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Do direito público subjetivo à saúde:
conceituação, previsão legal e aplicação na demanda de medicamentos em face do Estado-membro

 

 

Henrique Hoffmann Monteiro de Castro
Acadêmico de Direito na UFMG,monitor concursado de Direito Constitucional na Faculdade de Direito da UFMG, pesquisador no âmbito de Direito Constitucional,membro do Centro Acadêmico Afonso Pena – CAAP – FDUFMG

 

 I. Ab initio, necessário se faz dissertar sobre o conceito de saúde. Corresponde a um conjunto de preceitos higiênicos referentes aos cuidados em relação às funções orgânicas e à prevenção das doenças. "Em outras palavras, saúde significa estado normal e funcionamento correto de todos os órgãos do corpo humano" (1), sendo os medicamentos os responsáveis pelo restabelecimento das funções de um organismo eventualmente debilitado.

            Assim, o direito à saúde apresenta duas faces: uma de preservação da saúde e outra de proteção da saúde. Ferreira Filho leciona, com propriedade, que a primeira "(...) tem como contrapartida as políticas que visam à redução do risco de doença. E no seu prolongamento se situa o próprio direito a um meio ambiente sadio. Está aqui uma prevenção genérica, não individualizável, da doença". A proteção da saúde, a seu turno, "(...) é o direito, individual, à prevenção da doença, a seu tratamento e à recuperação do doente. Traduz-se no acesso aos serviços e ações destinados à recuperação do doente ou infirme". (2) O acesso da população a medicamentos obtidos junto ao Estado se coaduna, exatamente, com essa última face da saúde.

            II. Os ideais históricos de civilidade no âmbito da saúde foram consolidados com a Constituição de 1988, por meio da positivação dos direitos e garantias fundamentais, o que significou o estabelecimento constitucional dos direitos sociais disponíveis a todos os cidadãos. Isso significa dizer que todos os brasileiros podem e devem usufruir de políticas públicas que reduzam riscos e agravos à saúde e permitam o seu acesso universal e igualitário.

            É cediço que o direito público subjetivo à saúde se consubstancia como prerrogativa jurídica indisponível, representando bem jurídico constitucionalmente tutelado. Não custa enfatizar que faz parte do rol dos direitos fundamentais, inerentes ao chamado princípio da dignidade da pessoa humana. Nesse ponto, a nossa Constituição Federal – a Constituição Cidadã – rompeu com uma tradição que era cultivada pelas Constituições anteriores, ao cuidar dos direitos fundamentais logo em sua parte inicial, antes mesmo de tratar da organização nacional – que, anteriormente, inaugurava os textos magnos.

            Os direitos sociais listados no art. 6o da CF, destacando-se particularmente o direito à saúde, são justamente aqueles que buscam uma melhoria das condições de existência do indivíduo, mediante ações positivas do Estado. (3) O direito à saúde significa, então, o acesso universal e eqüânime a serviços e ações de promoção, proteção e recuperação da saúde.

            III. Entretanto, sobreleva notar que esse direito, como norma de ordem social estabelecida no art. 196 do texto constitucional, demanda intervenção legislativa para se tornar aplicável, pelo que não podem os seus destinatários exigi-lo imediatamente. Dessa forma, o Estado assume a responsabilidade na criação dos serviços necessários à saúde e o faz por via de normas infraconstitucionais.

            A partir da nova Constituição da República, várias iniciativas jurídico-institucionais foram criando as condições de viabilização plena do direito à saúde. Destacam-se, nesse sentido, a Lei nº 8.080/90 – organiza e estrutura o funcionamento dos serviços de saúde, a Portaria nº 3.916 – aprova a Política Nacional de Medicamentos, e a mais recente Norma Operacional da Assistência à Saúde, nº 01/2002 – NOAS-SUS 01/02, aprovada por Portaria do Ministério da Saúde e vem a suceder a Norma Operacional Básica do SUS, nº 01/96 – NOB-SUS 01/96.

