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Princípio jurídico da
afetividade na filiação
Paulo Luiz Netto Lôbo *
1. Equívocos da filiação biológica: do modelo
tradicional ao científico
Em matéria de filiação, o direito sempre se valeu de
presunções, pela natural dificuldade em se atribuir a paternidade ou
maternidade a alguém, ou então de óbices fundados em preconceitos históricos
decorrentes da hegemonia da família patriarcal e matrimonializada. Assim,
chegaram até nós:
a) a presunção pater is est quem nuptia demonstrant,
impedindo que se discuta a origem da filiação se o marido da mãe não a negar em
curto prazo preclusivo;
b) a presunção mater semper certa est, impedindo a
investigação de maternidade contra mulher casada;
c) a presunção de paternidade atribuída ao que teve
relações sexuais com a mãe, no período da concepção;
d) a presunção de exceptio plurium concumbentium
que se opõe à presunção anterior;
e) a presunção de paternidade, para os filhos concebidos
180 dias antes do casamento e 300 dias após a dissolução da sociedade conjugal,
entre outros.
Especial destaque merece a presunção pater is est,
principalmente pelo fato de persistir dúvida quanto à sua permanência, após a
Constituição de 1988. Durante séculos e até milênios, os povos do sistema
jurídico romano-germânico encerraram a incerteza da paternidade, valendo-se
dessa presunção prático-operacional. A presunção supõe que a maternidade é
sempre certa e o marido da mãe é, normalmente, o pai dos filhos que nasceram da
coabitação deles. Sustenta-se que, apesar das normas constitucionais
brasileiras, a presunção continua em vigor e permanece adequada à realização da
função afetiva da família, como triunfo da vontade sobre a causalidade física,
considerando "ilusória e perversa a euforia que tomou conta de uma parte
da doutrina e dos tribunais brasileiros com respeito aos progressos da biologia
genética e sua aplicação para determinar a paternidade" (1).
A presunção pater is est não resolve o problema
mais comum que é o da atribuição de paternidade, quando não houve nem há
coabitação. A presunção fazia sentido quando a filiação biológica era
determinante, no modelo patriarcal de família, que exigia certeza e segurança
para sucessão dos bens e não se admitiam outras entidades familiares fora do
matrimônio. Os laços de afeto que se constróem entre pais e filhos não dependem
de imposição da natureza (origem biológica) ou de imposição da lei. Por outro
lado, e por sua própria natureza, a presunção parte da exigência da fidelidade
da mulher, pois a do marido não é necessária para que ocorra, circunstância que
a incompatibiliza com o § 5º do artigo 226 da Constituição, para o qual "os
direitos e deveres referente à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo
homem e pela mulher". Os tribunais, fundados nos princípios
constitucionais e no artigo 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente ("O
reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e
imprescritível, podendo ser exercido contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer
restrição, observado o segredo de justiça".), têm entendido que os
filhos podem, a qualquer tempo, pleitear a paternidade que imputam a alguém,
não prevalecendo a presunção pater is est nem o registro público do
nascimento.
Do mesmo modo, fazer coincidir a filiação com a origem
genética é transformar aquela, de fato cultural em determinismo biológico, o
que não contempla suas dimensões existenciais, podendo ser a solução pior. Com
a evolução das ciências biogenéticas, outras presunções surgiram, tais como a
que confere pretensa certeza de filiação ao resultado de exame de DNA e a que
considera confissão ficta a recusa em a ele submeter-se. A presunção de
confissão ficta é agressora do princípio da dignidade humana e do direito de
personalidade (intimidade, integridade física), podendo ser injusta e geradora
de incertezas (2). As manipulações genéticas trouxeram perplexidades: o dador
anônimo de sêmen é pai?; a mãe hospedeira é mãe?; quando há concepção ou início
de existência do nascituro, se a inseminação for realizada in vitro?; e
se a inseminação artificial for totalmente heteróloga?
O modelo tradicional e o modelo científico partem de um
equívoco de base: a família atual não é mais, exclusivamente, a biológica. A
origem biológica era indispensável à família patriarcal, para cumprir suas
funções tradicionais. Contudo, o modelo patriarcal desapareceu nas relações
sociais brasileiras, após a urbanização crescente e a emancipação feminina, na
segunda metade deste século. No âmbito jurídico, encerrou definitivamente seu
ciclo após o advento da Constituição de 1988.
O modelo científico é inadequado, pois a certeza absoluta
da origem genética não é suficiente para fundamentar a filiação, uma vez que
outros são os valores que passaram a dominar esse campo das relações humanas.
