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O processo penal à luz do Estado Democrático de Direito

Wanderson Marcello Moreira de Lima (*)

Sumário

Introdução. 1. A função garantista do processo penal. 2. Sistemas processuais penais. 3. O ônus da prova no processo penal. 4. O princípio da congruência. 5. A defesa técnica efetiva. 6. A verdade real no processo. 7. O objeto do processo penal. 8. A coisa julgada: conceito, fundamento, limites. 9. Conclusão. Referências bibliograficas. Obras consultadas.


Introdução

Evidencia-se nos tempos atuais uma luta incessante contra o conservadorismo, contra o puritanismo, o individualismo, enfim, contra o velho. Os valores da sociedade, impostos por elites preconceituosas, não são contestados.

É óbvio que o Direito e, via de conseqüência, a forma de concebê-lo e ensiná-lo está condicionado a este caldo de cultura. Quem de nós nunca ouviu em sala de aula ou não que o Direito é neutro e busca, com justiça, dar a cada um o que é seu?

Porém, antes de outras argumentações, cabe-nos questionar o que é Justiça? O que é Direito? Que valores procura tutelar? Quem o faz e quem o aplica? Como se saber o que é de um ou de outro para bem resolver o conflito?

A toda evidência, não tem por objeto o presente trabalho, colocar uma pá de cal em diversos institutos que sofreram modificações com o novel texto constitucional, mas, sim, demonstrar os caminhos para que seja travada uma nova batalha a favor do Estado Democrático de Direito.

1. A função garantista do processo penal

É cediço por todos que a função do direito penal é de assegurar ao indivíduo que o fato praticado por ele e que lhe foi imputado se subsume ou não a determinado modelo descrito na lei e, conseqüentemente, que a privação (ou não) de sua liberdade é consectário lógico da imposição normativa proibitiva.

Em outras palavras: na medida em que o indivíduo desafia o Estado com seu comportamento violador de bens jurídicos penalmente tutelados o direito penal surge para restabelecer a paz juridicamente perturbada.

Nesse caso, como acentua Vázquez Rossi [1], dentro de um moderno Estado de Direito Democrático, de base constitucional, limitado e regulamentado pelo respeito aos direitos fundamentais, o poder punitivo somente poderá existir se respeitadas as garantias individuais do cidadão.
Assim, é o devido processo penal a garantia constitucional que todo e qualquer indivíduo, residente ou não no país, nacional ou estrangeiro, tem de que, só em casos excepcionais, será privado de sua liberdade de locomoção.

Porém, a necessidade do Estado de recompor a ordem jurídica violada deve conviver harmonicamente com o direito do agressor da norma de que a Lei Fundamental será observada afim de evitar possíveis abusos do poder estatal.

Claus Roxin assevera que:

“com a aparição de um direito de persecução penal estatal, surgiu também, a sua vez, a necessidade de erigir barreiras contra a possibilidade de abuso do poder estatal. O alcance desses limites é, por certo, uma questão da respectiva Constituição do Estado” [2].



Dessa forma, o processo penal assim tem por escopo garantir ao cidadão todos os seus direitos, pois, de nada adiante, aplicar o direito material sem antes observar as normas superiores aplicáveis ao caso concreto, sob pena de tornar a Constituição escrita em mera “folha de papel”.

Explica Lassalle:

“Onde a Constituição escrita não corresponder à real, irrompe inevitavelmente um conflito que é impossível evitar e no qual, mais dia menos dia, a Constituição escrita, a folha de papel, sucumbirá necessariamente, perante a Constituição real, a das verdadeiras forças vitais do país.” [3]

Nesse caso, como asseguram Amilton Bueno e Salo de Carvalho:

“Os direitos fundamentais – direitos humanos constitucionalizados – adquirem, portanto, a função de estabelecer o objeto e os limites do direito penal nas sociedades democráticas”. [4}


2. Sistemas processuais penais:

Não é nosso objetivo adentrar na análise profunda dos sistemas processuais penais, mas, sim, estabelecer a principal diferença entre os existentes hodiernamente, em especial no que toca ao direito brasileiro

A sociedade tem hoje a garantia de que o órgão responsável pela persecução penal é distinto do incumbido de desatar a questão, circunstância que produz a imparcialidade do órgão julgador.

