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O FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO E
A LEI N. 10.628/2002

 

Hugo Nigro Mazzilli
Janeiro/2003

 

A Constituição e as leis estabelecem, em diversas hipóteses, foro por prerrogativa de função: a) em matéria penal (v. g., crimes comuns e de responsabilidade praticados por algumas autoridades); b) em matéria civil (v. g., mandados de segurança e de injunção).

Por muitos anos, o também chamado privilégio de foro em matéria penal foi estendido por via jurisprudencial para os crimes cometidos durante o exercício funcional, ainda que o inquérito ou a ação penal viessem a ser iniciados após a cessação daquele exercício: essa foi a orientação do Supremo Tribunal Federal (STF), por meio de sua Súmula n. 394, editada em 1964.

Basicamente, dois foram os argumentos que levaram à edição da Súmula n. 394, ambos supostamente voltados para melhor proteção do exercício da função pública: a) o julgamento dos mais altos tribunais seria mais imparcial ou isento do que o dos juízes de primeiro grau; b) a prorrogação da competência dos tribunais superiores, mesmo depois de cessado o exercício funcional, não deixava de ser uma maneira de proteger o próprio exercício da função pública.

Façamos a análise crítica do primeiro argumento.

Na ocasião da edição da Súmula n. 394, prevaleceu o entendimento de que, nas palavras do Min. Vítor Nunes Leal, a competência por prerrogativa de função realmente devia ser instituída não no interesse pessoal do ocupante do cargo, mas no interesse público do seu bom exercício, isto é, do seu exercício com o alto grau de independência que resulta da certeza de que seus atos venham a ser julgados com plenas garantias e completa imparcialidade. Isso porque presumia o legislador que os tribunais de maior categoria teriam mais isenção para julgar os ocupantes de determinadas funções públicas, por sua capacidade de resistir, seja à eventual influência do próprio acusado, seja às influências que atuassem contra ele. A presumida independência do tribunal de superior hierarquia seria, pois, uma garantia bilateral, garantia contra e a favor do acusado.

Forçoso é reconhecer, entretanto, que essa argumentação parte de uma tese que está muito longe de ser demonstrada (de que os tribunais superiores são mais imparciais que os juízes singulares, já que estes últimos são nomeados por concurso público de provas e títulos, enquanto o Procurador-Geral da República e os Ministros dos maiores tribunais são nomeados livremente pelos próprios administradores e políticos cuja impunidade eles podem assegurar)…

Passemos à análise do segundo argumento.

Sustentou-se que a Súmula n. 394, ao menos de forma indireta, também protegia o exercício do cargo ou do mandato, se durante ele o delito fosse praticado e o acusado não mais os exercesse. É inegável que essa argumentação, pelo menos durante algum tempo, pareceu relevante ao STF, pois foi ela que justificou a manutenção da súmula durante várias décadas, mesmo com a troca de tantos ministros.

Entretanto, após o advento da Constituição de 1988, os tempos mudaram. O regime democrático renasceu. As ações penais e de improbidade contra os políticos e administradores, que antes eram verdadeira raridade, passaram a ser mais comuns. Não que os administradores atuais tivessem passado a ser menos honestos do que os de antigamente, mas é que o Ministério Público ganhou maior independência com a Constituição de 1988[1] e as investigações e ações começaram a virar rotina, o que num país democrático não deveria, aliás, causar maior perplexidade…

Assim, e por força dos novos tempos, em 1999 finalmente o STF resolveu cancelar a Súmula n. 394, por entender que o art. 102, I, b, da CF – que estabelece a competência dessa Corte para processar e julgar originariamente, nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República – não alcança aquelas pessoas que não mais exerçam mandato ou cargo[2].

Em suma, ao revogar sua Súmula n. 394, o STF corretamente passou a entender que “a prerrogativa de foro visa a garantir o exercício do cargo ou do mandato, e não a proteger quem o exerce. Menos ainda quem deixa de exercê-lo. Também pesou o fato de que a prerrogativa de foro perante a Corte Suprema, como expressa na Constituição brasileira, mesmo para os que se encontrem no exercício do cargo ou mandato, não é encontradiça no Direito Constitucional comparado. Menos, ainda, para ex-exercentes de cargos ou mandatos. Ademais, as prerrogativas de foro, pelo privilégio, que, de certa forma, conferem, não devem ser interpretadas ampliativamente, numa Constituição que pretende tratar igualmente os cidadãos comuns, como são, também, os ex-exercentes de tais cargos ou mandatos[3].