Os desenvolvimentos científicos, que tendem a um grau elevadíssimo de certeza
da origem genética, pouco contribuem para clarear a relação entre pais e filho,
pois a imputação da paternidade biológica não substitui a convivência, a construção
permanente dos laços afetivos. O biodireito depara-se com as conseqüências da
dação anônima de sêmen humano ou de material genético feminino. Nenhuma
legislação até agora editada, nenhuma conclusão da bioética, apontam para
atribuir a paternidade ao dador anônimo de sêmen. Por outro lado, a inseminação
artificial heteróloga não tende a questionar a paternidade e a maternidade dos
que a utilizaram, com material genético de terceiros. Situações como essas
demonstram que a filiação biológica não é mais determinante, impondo-se
profundas transformações na legislação infraconstitucional e no afazer dos
aplicadores do direito, ainda fascinados com as maravilhas das descobertas
científicas. Em suma, a identidade genética não se confunde com a identidade da
filiação, tecida na complexidade das relações afetivas, que o ser humano
constrói entre a liberdade e o desejo.
2. Da patrimonialização à repersonalização nas
relações entre pais e filhos
A família patriarcal perpassou a história deste país e
marcou, profundamente, a formação do homem brasileiro. Suas funções mais
evidentes eram econômico-patrimoniais, políticas, procracionais e religiosas. A
função de realização da comunidade afetiva, que passou a ser determinante ao
final do Século XX, era secundária. A filiação biológica, desde que originada
na família matrimonializada, era imprescindível para o cumprimento dessas
funções e papéis, notadamente de preservação da unidade patrimonial.
A superação da família patriarcal é fato histórico e
social comprovável, notadamente pelas constantes pesquisas nacionais por
amostragem de domicílios (PNAD), promovida pelo IBGE. Analisando os dados da
pesquisa de 1986 (3), pude constatar o que os estudiosos vinham revelando: o
despontar das relações familiares de plúrimas formas, assentadas em laços
afetivos, essencialmente. Os PNADs, dos anos posteriores, demonstram o
aprofundamento dessa linha de tendência. De um modo geral, a mudança de foco,
do patrimônio à pessoa, é o sinal expressivo das transformações mais espetaculares
que o direito civil passou a ter, desde o advento do individualismo e do
liberalismo jurídicos, decorrentes da triunfante revolução liberal-burguesa dos
três últimos séculos.
O iluminismo, reagindo fortemente contra o absolutismo
monárquico da primeira fase do Estado nacional, vislumbrou na propriedade
individual, concebida como direito subjetivo por excelência, a garantia da
pessoa contra os abusos do poder político. A função econômico-patrimonializante
da família burguesa foi exasperada, afastando-se, por conseqüência, a filiação
não matrimonializada, cuja qualidade de sujeitos de direitos plenos era negada.
A tendência contemporânea de ver a família na perspectiva das pessoas que a
integram, e não de seus patrimônios, para regulação de seus direitos, constitui
o fenômeno que apropriadamente se denomina repersonalização. É na pessoa,
enquanto tal, que reside a dignidade humana.
A família, tendo desaparecido suas funções tradicionais,
no mundo do ter liberal burguês, reencontrou-se no fundamento da afetividade,
na comunhão de afeto, pouco importando o modelo que adote, inclusive o que se
constitui entre um pai ou mãe e seus filhos. A comunhão de afeto é incompatível
com o modelo único, matrimonializado, que a experiência constitucional
brasileira consagrou, de 1824 até 1988. A afetividade, cuidada inicialmente
pelos cientistas sociais, pelos educadores, pelos psicólogos, como objeto de
suas ciências, entrou nas cogitações dos juristas, que buscam explicar as
relações familiares contemporâneas.
Essa virada de Copérnico foi bem apreendida por Orlando
Gomes: "O que há de novo é a tendência para fazer da affectio a ratio
única do casamento" (4). Não somente do casamento, mas de todas as
entidades familiares e das relações de filiação.
3. Fundamentos jurídico-constitucionais do
princípio da afetividade
O princípio da efetividade tem fundamento constitucional;
não é petição de princípio, nem fato exclusivamente sociológico ou psicológico.
No que respeita aos filhos, a evolução dos valores da civilização ocidental
levou à progressiva superação dos fatores de discriminação, entre eles.
Projetou-se, no campo jurídico-constitucional, a afirmação da natureza da
família como grupo social fundado essencialmente nos laços de afetividade.