Além do mais, é garantia constitucional de que o acusado somente será levado ao banco dos réus pelo Promotor natural, ou seja, aquele com atribuição delimitada previamente em lei e independente no exercício de suas funções.

A separação das funções de acusar e julgar é vista por Luigi Ferrajoli como a mais importante do modelo acusatório, o qual assim se manifesta:

“A separação de juiz e acusação é a mais importante de todos os elementos constitutivos do modelo teórico acusatório, como pressuposto estrutural e lógico de todos os demais. (...) A garantia da separação, assim entendida, representa por uma parte, uma condição essencial da imparcialidade do juiz em respeito às partes da causa.” [5]

Noutra senda, é o fato descrito na exordial que determina os limites da acusação e não a sua qualificação jurídica. Neste caso, respeito o direito de defesa, a pena a ser aplicada poderá inferior à prevista no crime capitulado pela acusação.

Frederico Isasca, analisando a questão a luz do direito português, perfeitamente aplicável ao nosso direito, assim se manifesta:

“O facto de a pena eventualmente aplicável poder ser menor, não significa que possa e deva sempre considerar-se como não substancial a alteração dos fatos, visto que não só a imagem ou a valoração sociais podem ser completamente diferentes, como comprometer seriamente a defesa.” [6]

O sistema processual penal acusatório vem assim ao encontro dos direitos de ampla defesa, do contraditório, do princípio da obrigatoriedade da ação penal pública e da característica mor da jurisdição que é a imparcialidade do órgão jurisdicional. Razão pela qual, qualquer modificação, substancial ou não, do fato, objeto do processo, deve ser acrescida pelo titular da ação penal, sob pena do réu não poder ser condenado por fato que não conste, por inteiro, da acusação.


3. O ônus da prova no processo penal

A Constituição da República Federativa do Brasil dispõe de forma clara que enquanto não houver trânsito em julgado da sentença penal condenatória não pode o réu ser considerado culpado (cf. art. 5º, LVII), significando a transferência do ônus da prova todo para a acusação..

Desta forma, claro nos parece que, se a acusação tem que narrar um fato criminoso com todas as suas circunstâncias (cf. art. 41 do CPP), o ônus de provar que este fato é típico (encontra perfeita adequação na lei penal); é ilícito (contrário ao direito e que não está açambarcado por nenhuma excludente de ilicitude) e que seu autor é culpável, ou seja, se possui as condições mínimas indispensáveis para atribuir-se-lhe esse fato, pertence-lhe.

Não há como entregar ao réu, dentro de um Estado Constitucional dito Democrático de Direito e que tem como fundamento a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III da CRFB), o ônus de provar sua inocência.

Portanto, se é a imputação penal é vai delimitar o espaço dentro do qual o réu irá exercer seu direito de ampla defesa, a comprovação, in totum, desse fato compete, constitucionalmente, à acusação.

Se a acusação imputa ao réu a prática do homicídio (qualificado ou não) e o réu alega legítima defesa, aquela tem o ônus de provar que não houve agressão injusta, muito menos uso moderado dos meios.

Do contrário, vamos sair de um Estado Constitucional Democrático de Direito para um Estado de opressão, totalitário, em que o réu irá possuir o ônus de provar a sua inocência o que, por si só, constituiria um absurdo incomensurável.

A regra do art. 156 do CPP deve receber uma interpretação conforme a Constituição Federal vigente. À época da edição do referido dispositivo legal a ordem legal era ditada pela Carta Política do Estado Novo de Vargas que, segundo Boris Fausto, foi a que “concentrou a maior soma de poderes até aquele momento da história do Brasil independente. A inclinação centralizadora, revelada desde os primeiros meses após a revolução de 1930, realizou-se plenamente.(...). O Estado Novo perseguiu, prendeu, torturou, forçou ao exílio intelectuais e políticos, sobretudo de esquerda e alguns liberais”[7].

