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Hugo Nigro
Mazzilli
Janeiro/2003
A Constituição e as leis estabelecem,
em diversas hipóteses, foro por prerrogativa de função: a) em matéria penal (v. g., crimes comuns e de responsabilidade praticados
por algumas autoridades); b) em matéria civil (v. g., mandados de
segurança e de injunção).
Por muitos anos, o também chamado privilégio
de foro em matéria penal foi estendido por via jurisprudencial para os
crimes cometidos durante o exercício funcional, ainda que o inquérito ou a ação
penal viessem a ser iniciados após a cessação daquele exercício: essa foi a orientação do Supremo Tribunal Federal (STF), por meio de
sua Súmula n. 394, editada em 1964.
Basicamente, dois foram os argumentos
que levaram à edição da Súmula n. 394, ambos supostamente voltados para melhor
proteção do exercício da função pública: a) o julgamento dos mais altos
tribunais seria mais imparcial ou isento do que o dos juízes de primeiro grau;
b) a prorrogação da competência dos tribunais superiores, mesmo depois de
cessado o exercício funcional, não deixava de ser uma maneira de proteger o
próprio exercício da função pública.
Façamos a
análise crítica do primeiro argumento.
Na ocasião da edição da Súmula n.
394, prevaleceu o entendimento de que, nas palavras do Min. Vítor Nunes Leal, a
competência por prerrogativa de função realmente devia ser instituída não no
interesse pessoal do ocupante do cargo, mas no interesse público do seu bom
exercício, isto é, do seu exercício com o alto grau de independência que
resulta da certeza de que seus atos venham a ser julgados com plenas garantias
e completa imparcialidade. Isso porque presumia o legislador que os tribunais
de maior categoria teriam mais isenção para julgar os ocupantes de determinadas
funções públicas, por sua capacidade de resistir, seja à eventual influência do
próprio acusado, seja às influências que atuassem contra ele. A presumida
independência do tribunal de superior hierarquia seria, pois, uma garantia
bilateral, garantia contra e a favor do acusado.
Forçoso é reconhecer, entretanto, que
essa argumentação parte de uma tese que está muito longe de ser demonstrada (de
que os tribunais superiores são mais imparciais que os juízes singulares, já
que estes últimos são nomeados por concurso público de provas e títulos,
enquanto o Procurador-Geral da República e os Ministros dos maiores tribunais
são nomeados livremente pelos próprios administradores e políticos cuja
impunidade eles podem assegurar)…
Passemos à análise do segundo
argumento.
Sustentou-se que a Súmula n. 394, ao
menos de forma indireta, também protegia o exercício do cargo ou do mandato, se
durante ele o delito fosse praticado e o acusado não mais os exercesse. É
inegável que essa argumentação, pelo menos durante algum tempo, pareceu
relevante ao STF, pois foi ela que justificou a manutenção da súmula durante
várias décadas, mesmo com a troca de tantos ministros.
Entretanto, após o advento da
Constituição de 1988, os tempos mudaram. O regime democrático renasceu. As
ações penais e de improbidade contra os políticos e administradores, que antes
eram verdadeira raridade, passaram a ser mais comuns. Não que os administradores
atuais tivessem passado a ser menos honestos do que os de antigamente, mas é
que o Ministério Público ganhou maior independência com a Constituição de 1988[1] e as investigações e ações começaram a
virar rotina, o que num país democrático não deveria, aliás, causar maior
perplexidade…
Assim, e por força dos novos tempos,
em 1999 finalmente o STF resolveu cancelar a Súmula n. 394, por entender que o
art. 102, I, b, da CF – que estabelece a competência dessa Corte para
processar e julgar originariamente, nas infrações penais comuns, o Presidente
da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus
próprios Ministros e o Procurador-Geral da República – não alcança aquelas
pessoas que não mais exerçam mandato ou cargo[2].
Em suma, ao revogar sua Súmula n.
394, o STF corretamente passou a entender que “a prerrogativa de foro visa a
garantir o exercício do cargo ou do mandato, e não a proteger quem o exerce.
Menos ainda quem deixa de exercê-lo. Também pesou o fato de que a prerrogativa
de foro perante a Corte Suprema, como expressa na Constituição brasileira,
mesmo para os que se encontrem no exercício do cargo ou mandato, não é
encontradiça no Direito Constitucional comparado. Menos, ainda, para ex-exercentes de cargos ou mandatos. Ademais, as prerrogativas
de foro, pelo privilégio, que, de certa forma, conferem, não devem ser
interpretadas ampliativamente, numa Constituição que pretende tratar igualmente
os cidadãos comuns, como são, também, os ex-exercentes
de tais cargos ou mandatos”[3].
