A falácia do combate ao crime
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Nos
tempos atuais, em que tanto se fala em "combate" ou
"guerra" ao crime organizado, é necessário abrir os olhos da
população brasileira para a histeria criada por certos setores em relação a
esse tema. Será que esse discurso político-governamental não é apenas uma
satisfação simbólica que visa esconder as verdadeiras causas da criminalidade
urbana e mascarar a incompetência do Estado em combater a violência? Sem
programas destinados a mitigar as graves desigualdades sociais e o crescente
desemprego, a opção do crime será sempre atraente aos jovens dos grandes
centros urbanos. É por isso que ilusória presença do Estado como garantidor
da lei e da ordem não passa de uma falácia enquanto todo o sistema não for
reestruturado, promovendo crescimento econômico, geração de empregos,
investimentos em educação e melhoria das condições de vida da população.
Todas as medidas que forem tomadas em termos de segurança pública só surtirão
efeitos se acompanhadas de ações de alcance social. Em longo prazo, o
investimento em políticas sociais trará mais resultados do que aquisições de
viaturas e armamentos, criação de delegacias especializadas, promulgação de
leis ineficazes, construção de novos presídios e discursos inflamados da lei
e da ordem. Nesse sentido, JUAREZ CIRINO DOS SANTOS alerta que a resposta
penal contra o chamado crime organizado é mais ou menos semelhante em toda
parte: maior rigor repressivo, introdução de novas modalidades de prisões
cautelares, instituição de "prêmio" ao acusado colaborador, criação
de programas de proteção de testemunhas... A experiência mostra que essa
resposta penal se situa no plano simbólico, como satisfação retórica à
opinião pública pela estigmatização oficial do crime organizado, mas tem sua
utilidade: cumpre o papel de evitar discussões sobre o modelo político neoliberal
dominante nas sociedades contemporâneas, ocultando responsabilidades do
capital financeiro internacional, aliado às elites conservadoras dos países
do Terceiro Mundo, na criação de condições adequadas à expansão da
criminalidade em geral e, eventualmente, de organizações locais de tipo
mafioso ("Crime Organizado", in Direito Penal e Direito
Processual Penal – Uma Visão Garantista, RJ, Editora Lumen Juris, 2001, p.
148). A
Lei n. 9.034/95 – instituída para combater o crime organizado no Brasil - sequer
foi capaz de definir o que seria crime organizado e acabou aproximando esse
conceito do crime de quadrilha ou bando. Nessa época, CARLOS ALBERTO MARCHI
DE QUEIROZ afirmou que só resta lamentar que o legislador penal nacional
não tenha colocado nas mãos dos operadores do Direito uma definição mais
transparente de organizações criminosas" (Crime Organizado no
Brasil, SP, Editora Iglu, 1998, pág. 18). Tal fato só reflete a falta de
estudo empírico e criminológico para responder à indagação sobre a efetiva
existência do fenômeno do crime organizado no Brasil. Esse dispositivo legal
teve recente modificação ocasionada pela Lei n. 10.217/01 que tornou o
conceito de crime organizado ainda mais confuso. Para LUIZ FLÁVIO GOMES, o
advento do novo texto legal acabou eliminando a eficácia de inúmeros
dispositivos legais contidos na Lei n. 9.034/95. E explica: "Se as
leis do crime organizado no Brasil (Lei n. 9.034/95 e Lei 10.217/01), que
existem para definir o que se entende por organização criminosa, não nos explicaram
o que é isso, não cabe outra conclusão: desde 12.04.01 perderam a eficácia
todos os dispositivos legais fundados nesse conceito que ninguém sabe o que
é" (in "Crime Organizado: que se entende por isso depois
da Lei n. 10.217, de 11.04.01?", disponível na Internet: http://www.ibccrim.org.br,
26.10.2001). Debates
doutrinários à parte, fato é que a política criminal contra o indefinível