Assim, trata-se de dispositivo legal que não pode perdurar nos dias de hoje frente à Constituição democrática que inspira os valores supremos fundamentais de dignidade da pessoa humana, sob de fazer repristinar os ideais políticos, econômicos e sociais da Era Vargas.


Alberto Binder, que expressa uma visão crítica e atualizada do Direito Processual Penal, em sua magnífica obra assevera que:

“El imputado no tiene que probar su inocencia. Muchas veces se há pretendido hacer julgar en el proceso penal la idea de ‘carga de la prueba’, mucho más propia del proceso civil. (...)

Lo cierto e importante es que el imputado no tiene que probar su inocencia, tarea que en todo momento les corresponde a los órganos de persecución penal.”
[8]


4. O princípio da congruência

É de sabença geral que o juiz julgará a lide nos limites entre as quais foi proposta, sendo-lhe defeso conhecer de questões não suscitadas as quais a lei exige iniciativa das partes, sendo-lhe vedado julgar ultra, citra e extra petita. É a correlação que deve existir entre o que se pediu e o que foi concedido.

Trata-se, pois, de uma garantia processual decorrente do princípio constitucional da ampla defesa visando impedir surpresas desagradáveis ao réu comprometendo sua dignidade enquanto pessoa humana. O princípio em epígrafe vem ao encontro dos direitos de ampla defesa, do contraditório e dos poderes de cognição do juiz (limitado que é pelo objeto do processo).

Nesse caso, todos os pedaços do fato que não constam do objeto do processo, porém que mudam a acusação e dos quais o réu não se defendeu, somente poderão ser conhecidos pelo juiz, em sua sentença, se houver o necessário aditamento Do contrário, a sentença será manifestamente nula.

O nosso Código de Processo Penal, sendo ele da Era Vargas, dispõe em seu art. 564, III, m, que ocorrerá a nulidade por falta da sentença. Na verdade não é a ausência da sentença que acarreta a nulidade, pois sem ela não há a entrega da prestação jurisdicional, mas, sim, a ausência dos requisitos que lhe são essenciais, bem como, se o juiz julgar ultra, extra e citra petita.

Destarte, salienta o culto Marcelo Abelha que:

“Este princípio (o princípio da inalterabilidade da demanda) vem limitar que o autor possa, uma vez proposta a ação, alterar e modificar o seu pedido. Isso ocorre não só porque apenas sobre o que foi pedido é que o juiz deve decidir a lide (art. 128 do CPC), mas também porque seria verdadeira ofensa ao direito de defesa do réu que o autor pudesse, a seu bel prazer, alterar o pedido por ele formulado (...)”.[9]

5. A defesa técnica efetiva

Não basta o acusado ter no processo a presença física de um defensor para postular em seu nome e defender seus ideais de justiça. Mister se faz que a defesa seja, realmente, efetiva, o que significa dizer: que possa o acusado se utilizar de todos os meios e recursos inerentes ao seu direito amplo de defesa.

Se o réu é acusado do crime X e se verifica, no curso da instrução, que na verdade, agregado a esse fato, há o pedaço denominado ‘x’, tem o réu todo o direito de exigir do Estado que não conheça deste fato, pois o mesmo não foi objeto do processo e dele o réu não se defendeu.

“O objeto do processo constitui uma verdadeira e mais importante garantia de defesa, visto que é ele que limita a extensão da cognição e portanto os próprios limites da decisão”[10].

Na verdade é a Constituição, vestida de lei ordinária, que impede o juiz conhecer de fatos que não foram objeto do processo em respeito a sua própria ordem: todo o acusado tem direito de ampla defesa. A proibição do julgamento ultra, citra e extra petita decorre do direito de ampla defesa.
Qualquer decisão judicial que não respeite os direitos e garantias fundamentais, em especial, o direito a defesa efetiva, viola a Constituição e também o Pacto de São José da Costa Rica, tornando-se, assim, eivada de error in procedendo.

6. A verdade real no processo

Descobrir a verdade real (ou material) é colher elementos probatórios necessários e lícitos para se comprovar, com certeza absoluta (dentro dos autos), realmente o responsável pela ofensa ao comando normativo penal.

