).

Nosso Código penal, como se vê, ainda é bastante conservador em matéria de aborto. Isso se deve muito provavelmente à influência que ainda exerce sobre o legislador certos setores religiosos. O processo de secularização do Direito ainda não terminou. Confunde-se ainda religião com Direito. No caso do aborto por anencefalia (autorizado pelo Min. Marco Aurélio, do STF) o debate instaurado evidenciou isso de forma exuberante. Não existe razão séria (e razoável) que justifique a não autorização do aborto quando se sabe que o feto com anencefalia não dura mais que dez minutos depois de nascido. Aliás, metade deles já morre durante a gestação. A outra perece imediatamente após o parto. A morte, de qualquer modo, é inevitável.

O ponto de partida do debate deve ser a norma da Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 4º, n.1) que diz que ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente. Quando, no entanto, há motivo sério e forte que justifique eliminá-la (esse é o caso, claramente, da anencefalia), não há como o Direito não amparar essa situação. Andou bem o Ministro Marco Aurélio em autorizar o aborto anencefálico. Fará muito bem o STF em definir com clareza essa questão, que é angustiante (e causadora de muito sofrimento) para a gestante, para sua família, para os médicos etc. Aliás, não só o STF deve firmar posição inequívoca sobre o tema, também cabe ao legislador deixar isso evidente no Código Penal.

Os que sustentam (ainda que com muita boa-fé) o respeito à vida do feto devem atentar para o seguinte: em jogo está a vida ou a qualidade de vida de todas as pessoas envolvidas com o feto mal formado. Se até em caso de estupro, em que o feto está bem formado, nosso Direito autoriza o aborto, nada justifica que idêntica regra não seja estendida para o aborto anencefálico. Lógico que a gestante, por suas convicções religiosas, pode não querer o aborto. Mas isso constitui uma decisão eminentemente pessoal (que deve ser respeitada). De qualquer maneira, não pode impedir o exercício do direito ao abortamento para aquelas que não querem padecer tanto sofrimento.

Observe-se, de outro lado, que a anencefalia não é uma situação excepcionalíssima no nosso país. De cada 10.000 nascimentos, 8,6 apresentam tal anomalia. No Hospital das Clínicas em São Paulo, todo mês, são 2 ou 3 casos. Isso vem causando muita aflição para as pessoas envolvidas e também para os médicos, que muitas vezes ficam indecisos e perdidos, sem saber o que fazer. Dogma é dogma, Direito é Direito. O processo de secularização do Direito (separação entre Direito e religião) deve ser concluído o mais pronto possível. Resquícios da confusão entre eles devem ser eliminados. Bem sublinhou Luis Roberto Barroso, autor da ação no STF que pede o aborto anencefálico: “as leis não podem ser subordinadas aos dogmas religiosos ou à fé de quem quer que seja” (O Estado de S. Paulo de 20.08.04, p. A12).

O nascimento de um novo ser humano no planeta deve sempre ser motivo para comemoração, não para decepção. Nascimento é alegria, é vida e isso nada tem a ver com o clima funerário que gera a gestação assim como o nascimento do feto anencefálico.

Praticamente todos os países desenvolvidos já autorizam o aborto por anencefalia (Suíça, Bélgica, Áustria, Itália, Espanha, França etc.). Somente os países em desenvolvimento é que o proíbem (Paraguai, Venezuela, Argentina, Chile, Equador). É chegado o momento de nos posicionarmos em favor do não sofrimento inútil do ser humano. O pior que se pode sugerir (ou impor) no mundo atual é que alguém padeça sofrimentos inúteis.

O Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), órgão consultivo da Presidência da República, acaba de se manifestar favoravelmente ao aborto por anencefalia. Que nossa Corte Suprema, que vai decidir a matéria em breve, ilumine a questão com razoabilidade e solidariedade.