crime organizado está equivocada. Antes da propaganda política e da algazarra
da mídia é preciso reestruturar as instituições que atuam na esfera da
repressão à criminalidade. É necessário repensar a polícia e aparelhar a
Justiça Criminal. Fácil é de constatar que a situação das polícias estaduais
é caótica. Historicamente, as instituições policiais brasileiras foram sendo
enfraquecidas, divididas e desacreditadas. É possível ver um objetivo por
trás disso. Não se sabe até que ponto interessa aos detentores do poder a
criação de uma polícia única, forte, autônoma, equipada e bem paga. Favores
políticos não poderiam ser cobrados e até mesmo os "amigos do Rei"
seriam punidos. A ingerência governamental e o sucateamento das forças
policiais atende a interesses ocultos previamente definidos. Os diversos
órgãos fiscalizadores do Poder Executivo também se encontram em situação
penosa. Assim, a Receita Federal, o INSS e o Ministério do Trabalho têm
funções importantíssimas no sentido de obter informações e coibir fraudes no
seio do Estado brasileiro. A falta de pessoal, de estrutura e os entraves
burocráticos atrapalham a atuação desses mecanismos de controle. O Poder
Judiciário, por sua vez, encontra-se em avançado estado de falência. A
prescrição alcança um número incontável de processos antes que sejam
julgados. O descrédito da sociedade com o Poder Judiciário é refletido na
demora com que a justiça é feita. Após a Constituição Federal de 1988, o
Ministério Público foi visto como a tábua de salvação da sociedade
brasileira. Cercado de garantias constitucionais, autonomia financeira e
administrativa e longe das ingerências do Poder Executivo, o parquet deu
importante contribuição na luta pela legalidade. Entretanto, sem controle
externo e com amplos poderes, o Ministério Público acabou perdendo o rumo e
exorbitou de suas atribuições, entrando em maléfica disputa com as polícias,
o Poder Judiciário e outros órgãos fiscalizadores É preciso ter em mente que
não é o atropelo de atribuições que fará a sociedade vencer a luta contra o
crime. É preciso preservar todas as instituições, reestruturá-las e definir
formas de atuação. Em
termos de resposta penal, o sistema jurídico brasileiro não traz soluções
adequadas, apresentando diversos problemas estruturais. Nossa legislação
penal parece sofrer de grave esquizofrenia. De um lado, temos uma
constituição "cidadã" que nos oferece um extenso rol de direitos e
garantias individuais. Por outro, uma legislação penal e processual
deficiente e arcaica, oriunda de uma época de exceção, de um Estado
totalitário. Além disso, o legislador atual anda furioso, legislando sem
parar, atendendo aos anseios do movimento da lei e da ordem. Resultado disso
é a ofensa direta aos fundamentos constitucionais do Estado Democrático do
Direito. Se o descompasso entre o doutrina do direito penal mínimo e
os anseios da sociedade são visíveis, há outros fatores que influenciam para
que o clima de violência e insegurança predomine. Isso porque, independente
de um direito penal mínimo ou máximo, as leis existentes devem ser
rigorosamente aplicadas, a certeza da punição deve prevalecer e a eficiência
dos órgãos estatais deve ser colocada em xeque. Nesse compasso, DAMÁSIO E. DE
JESUS definiu bem a questão: "O Direito Penal desemboca na cadeia. Se
ela não é segura, não adianta alterar um milhão de vezes a legislação penal.
Nem agravar as penas. Nem instituir a prisão perpétua" (in
"Aumento da violência e impunidade", disponível na Internet: http://www.damasio.com.br, fev. 2002). Ilustrando
esse caos legislativo, o art. 3.º da Lei n.º 9.034/95 criou uma nova figura
de juiz inquisidor em pleno processo penal acusatório. Tal lei teve
como origem a vinda de juízes italianos para o Brasil para retratar a
experiência da Justiça italiana contra as conhecidas máfias locais.