Encontra-se na Constituição Federal brasileira três fundamentos essenciais do
princípio da afetividade, constitutivos dessa aguda evolução social da família,
máxime durante as últimas décadas do Século XX:
a) todos os filhos são iguais, independentemente de sua
origem (art. 227, § 6º);
b) a adoção, como escolha afetiva, alçou-se integralmente
ao plano da igualdade de direitos (art. 227, §§ 5º e 6º);
c) a comunidade formada por qualquer dos pais e seus
descendentes, incluindo-se os adotivos, tem a mesma dignidade de família
constitucionalmente protegida (art. 226, § 4º).
A filiação biológica era nitidamente recortada entre
filhos legítimos e ilegítimos, a demonstrar que a origem genética nunca foi,
rigorosamente, a essência das relações familiares. A Constituição não tutela
apenas a família matrimonializada e não estabelece mais distinção entre filhos
biológicos e adotivos. As pessoas que se unem em comunhão de afeto, não podendo
ou não querendo ter filhos, é família protegida pela Constituição.
A igualdade entre filhos biológicos e adotivos implodiu o
fundamento da filiação na origem genética. A concepção de família, a partir de
um único pai ou mãe e seus filhos, eleva-os à mesma dignidade da família
matrimonializada (5). O que há de comum nessa concepção plural de família e
filiação é a relação entre eles fundada no afeto.
4. Aplicação do princípio da dignidade humana à
filiação
O princípio da efetividade, assentado nesse tripé
normativo, especializa, no campo das relações familiares, o macroprincípio da
dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, da Constituição Federal), que
preside todas as relações jurídicas e submete o ordenamento jurídico nacional.
Immanuel Kant (6), em lição que continua atual, procurou distinguir aquilo que
tem um preço, seja pecuniário seja estimativo, do que é dotado de dignidade, a
saber, do que é inestimável, do que indisponível, do que não pode ser objeto de
troca. Diz ele:
"No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma
dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer
outra como equivalente; mas quando uma coisa está cima de todo o preço, e
portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade".
A dignidade humana é aquilo que é essencialmente comum a
todas as pessoas, impondo-se um dever de respeito e intocabilidade, inclusive
em face do Poder Público.
Como princípio, ostenta densidade semântica reduzida, de
modo a ser preenchida com a mediação concretizadora de quem o deva aplicar. A
mediação não se compadece com juízos subjetivos de valor. O princípio é espécie
do gênero norma jurídica constitucional, que não fica a mercê da norma jurídica
infra-constitucional regulamentadora. Dele brotam efeitos imediatos e
determinantes, sendo ao menos de três espécies (7):
1.
Imposição permanente ao legislador, para que o densifique com os conteúdos
prevalecentes em cada época, mediante normas infraconstitucionais (eficácia
positiva);
2.
Conformação fundamental das normas infraconstitucionais, que devem ser
aplicadas e interpretadas a partir e segundo o princípio constitucional
(eficácia positiva);
3.
Compatibilização limitante das normas infraconstitucionais, que não podem com o
princípio colidirem, sob pena de inconstitucionalidade ou de revogação
(eficácia negativa).
Os juristas costumam dizer que os princípios constitucionais
são expressos ou tácitos. São tácitos quando emergem do sistema de normas e
valores constitucionais. O princípio da afetividade é fato
jurídico-constitucional, pois é espécie do princípio da dignidade humana e
emerge das normas acima referidas, que o sistematizam.
Como escrevi em outro trabalho (8), na família patriarcal,
a cidadania plena concentrava-as na pessoa do chefe, dotado de direitos que
eram negados aos demais membros, a mulher e os filhos, cuja dignidade humana
não podia ser a mesma. O espaço privado familiar estava vedado à intervenção
pública, tolerando-se a subjugação e os abusos contra os mais fracos. No
estágio atual, o equilíbrio do privado e do público é matrizado exatamente na
garantia do pleno desenvolvimento da dignidade das pessoas humanas que integram
a comunidade familiar, ainda tão duramente violada na realidade social, máxime
com relação aos filhos. Concretizar esse princípio é um desafio imenso, ante a
cultura secular e resistente. No que respeita à dignidade da pessoa da criança,
o artigo 227 da Constituição expressa essa viragem, configurando seu específico
bill of rigths, ao estabelecer que é dever da família assegurar-lhe "com
absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao
lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e
à convivência familiar e comunitária", além de colocá-la "à salvo de
toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e
opressão". Não é um direito oponível apenas ao Estado, à sociedade ou a
estranhos, mas a cada membro da própria família. É uma espetacular mudança de
paradigmas.