A finalidade da prova é ajudar a formação do convencimento do juiz sobre a veracidade de uma afirmação de fato alegada pelas partes em juízo. O caráter instrumental do processo demonstra que ele (processo) é meio para se aplicar o direito objetivo (norma penal incriminadora) atendendo ou não a pretensão do autor.

Entretanto, a incidência da norma penal sobre o indivíduo autor do fato, imputado como crime, (pelo menos em tese) somente poderá se dar desde que todos os esforços e meios legais tenham sido devidamente empregados.

A descoberta da verdade do fato praticado, através da instrução probatória, passa a ser, assim, uma espécie de reconstituição simulada deste fato, permitindo ao juiz, no momento da sentença, aplicar a lei penal ao caso concreto, extraindo a regra jurídica que lhe é própria. É como se o fato fosse praticado naquele momento perante o juiz aplicador da norma.

Importante ressaltar que, não obstante chamarmos de verdade real, nem sempre ela condiz com a realidade fática ocorrida no mundo físico.O conceito de verdade, pensamos, é mais filosófico do que jurídico. O que pode ser verdade para uns pode não ser para outros.

Porém, em se tratando de verdade material a ser apurada nos autos de um processo há que se considerar a concordância entre um fato real e a idéia que dele forma o espírito. Ou seja, a adequação entre o fato objeto do processo e o ocorrido no mundo dos homens.

Posto isto, claro nos parece que a necessidade de descoberta da verdade real é compatível com os limites traçados pela acusação no objeto do processo, não sendo lícito ao juiz condenar o réu por fato diverso do constante da prefacial com a alegação de que aquela era a verdade.

Se a verdade apurada não for compatível com os fatos descritos na peça inicial tem o acusado o direito de ser absolvido e o Estado o dever de absolvê-lo. Uma coisa é haver dúvida no processo de que foi o réu quem cometeu o crime, pois nesse caso, a dúvida deverá ser resolvida em seu benefício (in dubio pro reo). Outra, bem diferente, é haver prova de que o fato é diverso do que consta na denúncia, porém o fato é único, indivisível, concreto e real.



7. O objeto do processo penal

Esta não é a sede adequada para nos aprofundarmos ao estudo acerca do objeto processual, porém, não podemos deixar de abordar seu conceito, seu fundamento e suas funções.

O objeto do processo é um consectário lógico do sistema acusatório, pois refere-se aos fatos descritos na acusação os quais o juiz não poderia conhecer se não houvesse provocação da parte autora.


A pretensão processual penal que serve de veiculo para a imputação penal de fato definido como infração penal é a que traduz o objeto do processo. Nesse caso o fato imputado é aquele ocorrido no mundo dos homens, o fato humano da natureza, praticado de determinado modo em situação de tempo e de lugar e que tem enquadramento em um tipo penal.

O fato que serve como suporte do objeto do processo não pode ser confundido com artigo de lei, ou seja, com um certo tipo legal de crime, mas, como um acontecimento histórico da vida, um fato ocorrido no mundo dos homens que recebe ou não do ordenamento jurídico relevância penal.

A afirmativa de que o objeto do processo é o fato crime definido como tal na lei penal é falsa, pois, se ao final do processo se descobrir que o mesmo não é crime, este não deixará de existir.

Isasca define o objeto do processo com as seguintes palavras:

“Objeto do processo penal será, assim, o acontecimento histórico, o assunto ou pedaço unitário da vida vertido na acusação e imputado, como crime, a um determinado sujeito e que durante a tramitação processual se pretende reconstruir o mais fielmente possível”. [11]

É exatamente esse fato da vida que tem que ser traduzido e transportado para o processo, através da pretensão processual penal, a fim de circunscrever os limites do conhecimento do juiz dentro do qual julgará a lide.