Encantado, o legislador brasileiro resolveu simplesmente copiar o modelo
italiano, sem se preocupar com a técnica processual e o vigente sistema de
investigação criminal. Sobre isso, PERCIVAL DE SOUZA escreveu que nossos
legisladores têm a cabeça no continente europeu e o resto do corpo em país
de terceiro mundo, pois copiam ensinamentos de autores estrangeiros,
vivem de citações e não demonstram preocupação em adequar a lei à realidade
nacional. Manifestando-se
a respeito dos poderes instrutórios conferidos ao juiz pela Lei n.º 9.034/95
durante os debates promovidos pelo Instituto Brasileiro de Ciências
Criminais, LUIZ FLÁVIO GOMES chegou a comentar que o poder político
brasileiro, ao constatar a falência da Polícia e das Forças Armadas no
combate ao crime organizado, buscou no juiz de Direito a figura necessária
para esse combate, que poderá vir a ser realizado por magistrados sem
qualquer tipo de experiência ou recursos, verdadeiros ‘delegados frustrados’ (sic).
Nesse sentido, o Promotor de Justiça mineiro Thales Tácito Pontes Luz de
Pádua Cerqueira condena a investigação levada a efeito pelo juiz, afirmando
que a CF/88 vedou a prática de atos típicos de parte, procurando preservar
sua imparcialidade" (in "Combate às Organizações
Criminosas: A Sociedade em Perigo Virtual", disponível na Internet: http://www.ibccrim.org.br).
O Delegado de Polícia paulista CARLOS ALBERTO MARCHI DE QUEIROZ ponderou no
mesmo sentido, acrescentando que o combate ao crime organizado, em todo o
mundo, é assunto para profissionais de Polícia, nunca para juízes de Direito,
que, no Brasil, seriam alvos muito mais fáceis do que os históricos Chinnici,
Livatino, Falcone e Borsellino, face à nossa geografia física,
referindo-se aos célebres casos em que a Máfia italiana assassinou os
principais agentes públicos empenhados no combate à criminalidade organizada
naquele país (Crime Organizado no Brasil, Editora Iglu, SP, p. 83). Para
LEONARDO SICA, "a falácia está em ‘importar’ o modelo italiano,
fazendo crer que os sucessos lá obtidos estão ligados a provimentos
legislativos, quando, em verdade, o sucesso na perseguição de alguns mafiosos
deu-se mais pela decisão de colocar em funcionamento o sistema existente,
acelerando inquéritos, aparelhando melhor as polícias, etc., enfim, com
empenho político" (in "Medidas de Emergência, Violência
e Crime Organizado", publicado no Boletim IBCCRIM n. 126, maio de 2003).
O que o legislador brasileiro fez foi criar um "simulacro" de
juizado de instrução, enquanto que a tendência moderna é exatamente oposta.
Esse modelo está em descrédito e decadência, tendo sido abandonado na Itália
e duramente questionado na Espanha. Outra
inovação perigosa surgiu com a Lei n.10.217/01 que introduziu na legislação
processual pátria a infiltração de agentes de polícia ou "de
inteligência" no crime organizado, com o objetivo de colher provas,
mediante "circunstanciada" autorização judicial. A começar, o
dispositivo é falho por não prever corretamente quem poderá ser
infiltrado nas organizações criminosas. Deveria, sem dúvida, o legislador
obedecer ao art. 144 da Constituição Federal, que prevê a tarefa de
investigação às polícias judiciárias, isto é, à Polícia Federal e às polícias
civis estaduais. Assim, fazendo-se uma interpretação literal e sem
compromisso com o dispositivo constitucional, poderíamos ter o absurdo de ter
policial militar infiltrado em organizações criminosas com o
objetivo de colher provas (!). Esta tarefa é exclusiva da
polícia judiciária que visa colher os elementos mínimos à propositura da ação
penal pelo Ministério Público. É justamente por isso que o constituinte
atribui o controle externo da polícia judiciária ao parquet,
monitorando e fiscalizando ações policiais investigatórias no intuito de
preservar o princípio da legalidade. Ações de infiltração em organizações
criminosas são de alto risco, que devem ser bem planejadas e executadas a