Revogada a Súmula n. 394, o
Presidente da República, os parlamentares se sentiram como na história do rei
que fica nu… Antes protegidos por uma regra de foro por prerrogativa de função,
que concentrava o poder de investigá-los e processá-los nas mãos do
Procurador-Geral da República e dos altos tribunais (cujos integrantes são
nomeados pelo Presidente da República e aprovados pelo Senado, podendo o
Procurador-Geral ser reconduzido indefinidamente), de uma hora para outra essas
autoridades passaram a tornar-se, de forma inédita,
meros cidadãos comuns… Que acinte!
O foro especial por prerrogativa de
função deixaria de existir, só porque tinham deixado de existir as funções…
Então, por que não buscar por novas
vias jurisprudenciais ou até por alteração legislativa aquilo que o STF lhes
tinha dado por meio da Súmula n. 394, e depois, infelizmente, negado, quando
revogada a referida súmula?
Nessa linha, duas providências foram
seguidas pelos interessados em beneficiar-se com o foro por prerrogativa de
função: a) apresentaram reclamação ao STF, pedindo reconhecesse que as ações de
improbidade, fundadas na Lei n. 8.429/92, envolviam autêntico crime de
responsabilidade, sendo, assim, de competência originária dos tribunais
pertinentes; b) apresentaram proposta de alteração legislativa para
ampliar o foro por prerrogativa de função (mudanças na redação do art. 84 do
Código de Processo Penal).
O primeiro caminho foi cursado por
meio da Recl n. 2.138-6-DF, apresentada ao STF (caso
do Min. Ronaldo Sardenberg, ainda não julgado, mas
que, no momento presente, já conta com 5 votos
favoráveis ao foro por prerrogativa de função nas ações da Lei n. 8.429/92).
A esse propósito, já anotamos que, de
fato, nada impede que as ações cíveis de improbidade sejam propostas perante
qualquer juiz singular, contra quaisquer autoridades[4], salvo se envolverem pedido de perda de
cargo ou função pública, ou se envolverem pedido de suspensão de direitos
políticos, pois nestes casos as autoridades que têm forma própria de
investidura e destituição só podem ser assim sancionadas pelo procedimento
instituído na própria Constituição, como é o caso do impeachment, e
então o foro originário será mesmo o mais alto[5].
O segundo caminho (alteração
legislativa do art. 84 do CPP) foi urdido com a urgência própria de fim de
mandato, com o objetivo de que o foro por prerrogativa de função ficasse
assegurado aos exercentes de funções públicas, mesmo
depois de cessada a investidura… E, num assomo de criatividade, os
parlamentares ainda acrescentaram, et pour cause, que o foro por prerrogativa de função (e
agora, a novidade esdrúxula do foro por prerrogativa de ex-função) se
estenderia não só à matéria criminal, mas até para quaisquer infrações cíveis
previstas na lei de improbidade administrativa (Lei n. 8.429/92).
Com isso, foi editada, e sancionada
no dia de se trocarem presentes de Natal, a Lei n. 10.628, de 24 de
dezembro de 2002, publicada no DOU de 26.12.2002. Por força dela, assim
ficou redigido o art. 84 do CPP:
“Art.
§ 1.º A
competência especial por prerrogativa de função, relativa a atos
administrativos do agente, prevalece ainda que o inquérito ou a ação judicial
sejam iniciados após a cessação do exercício da função pública.
§ 2.º A ação
de improbidade, de que trata a Lei n. 8.429, de 2 de junho de 1992, será
proposta perante o tribunal competente para processar e julgar criminalmente o
funcionário ou autoridade na hipótese de prerrogativa de foro em razão do
exercício de função pública, observado o disposto no § 1.º.”
Não obstante o advento da Lei n.
10.628/02, resta dizer que, em matéria de ação civil pública ou coletiva, assim
como também já ocorre no tocante às ações populares, a competência originária
para conhecê-las e julgá-las (ressalvada apenas a hipótese de pedido para perda
do cargo ou suspensão de direitos políticos) não é dos tribunais e sim dos
juízes singulares mesmo quando movidas contra o Presidente da República,
Presidente do Senado, da Câmara, do STF, ministros, deputados, senadores,
governadores, procuradores-gerais, desembargadores ou
qualquer outra autoridade que goze de foro por prerrogativa de função na área
penal ou em mandado de segurança. Assim, como já decidiu a maior Corte, “a
competência do STF é de direito estrito e decorre da Constituição, que a
restringe aos casos enumerados no art. 102 e incisos. A circunstância de o
Presidente da República estar sujeito à jurisdição da Corte, para os feitos
criminais e mandados de segurança, não desloca para esta o exercício da
competência originária em relação às demais ações propostas contra ato da
referida autoridade”[6]. Com efeito, as ações civis públicas ou
coletivas, que tenham como rés autoridades com foro por prerrogativa de função
na área penal ou em mandados de segurança, correrão perante o juiz singular
comum, com competência cível, e não perante os tribunais. Teve toda a razão,
pois, o STF, ao proclamar que lhe falece competência para julgar ações civis
públicas contra autoridades a ele diretamente submetidas no foro penal[7].