5. A filiação, na perspectiva do princípio da
afetividade
Impõe-se a distinção entre origem biológica e
paternidade/maternidade. Em outros termos, a filiação não é um determinismo
biológico, ainda que seja da natureza humana o impulso à procriação. Na maioria
dos casos, a filiação deriva-se da relação biológica; todavia, ela emerge da
construção cultural e afetiva permanente, que se faz na convivência e na
responsabilidade.
No estágio em que nos encontramos, há de se distinguir o
direito de personalidade ao conhecimento da origem genética, com esta dimensão,
e o direito à filiação e à paternidade/maternidade, nem sempre genético.
O afeto não é fruto da biologia. Os laços de afeto e de
solidariedade derivam da convivência e não do sangue. A história do direito à
filiação confunde-se com o destino do patrimônio familiar, visceralmente ligado
à consangüinidade legítima. Por isso, é a história da lenta emancipação dos
filhos, da redução progressiva das desigualdades e da redução do quantum
despótico, na medida da redução da patrimonialização dessas relações.
O desafio que se coloca aos juristas, principalmente aos
que lidam com o direito de família, é a capacidade de ver as pessoas em toda
sua dimensão ontológica, a ela subordinando as considerações de caráter
biológico ou patrimonial. Impõe-se a materialização dos sujeitos de direitos,
que são mais que apenas titulares de bens. A restauração da primazia da pessoa
humana, nas relações civis, é a condição primeira de adequação do direito à
realidade e aos fundamentos constitucionais.
A família recuperou a função que, por certo, esteve nas
suas origens mais remotas: a de grupo unido por desejos e laços afetivos, em
comunhão de vida. O princípio jurídico da afetividade faz despontar a igualdade
entre irmãos biológicos e adotivos e o respeito a seus direitos fundamentais,
além do forte sentimento de solidariedade recíproca, que não pode ser
perturbada pelo prevalecimento de interesses patrimoniais. É o salto, à frente,
da pessoa humana nas relações familiares.
No estágio em que se encontram as relações familiares e o
desenvolvimento científico, tende-se a encontrar a harmonização entre o direito
de personalidade ao conhecimento da origem genética, até como necessidade de
concretização do direito à saúde e prevenção de doenças, e o direito à relação
de parentesco, fundado no princípio jurídico da afetividade.
NOTAS
João Baptista Villela, Repensando o Direito de
Família, in Repensando do Direito de Família, coordenador; Rodrigo da
Cunha Pereira, Belo Horizonte, Del Rey, 1999, p. 26.
Na contramão da evolução do direito, tramita no
Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 64, de 1999, de autoria da Deputada Iara
Bernardi, que acrescenta parágrafo único ao artigo 27 do Estatuto da Criança e
do Adolescente, de seguinte teor: Parágrafo único. A recusa do réu em ação
de investigação de paternidade a submeter-se a exame de material genético -
DNA, se pedido pelo autor, importa em admissão tácita de paternidade".
A parlamentar confunde direito de personalidade ao conhecimento da origem
genética com direito à paternidade, com o agravante de presumir pai quem não o
seja, nem por origem genética nem por laços de afetividade. No direito alemão,
O Tribunal Consituição, em decisão de 1994, reconheceu nitidamente o direito de
personalidade ao conhecimento da origem genética, mas "sem efeitos sobre a
relação de parentesco".
Cf. Paulo Luiz Netto Lôbo, A repersonalização das
relações de família, in Direito de Família na Constituição de 1988,
org.: Carlos Alberto Bittar, São Paulo, Ed. Saraiva, 1989, p. 67 a 71.
O Novo Direito de Família, Porto Alegre,
Sergio Antônio Fabris, 1984, p. 26.
É impressionante o número de famílias chefiadas por
mulheres, no Brasil: 10 milhões, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios, do IBGE, de 1999.
Cf. Fundamentação da Metafísica dos Costumes,
trad. Paulo Quintela, Lisboa, Ed. 70, 1986, p. 77.
Gomes Canotilho, em Direito Constitucinal,
Coimbra, ed. Almedina, 1993, 6ª edição, p. 183, refere-se a três tipos de
eficácia mínima dos princípios constitucionais: a) vinculação do legislador; b)
como diretivas materiais permanentes ao legislador, à Administração e à
jurisdição; c) inconstitucionalidade das normas que os contrariarem.
Constitucionalização do Direito Civil, Revista de
Informação Legislativa, Brasília, nº 138: 99-109, abr./jun. 1999.
* Ddoutor em
Direito pela USP, advogado, professor dos programas de Mestrado e Doutorado em
Direito da UFPE, UFAL e UnB, membro do Conselho Nacional de Justiça.
Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=527>. Acesso em: 08 ago. 2006.