Portanto, o objeto do processo tem três funções básicas que nos são apontadas pelo jurista alemão Claus Roxin “(...) designar o objeto da litispendência, demarcar os limites da investigação judicial e de obtenção da sentença e definir a extensão da coisa julgada” [12]

Em resumo, podemos dizer que o objeto do processo é o tema proposto como res judicanda e que sua finalidade mais característica é a obtenção da res judicata. O processo penal tem como escopo servir para abordar um fragmento da vida (criminal) em sua totalidade, trazendo parte da vida praticada e vivida pelo homem para o processo a fim de que possa ser julgado pelo Estado.

O objeto do processo delimita a prestação jurisdicional sob dois aspectos: subjetivo e objetivo. Aquele diz respeito à vedação do judiciário de emitir qualquer decisão que não seja sobre a pessoa do acusado, enquanto este impõe identidade do objeto durante todo o curso do processo a fim de que o acusado possa, efetivamente, exercer sua ampla defesa dos fatos descritos na denúncia.

Na doutrina alemã, Roxin assim se manifesta:

“A identidade do objeto processual tem um componente pessoal e um material, é dizer, ela pressupõe: a identidade da pessoa e a identidade do fato” [13]

O juiz deve pronunciar-se sobre os fatos e sujeitos descritos na denúncia, respeitando o princípio da correlação entre acusação e sentença.

Frederico Isasca, em sua excelente obra, assim se manifesta:

“Uma vez tomado o acontecimento da vida como a base do processo, necessário será que este seja suficientemente descrito, pois sem uma correcta e concreta individualização dos factos acusados, não é possível ao agente defender-se convenientemente e poder afastar de si uma possível punição, nem ao tribunal é fornecida a base de confiança e de certeza necessárias para fundamentar e proferir uma decisão, quer esta seja absolutória quer condenatória, e aplicar, de uma forma justa, a lei penal” [14].

A perfeita delimitação do objeto do processo, portanto, não é mero deleite doutrinário e, muito menos, uma questão meramente teórica sem nenhuma repercussão na validade do processo em si. Trata-se da necessidade de se identificar eventual litispendência, coisa julgada, modificação da ação ou sua cumulação.


8. A coisa julgada: conceito, fundamento e limites


8.1. Conceito


O conceito de coisa julgada é polêmico e antigo no direito, sendo, inclusive, proveniente do direito privado romano onde a irrevogabilidade da sentença penal era desconhecida, diferente da sentença civil.

Coisa julgada, na definição clara de Giovanni Leone, “é a coisa sobre a qual haja recaído a decisão do juiz; expressando uma entidade passada, fixa, firme no tempo. Significa decisão imutável e irrevogável, a imutabilidade do mandato que nasce da sentença.” [15]


Mas foi Liebman quem tratou da matéria e melhor definiu coisa julgada como sendo “o comando emergente de uma sentença. Não se identifica com a definitividade e intangibilidade do ato que pronuncia o comando; é pelo contrário, uma qualidade, mais intensa e mais profunda, que reveste o ato também em seu conteúdo e torna assim imutáveis, além do ato em sua existência formal, os efeitos, quaisquer que sejam, do próprio ato.” [16].

A coisa julgada pode ser formal ou material. Formal quando fica limitada ao processo que com ela se encerra. Material quando transcende nos seus efeitos para atingir processo posterior sobre o mesmo litígio.

8.2. Fundamento

O fundamento da coisa julgada repousa exatamente na necessidade de garantir a todos os indivíduos (partes ou não no processo) que os conflitos que foram objeto de julgamento e, portanto, de apreciação pelo Estado, terão um fim com a decisão judicial definitiva.

Portanto, se pode dizer que o fundamento do instituto da autoridade da coisa julgada está na necessidade de aplicar e assegurar a ordem jurídica estabelecida pelas leis do Estado.

Trata-se, assim, de um garantismo penal do acusado de que as questões decididas pelo juiz, em sua sentença, não mais poderão ser revistas, salvo se for em seu próprio benefício e por intermédio da revisão criminal.

O processo penal, dentro de um Estado Democrático de Direito, tem que dar as garantias necessárias ao acusado de que as questões propostas, discutidas e decididas pelo Estado, não poderão ser reabertas, sob pena de se criar uma instabilidade social e um abalo aos pilares de sustentação do Estado justo de direito.