Segundo cremos,
esse posicionamento não deve mudar, mesmo com o advento da Lei n. 10.628/02,
ressalvada apenas a competência originária dos tribunais para as ações de
improbidade que visem à perda da função pública ou suspensão de direitos
políticos, caso em que somente os tribunais a quem caiba julgar crimes de
responsabilidade podem impor essas sanções.
Em suma, a Lei n. 10.628/02 é apenas
mais uma atitude própria da cultura de privilégios que infelizmente tem sido
freqüente em nosso país, pois os administradores e parlamentares não se conformam
em ser processados, mesmo na área cível e ainda que depois de terem deixado os
cargos, perante os mesmos juízes que julgam os demais brasileiros. Em suma,
quiseram o administrador e os parlamentares repristinar
a Súmula n. 394-STF, aliás, com tardança revogada, a qual permitia que o foro
penal por prerrogativa de função continuasse a existir… mesmo que não
mais existisse função alguma… E quiseram ainda mais, ou seja, estabelecer
agora também foro cível por prerrogativa de função, ainda que também não
exista função alguma…
A Lei n. 10.628/02, porém, descurou
estes óbices: a) a competência do STF e do STJ é definida tão-somente pela
própria Constituição, de forma que é inconstitucional ampliar a competência
dessas Cortes por meio de mera alteração ao CPP; b) o foro por prerrogativa de
função existe para resguardar o exercício da função, não para resguardar a
pessoa em si, fora do exercício da função, o que é inequivocamente o objeto da
referida alteração legislativa; c) se houve razões pelas quais
a Lei Maior assegurou foro por prerrogativa de função para alguns exercentes de cargo público, essas mesmas razões deixam de
existir quando cesse o exercício da função; assim, em vista da violação ao
princípio da igualdade, é também por isso inconstitucional prever foro por
prerrogativa de função para quem não tem função pública…
Em nosso entender, estas são as
conclusões a extrair de tudo quanto se disse até aqui:
a) nas ações de improbidade fundadas
na Lei n. 8.429/92, em que o pedido envolva perda da função pública ou
suspensão de direitos políticos, se a autoridade requerida estiver entre
aquelas para as quais haja forma própria de investidura e destituição prevista
na Constituição, o foro será o da ação por crime de responsabilidade[8];
b) para as ações de improbidade
fundadas na Lei n. 8.429/92, em que o pedido envolva apenas e tão-somente a
defesa do erário, a competência em primeiro grau de jurisdição será de juízes
singulares, da mesma forma que já ocorre com as ações populares com o mesmo
objeto;
c) nas ações
penais ou civis públicas, em que haja foro por prerrogativa de função, uma vez
cessado o exercício desta, não prevalece o foro do STF ou do STJ, apesar do que
vem disposto na Lei n. 10.628/02, pois não pode uma lei ordinária ampliar a
competência constitucional dessas Cortes.
[1] V. nosso Regime jurídico do
Ministério Público. 5.ª ed. São Paulo: Saraiva,
2001.
[2] Inq 687-SP QO, caso Jabes
Pinto Rabelo, rel. Min. Sydney Sanches; Informativo
STF n. 159.
[3] Inq 687-SP QO, voto do Min. Sydney
Sanches.
[4] A defesa dos interesses difusos em
juízo. 15.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002. Cap. 15.
[5] Regime jurídico do Ministério
Público. Op. cit. p. 292 e s.
[6] RTJ 159/28, rel. Min. Ilmar Galvão; Informativo STF n. 172.
[7] em Recl n.
1.110-DF, STF, j. 25.11.1999, rel. Min. Celso de
Mello, Informativo STF n. 172; no mesmo sentido, RTJ 173/570,
159/28, 166/785, 151/402; Inq n. 1.504-DF-STF; Recl n. 591-STJ, DJU, 15.5.2000, p. 112, Corte
Especial do STJ, rel. Min. Nilson Naves; Recl n.
580-GO, Corte Especial STJ, j. 17.10.2001, m.v., rel. Min. José Arnaldo da
Fonseca, DJU 18.2.2002, p. 210.
[8] Essa questão pende de julgamento do
STF na Recl n. 2.138-6-DF.
Como citar este artigo:
MAZZILLI,
Hugo Nigro. O Foro por Prerrogativa de Função e a Lei n. 10.628/2002.
Disponível em
< http://www.damasio.com.br/?page_name=art_038_2003&category_id=33>
Acesso:25/07/06