            Com a supracitada Lei nº 8.080/90, ficou regulamentado o Sistema Único de Saúde - SUS, estabelecido pela Constituição Federal de 1988, sendo responsável por garantir o acesso pleno da população à saúde. O SUS foi concebido como um sistema, isto é, como um conjunto cujas partes encontram-se coordenadas entre si, funcionando como uma estrutura organizada, submetida a princípios e diretrizes fixados legalmente. Trata-se de uma rede regionalizada e hierarquizada de ações e serviços de saúde, através da qual o Poder Público cumpre seu dever na prestação do serviço público de atendimento à saúde. (4)

            A direção do Sistema Único de Saúde - SUS é única, de acordo com o inciso I do art. 198 da Constituição Federal, sendo exercida em cada esfera de governo pelos seguintes órgãos: I - no âmbito da União, pelo Ministério da Saúde, II - no âmbito dos Estados e do Distrito Federal, pelas respectivas Secretarias de Saúde ou órgãos equivalentes e III - no âmbito dos Municípios, pelas respectivas Secretarias de Saúde ou órgãos equivalentes.

            Cumpre esclarecer que, com o advento das Normas Operacionais do Sistema Único de Saúde, já reeditadas várias vezes, ocorreu uma redefinição dos papéis dos gestores estadual e federal, passando o Município a ser o responsável imediato pelo atendimento das necessidades e demandas de saúde de sua população – fenômeno conhecido como "municipalização da saúde". Busca-se, dessa forma, a responsabilidade crescente do Poder Público municipal, obedecendo-se à lógica de que o Município é o ente político estruturalmente mais próximo do cidadão e, por isso, deve prestar os serviços de saúde da atenção básica.

            Nesse âmbito, estabeleceu-se uma divisão de tarefas no que tange ao fornecimento de medicamentos, de maneira que o sistema básico de saúde fica a cargo dos Municípios (medicamentos básicos), o fornecimento de medicamentos classificados como extraordinários compete à União e os medicamentos ditos excepcionais são fornecidos pelos Estados. Percebe-se, claramente, a composição de um sistema único, que segue uma diretriz clara de descentralização, com direção única em cada esfera de governo. (5)

            IV. No entanto, num movimento paradoxal, tem-se notado, na prática, a reprodução incessante de ações judiciais com o intuito de desrespeitar a descentralização da gestão do sistema público de saúde. Vale citar, como exemplo, as demandas que visam a compelir o Estado-Membro a fornecer todo tipo de medicamentos – e não apenas os classificados como excepcionais - a pessoas carentes. Como se sabe, o fornecimento dos medicamentos não-excepcionais, segundo a repartição de obrigações fixada no âmbito do Poder Executivo, com diretrizes advindas do Ministério da Saúde, teoricamente caberia ao Município e à União, e não ao Estado Federado.

            Não cabe ao Estado-Membro, nesses casos, a legitimidade passiva ad causam, ou seja, não pode esse ente federado ser posicionado na lide de modo a sofrer os ônus dela decorrentes, quando julgado procedente o pedido.

            O acolhimento de tais pretensões levadas a juízo, via de regra, baseia-se no argumento de que se trata de um direito fundamental, não podendo um mero conjunto de leis e atos normativos da Administração Pública ou percalços processuais se erigir como obstáculo à efetivação de uma norma constitucional. Sustenta-se, geralmente, que existe uma responsabilidade solidária entre Municípios, Estados e União, colocando-se de lado todo um arcabouço normativo já construído sobre o tema.

            Primeiramente, sublinha-se que o programa de medicamentos excepcionais foi criado para atender patologias raras, crônicas e de difícil tratamento, ou de tratamento com custo muito elevado. O atendimento através do programa se dá de forma individualizada, com a montagem de um processo de solicitação, o que inviabiliza o atendimento de grandes massas populacionais.

            Além disso, não se justifica, para a proteção individual de um direito fundamental – a proteção à saúde – que se violem dispositivos legais e normativos estabelecidos para garantir, de forma racional, esse direito a todos. A distribuição gratuita de medicamentos por parte do Poder Público, através do Sistema Único de Saúde, deve ser realizada segundo algumas diretrizes e tendo em vista a garantia do mais eficaz tratamento ao maior número de pessoas possível.

            A realidade fática do nosso país não permite que se estabeleçam medidas de acesso à saúde que não respeitem a legislação vigente sobre o tema, destinando os recursos necessários às demandas da população para casos unilateralmente eleitos como prioritários. Uma vez que os recursos materiais e humanos para obtenção de serviços de saúde necessários aos munícipes já se encontram empregados segundo uma organização jurídico-administrativa, sobrepor-se a tais ditames significaria provocar um emprego dúplice de recursos para um mesmo fim, o que é vedado pela Lei nº 8.080/90, em seu artigo 7º, inciso XIII.