No Brasil, (diferente da Alemanha, Noruega, Portugal, Rússia e Suécia) não se admite a revisão criminal pro societate, ou seja, a desconstituição de sentença absolutória mesmo que eivada de error judicando ou error in procedendo

Destarte, a coisa julgada é mais uma medida de segurança criada em favor do indivíduo do que, propriamente, de um instituto meramente processual sem conseqüências práticas.

É Claus Roxin quem nos dá suporte para esta afirmativa:

“A coisa julgada material serve de proteção do acusado. Com ela se reconhece jurídico-fundamentalmente seu interesse em ser deixado em paz depois de ditada uma decisão de mérito que já não mais é impugnável.”[17].



8.3.Limites

Há limites objetivos e subjetivos na coisa julgada. A eficácia, em si, da sentença atua em relação a todos os indivíduos, porém a res judicata só tem validade entre as partes as quais é dada. As partes suportam a sentença transitada em julgado. A imutabilidade se dirige às partes.


O fundamento político dos limites subjetivos da coisa julgada está no próprio direito de liberdade, como acentua Ada Pellegrini Grinover:


“Os limites objetivos se referem aos fatos objeto de julgamento. Os fatos principais. Os pontos ou questões litigiosas que foram decididos na sentença é que circunscrevem os limites objetivos da coisa julgada.”. [18]

É bem verdade que o Código de Processo Penal pouco disciplina sobre a coisa julgada, não havendo, como deveria, um capítulo próprio da res judicata. Entretanto, nada impede que se aplique não só o disposto no § 2º do art. 110 CPP, mas também as regras insertas no Código de Processo Civil.

9. Conclusão

O processo penal moderno tem uma função nitidamente garantista, pois assegura ao acusado todos os direitos previstos na Constituição, eliminando-se, dessa forma, o processo punitivo exclusivista de nosso ordenamento jurídico.

O sistema acusatório é a base de todo o sistema processual penal democrático onde o juiz é afastado da persecução penal, sendo-lhe vedado agir ex officio.

O ônus da prova no processo penal, diante da regra inserta no art. 5º, LVII da CRFB, é exclusivo da acusação, uma vez que a favor do acusado milita o princípio da não culpabilidade ou da inocência.

O princípio da correlação entre acusação e a sentença é regra que deve ser observada a fim de impedir que o juiz julgue ultra, citra e extra petita respeitando, assim, o direito ao contraditório e a ampla defesa. O réu não pode ser surpreendido com condenação por fato diverso do que constar na denúncia.

O direito de defesa deve ser efetivo e irrenunciável, circunstâncias que exigem a observância do devido processo legal com todos os meios e recursos necessários para preservação das normas favoráveis ao acusado.

A coisa julgada é um instituto de garantia de todo e qualquer indivíduo processado, pois, uma vez decidido o litígio pelo Estado-juiz, o mesmo não poderá mais ser discutido, assegurando assim a paz e a tranqüilidade social.


Referências bibliográficas


[1] Derecho Procesal Penal, Argentina, Rubinzal Culzoni, p. 106, Tomo I

[2] Derecho Procesal Penal, 25 edição, Buenos Aires, Del Puerto, ano 2000, p. 2

[3] A Essência da Constituição, 4 edição, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 1998, p. 37

[4] Aplicação da Pena e Garantismo. 1 edição, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2001, p. 17.

[5] Derecho y Razón, 3 edição, Madrid, Trotta, 1998, p. 567

[6] Alteração Substancial dos Fatos e sua Relevância no Processo Penal Português, 2 edição, Coimbra, Almedina, 1999, p. 144

[7] História do Brasil, 6 edição, São Paulo, Universidade de São Paulo, 1999, p. 366 e 376.

[8] Introducción Al Derecho Procesal Penal. 1 edição, Buenos Aires, Ad Hoc, 1993, p. 124.

[9] Elementos de Direito Processual Civil, 2 edição, São Paulo, RT, 2000, Vol. I, p. 62.