contento sob pena da inutilidade do dispositivo. Por força dos dispositivos
constitucionais, as policiais judiciárias são as únicas capazes de executar
tal tarefa. Também se critica a inclusão da expressão agentes "de
inteligência" no dispositivo da lei. Ora, é sabido que as agências de
inteligência não visam colher provas para o processo penal. Seu objetivo é
subsidiar os governos com informações colhidas em diversas áreas com o fim de
prevenir alterações no status quo vigente. Tanto é assim que as
primeiras agências de inteligências começaram a surgir no seio das Forças
Armadas. Portanto, se não visam colher provas, não há interesse do ponto de
vista jurídico de se autorizar a infiltração de agentes "de
inteligência" no crime organizado. Por último, a lei não autoriza os
agentes infiltrados a praticar crimes e com isso cria um perigoso vácuo
jurídico que pode inviabilizar a operação. Teria o legislador deixado essa
tormentosa questão ao prudente arbítrio do juiz, ao escrever que a
infiltração se fará mediante "circunstanciada" autorização
judicial? Mas, por outro lado, como poderá o magistrado "autorizar"
o agente infiltrado a praticar crimes? Do ponto de vista doutrinário, como
ficará a situação desse agente infiltrado se tiver que cometer ilícitos para
ser aceito na organização criminosa? Conforme demonstrado, as falhas e
omissões do legislador tornaram esse dispositivo inócuo. A
falácia do combate ao crime organizado assume várias formas. Seja no engodo
de fazer acreditar que toda a criminalidade violenta atual está ligada às
organizações criminosas, seja no atropelo de atribuições praticado pelos
órgãos de repressão do Estado. É necessário ter a sensibilidade para saber
diferenciar a criminalidade comum dos atos praticados pelo chamado crime
organizado. Em busca de notícias de primeira página, a imprensa procura em um
simples homicídio passional a conexão inexistente com um grupo de extermínio.
Da mesma forma, os crimes contra o patrimônio causados pelas graves
distorções sociais e pelo crescimento da miséria podem transformar-se em obra
arquitetada por sindicatos do crime de existência duvidosa. A conexão da
criminalidade com o Poder Público é sempre buscada numa histeria desenfreada
de provocar escândalo e atrair a atenção das classes A e B que não se
interessam por notícias corriqueiras. Por outro lado, visando dar uma
satisfação aos reclamos da mídia, os governantes anunciam a criação de
"forças-tarefa" para combater o que nem sempre existe. Aliás, uma
das maiores falácias da atualidade são essas "forças-tarefa"
criadas a esmo, sem objetivo definido, muitas vezes instituídas para promover
vaidades pessoais em detrimento das instituições. Nesse contexto, as disputas
corporativas crescem e o atropelo de atribuições campeia. As investigações
são sempre acompanhadas pela imprensa e o segredo tão pregado pela Lei n.
9.034/95 é esquecido para promover certos agentes públicos. Como resultado, a
conclusão das "forças-tarefa" é quase sempre a mesma: não se chega
a conclusão nenhuma. Mas a "fogueira das vaidades" também arde no
Legislativo brasileiro. Ao invés de ocupar-se com sua atribuição fundamental
de legislar corretamente, os representantes do povo criam CPI´s sob os mais
desvairados pretextos. Investiga-se o que já foi investigado, não raramente
convocam pessoas que não sabem dos fatos, compromissam investigados a dizer a
verdade e com isso ofendem direitos e garantias fundamentais, perseguem
inimigos políticos e proporcionam um belo e atraente espetáculo para a mídia. Em
meio a tudo isso ficam os operadores do direito e os agentes públicos, obviamente
fadados a fracassar em sua missão de garantir à população o direito
constitucional à segurança pública. Portanto, é fácil concluir que qualquer
ação de combate ao crime organizado passa, obrigatoriamente, pela
"organização" da sociedade dominante que deve procurar satisfazer
as necessidades reais e a vontade política dos cidadãos. |