Revogada a Súmula n. 394, o Presidente da República, os parlamentares se sentiram como na história do rei que fica nu… Antes protegidos por uma regra de foro por prerrogativa de função, que concentrava o poder de investigá-los e processá-los nas mãos do Procurador-Geral da República e dos altos tribunais (cujos integrantes são nomeados pelo Presidente da República e aprovados pelo Senado, podendo o Procurador-Geral ser reconduzido indefinidamente), de uma hora para outra essas autoridades passaram a tornar-se, de forma inédita, meros cidadãos comuns… Que acinte!

O foro especial por prerrogativa de função deixaria de existir, só porque tinham deixado de existir as funções…

Então, por que não buscar por novas vias jurisprudenciais ou até por alteração legislativa aquilo que o STF lhes tinha dado por meio da Súmula n. 394, e depois, infelizmente, negado, quando revogada a referida súmula?

Nessa linha, duas providências foram seguidas pelos interessados em beneficiar-se com o foro por prerrogativa de função: a) apresentaram reclamação ao STF, pedindo reconhecesse que as ações de improbidade, fundadas na Lei n. 8.429/92, envolviam autêntico crime de responsabilidade, sendo, assim, de competência originária dos tribunais pertinentes; b) apresentaram proposta de alteração legislativa para ampliar o foro por prerrogativa de função (mudanças na redação do art. 84 do Código de Processo Penal).

O primeiro caminho foi cursado por meio da Recl n. 2.138-6-DF, apresentada ao STF (caso do Min. Ronaldo Sardenberg, ainda não julgado, mas que, no momento presente, já conta com 5 votos favoráveis ao foro por prerrogativa de função nas ações da Lei n. 8.429/92).

A esse propósito, já anotamos que, de fato, nada impede que as ações cíveis de improbidade sejam propostas perante qualquer juiz singular, contra quaisquer autoridades[4], salvo se envolverem pedido de perda de cargo ou função pública, ou se envolverem pedido de suspensão de direitos políticos, pois nestes casos as autoridades que têm forma própria de investidura e destituição só podem ser assim sancionadas pelo procedimento instituído na própria Constituição, como é o caso do impeachment, e então o foro originário será mesmo o mais alto[5].

O segundo caminho (alteração legislativa do art. 84 do CPP) foi urdido com a urgência própria de fim de mandato, com o objetivo de que o foro por prerrogativa de função ficasse assegurado aos exercentes de funções públicas, mesmo depois de cessada a investidura… E, num assomo de criatividade, os parlamentares ainda acrescentaram, et pour cause, que o foro por prerrogativa de função (e agora, a novidade esdrúxula do foro por prerrogativa de ex-função) se estenderia não só à matéria criminal, mas até para quaisquer infrações cíveis previstas na lei de improbidade administrativa (Lei n. 8.429/92).

Com isso, foi editada, e sancionada no dia de se trocarem presentes de Natal, a Lei n. 10.628, de 24 de dezembro de 2002, publicada no DOU de 26.12.2002. Por força dela, assim ficou redigido o art. 84 do CPP:

“Art. 84. A competência pela prerrogativa de função é do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais Regionais Federais e Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, relativamente às pessoas que devam responder perante eles por crimes comuns e de responsabilidade.

§ 1.º A competência especial por prerrogativa de função, relativa a atos administrativos do agente, prevalece ainda que o inquérito ou a ação judicial sejam iniciados após a cessação do exercício da função pública.

§ 2.º A ação de improbidade, de que trata a Lei n. 8.429, de 2 de junho de 1992, será proposta perante o tribunal competente para processar e julgar criminalmente o funcionário ou autoridade na hipótese de prerrogativa de foro em razão do exercício de função pública, observado o disposto no § 1.º.”

Não obstante o advento da Lei n. 10.628/02, resta dizer que, em matéria de ação civil pública ou coletiva, assim como também já ocorre no tocante às ações populares, a competência originária para conhecê-las e julgá-las (ressalvada apenas a hipótese de pedido para perda do cargo ou suspensão de direitos políticos) não é dos tribunais e sim dos juízes singulares mesmo quando movidas contra o Presidente da República, Presidente do Senado, da Câmara, do STF, ministros, deputados, senadores, governadores, procuradores-gerais, desembargadores ou qualquer outra autoridade que goze de foro por prerrogativa de função na área penal ou em mandado de segurança. Assim, como já decidiu a maior Corte, “a competência do STF é de direito estrito e decorre da Constituição, que a restringe aos casos enumerados no art. 102 e incisos. A circunstância de o Presidente da República estar sujeito à jurisdição da Corte, para os feitos criminais e mandados de segurança, não desloca para esta o exercício da competência originária em relação às demais ações propostas contra ato da referida autoridade[6]. Com efeito, as ações civis públicas ou coletivas, que tenham como rés autoridades com foro por prerrogativa de função na área penal ou em mandados de segurança, correrão perante o juiz singular comum, com competência cível, e não perante os tribunais. Teve toda a razão, pois, o STF, ao proclamar que lhe falece competência para julgar ações civis públicas contra autoridades a ele diretamente submetidas no foro penal[7].