[10] Frederico Isasca, ob. cit., p. 230

[11] Ob. cit. p. 240

[12] Ob. cit. p. 160

[13] Ob. cit. p. 160

[14] Ob. cit. p. 242/243

[15] Tratado de Derecho Procesal Penal, 3 edição, Buenos Aires, EJEA, 1989, Tomo III, p.. 320/321

[16] Eficácia e Autoridade da Sentença. 3 edição, Rio de Janeiro, Forense, 1984, p. 54.

[17] Ob. cit. p. 436


[18] Ob. cit. p. 13/14.


Obras consultadas:

1. Abelha, Marcelo. Elementos de Direito Processual Civil. 2 edição, São Paulo, RT, 2000, Vol. I.

2. Badaró, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Correlação entre Acusação e Sentença, São Paulo, RT, 2000.

3. Barroso, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 3ª edição, Rio de Janeiro, Saraiva, 1999.

4. Beling, Ernest. Derecho Procesal Penal. 1 edição, Argentina, DIN, 2000.

5. Carnelutti, Francesco. Las Miserias Del Proceso Penal. Buenos Aires,EJEA, 1959.

6. Carvalho, Amilton e Salo de. Aplicação da Pena e Garantismo. 1ª edição, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2001.

7. Colomer, Juan-Luis Gomez. El Proceso Penal Aleman Introduccion y Normas Basicas. 1 edição, Barcelona, Bosch, 1985.

8. Fausto, Boris. História do Brasil. 6 edição, São Paulo, Universidade de São Paulo, 1999.

9. Ferrajoli, Luigi. Derecho y Razón. 3 edição, Madrid, Trotta, 1998.

10. Grinover, Ada Pellegrini. Eficácia e Autoridade da Sentença Penal. 1ª edição, São Paulo, RT, 1978.

11. Isasca, Frederico. Alteração Substancial dos Fatos e sua Relevância no Processo Penal Português. 2 edição, Coimbra, Almedina, 1999.

12. Jardim, Afrânio Silva. Direito Processual Penal. 8 edição, Rio de Janeiro, Forense,1999.

13. Jescheck, Hans-Heinrich. Tratado de Derecho Penal – parte geral. 4 edição, Espanha, Comares, 1993.

14. Lassalle, Ferdinand. A Essência da Constituição. 4 edição, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 1998.

15. Leone, Giovanni, Tratado de Derecho Procesal Penal. 3 edição, Buenos Aires, EJEA, 1989, Tomo III.

16. Liebman, Enrico Tulio. Eficácia e Autoridade da Sentença, 3 edição, Rio de Janeiro, Forense, 1984.

17. Manzini, Vincenzo. Tratado de Derecho Procesal Penal. 3 edição, Buenos Aires, El Foro, 1996, Tomo IV.
18. Mittermaier, C.J. A. .Tratado da Prova em Matéria Criminal, 3 edição, São Paulo, Bookseller, 1997.

19. Olmedo, Clariá. Derecho Procesal Penal. Argentina, Cordoba, 1984.

20. Rangel, Paulo. Direito Processual Penal. 3 edição, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2000.

21. Rangel, Rui Manuel de Freitas. O ônus da Prova no Processo Civil. 1ª edição, Coimbra, Almedina, 2000.

22. Rossi, Vázquez. Derecho Procesal Penal. Argentina, Rubinzal Culzoni, Tomo I.

23. Roxin, Claus. Derecho Procesal Penal. 25 edição, Buenos Aires, Del Puerto, ano 2000.

24. Schmidt, Eberhard. Los Fundamentos Teóricos Y Constitucionales Del Derecho Procesal Penal. Buenos Aires, Bibliográfica Argentina, 1957.

25. Tourinho Filho, Fernando da Costa. Processo Penal. 18 edição, São Paulo, Saraiva, 1987, v. 4.



(*) Wanderson Marcello Moreira de Lima -

a) Advogado militante em Minas Gerais;

b) Pós-graduado em Direito Público

c) Coordenador do Departamento de Assistência Judiciária e Professor de Prática Jurídica Penal Simulada nas Faculdades do Oeste de Minas - FADOM - Divinópolis/MG

Retirado de: www.argumentum.com.br