            Também não se pode esquecer que a competência para desenvolver as políticas públicas necessárias para garantia do direito à saúde cabe ao Poder Legislativo, por elaboração de leis, e ao Poder Executivo, através da definição de prioridades e escolha dos meios para sua realização. Não se admite, ao Poder Judiciário, a pronúncia sobre o mérito administrativo, ou seja, sobre a conveniência, oportunidade, eficiência ou justiça do ato, por que se assim agisse, estaria emitindo pronunciamento de administração e não de jurisdição judicial. (6)

            Cabe somente ao legislador decidir sobre a aplicação dos recursos públicos, o que não implica em desqualificar os direitos sociais como fundamentais, já que o Poder Judiciário deverá, quando provocado, verificar se as ações dos demais poderes adequam-se ou não aos comandos constitucionais. O que não se admite é que o Poder Judiciário decida o destino dos parcos recursos financeiros existentes.

            V. É imperioso relatar que o Estado não "optou" por seguir os parâmetros nacionais de fornecimento da medicação. Configura-se uma submissão aos princípios constitucionalmente prescritos da legalidade e da impessoalidade, fazendo-se presente, também, a necessidade de observância de imperativos como o da economicidade na seleção/aquisição/dispensação de medicamentos em face do custo/benefício.

            Não cabe ao Ministério Público, ao Poder Judiciário ou a qualquer profissional da área médica estranho ao setor público, de maneira isolada, decidir ou opinar em desconformidade com tais critérios. A determinação, pelo Poder Judiciário, dos meios pelos quais serão realizadas as políticas públicas de saúde, sem a consideração dos complexos aspectos jurídico-administrativos previamente fixados pelo Poder Executivo, gera um perigo iminente de lesão à ordem pública. Faz-se necessário o respeito ao princípio jurídico da separação de poderes, verdadeiro sustentáculo de nossa República Federativa.

            Assim, não há como obrigar o Estado da Federação a fornecer determinado tipo de medicamento que não se enquadre em sua atribuição, segundo os preceitos da Política Nacional de Medicamentos, ditados pelo Ministério da Saúde.

            O indeferimento de um pedido para fornecimento de um medicamento, quando requisitado junto à esfera de poder inadequada, não significa negar o direito à proteção da saúde, mas resguardar o interesse do paciente, com procedimentos de fiscalização necessários, dentro dos limites para o funcionamento do Sistema Único de Saúde. Não é prudente compelir o ente político estadual a realizar vultosos gastos, em detrimento daqueles que legalmente lhe competem, para atendimento de pleito que extrapola sua seara de atuação no SUS.

            Deve-se atentar para o fato de que as políticas de promoção e acesso a medicamentos são de realização progressiva. O atendimento de um direito social, como é o caso do direito à saúde, pelo acesso a medicamentos, sempre é confrontado por demandas múltiplas e crescentes, em face de restrições operacionais e orçamentárias.

            VI. Conclui-se, portanto, que o intervencionismo do Poder Judiciário na órbita de fornecimento de remédios que venha a estabelecer o desrespeito ao referido sistema de saúde pode colocar por água abaixo todos os esforços organizacionais do Poder Executivo e vulnerar todo o arcabouço legal relativo às regras do Sistema Único de Saúde.

            É bem verdade que toda divisão de competências pode se tornar um obstáculo burocrático para o cidadão que pleiteia algum direito, se o demandante não requisitar a tutela ao competente ente federado; trata-se, porém, de uma estruturação necessária para dividir gastos entre os entes públicos e garantir a tutela eficaz do direito subjetivo em questão.

            A ameaça da realização de gastos exorbitantes, em decorrência do desrespeito aos diplomas normativos consolidados sobre o tema de acesso à saúde, é um risco que pode ser minimizado pela observância integral das normas do SUS, emanadas de leis e atos normativos pertinentes. Somente assim, mantém-se um sistema regido pelo interesse público e balizado, por um lado, pelas exigências da universalidade e da eqüidade e, por outro, pela própria limitação de recursos, que deve ser programaticamente respeitada.


Notas:

            1 SOARES, Orlando. Comentários à Constituição da República Federativa do Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 1993.

            2FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição Brasileira de 1988 – Vol. IV. São Paulo: Saraiva, 1990-95.

            3 CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional Didático. Belo Horizonte: Del Rey, 1999.

            4 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2003.

            5 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2003.

            6 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 1997.

Retirado de: http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=6783