Segundo cremos, esse posicionamento não deve mudar, mesmo com o advento da Lei n. 10.628/02, ressalvada apenas a competência originária dos tribunais para as ações de improbidade que visem à perda da função pública ou suspensão de direitos políticos, caso em que somente os tribunais a quem caiba julgar crimes de responsabilidade podem impor essas sanções.

Em suma, a Lei n. 10.628/02 é apenas mais uma atitude própria da cultura de privilégios que infelizmente tem sido freqüente em nosso país, pois os administradores e parlamentares não se conformam em ser processados, mesmo na área cível e ainda que depois de terem deixado os cargos, perante os mesmos juízes que julgam os demais brasileiros. Em suma, quiseram o administrador e os parlamentares repristinar a Súmula n. 394-STF, aliás, com tardança revogada, a qual permitia que o foro penal por prerrogativa de função continuasse a existir… mesmo que não mais existisse função alguma… E quiseram ainda mais, ou seja, estabelecer agora também foro cível por prerrogativa de função, ainda que também não exista função alguma

A Lei n. 10.628/02, porém, descurou estes óbices: a) a competência do STF e do STJ é definida tão-somente pela própria Constituição, de forma que é inconstitucional ampliar a competência dessas Cortes por meio de mera alteração ao CPP; b) o foro por prerrogativa de função existe para resguardar o exercício da função, não para resguardar a pessoa em si, fora do exercício da função, o que é inequivocamente o objeto da referida alteração legislativa; c) se houve razões pelas quais a Lei Maior assegurou foro por prerrogativa de função para alguns exercentes de cargo público, essas mesmas razões deixam de existir quando cesse o exercício da função; assim, em vista da violação ao princípio da igualdade, é também por isso inconstitucional prever foro por prerrogativa de função para quem não tem função pública…

Em nosso entender, estas são as conclusões a extrair de tudo quanto se disse até aqui:

a) nas ações de improbidade fundadas na Lei n. 8.429/92, em que o pedido envolva perda da função pública ou suspensão de direitos políticos, se a autoridade requerida estiver entre aquelas para as quais haja forma própria de investidura e destituição prevista na Constituição, o foro será o da ação por crime de responsabilidade[8];

b) para as ações de improbidade fundadas na Lei n. 8.429/92, em que o pedido envolva apenas e tão-somente a defesa do erário, a competência em primeiro grau de jurisdição será de juízes singulares, da mesma forma que já ocorre com as ações populares com o mesmo objeto;

c) nas ações penais ou civis públicas, em que haja foro por prerrogativa de função, uma vez cessado o exercício desta, não prevalece o foro do STF ou do STJ, apesar do que vem disposto na Lei n. 10.628/02, pois não pode uma lei ordinária ampliar a competência constitucional dessas Cortes.


[1] V. nosso Regime jurídico do Ministério Público. 5.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2001.

[2] Inq 687-SP QO, caso Jabes Pinto Rabelo, rel. Min. Sydney Sanches; Informativo STF n. 159.

[3] Inq 687-SP QO, voto do Min. Sydney Sanches.

[4] A defesa dos interesses difusos em juízo. 15.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002. Cap. 15.

[5] Regime jurídico do Ministério Público. Op. cit. p. 292 e s.

[6] RTJ 159/28, rel. Min. Ilmar Galvão; Informativo STF n. 172.

[7] em Recl n. 1.110-DF, STF, j. 25.11.1999, rel. Min. Celso de Mello, Informativo STF n. 172; no mesmo sentido, RTJ 173/570, 159/28, 166/785, 151/402; Inq n. 1.504-DF-STF; Recl n. 591-STJ, DJU, 15.5.2000, p. 112, Corte Especial do STJ, rel. Min. Nilson Naves; Recl n. 580-GO, Corte Especial STJ, j. 17.10.2001, m.v., rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, DJU 18.2.2002, p. 210.

[8] Essa questão pende de julgamento do STF na Recl n. 2.138-6-DF.


Como citar este artigo:
MAZZILLI, Hugo Nigro. O Foro por Prerrogativa de Função e a Lei n. 10.628/2002.

 

Disponível em < http://www.damasio.com.br/?page_name=art_038_2003&category_id=33>

Acesso:25/07/06