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A privatização de empresas estatais
Carmem Lúcia Antunes Rocha - Advogada
Introdução
Vivemos um momento de afastamento do Estado de algumas atividades,
havidas, nos últimos tempos ou pelo menos desde a década
de quarenta, como integrantes daquelas que a entidade política desenvolvia
diretamente ou por meio de empresas por ele criadas sob figurino que se
afeiçoava ao quanto antes adotado por empresas privadas.
Não se sabe, ainda, se o processo de despublicização
de serviços e de desconstituição da organização
administrativa acolhida em alguns Estados e com agressividade óbvia
no Brasil é passageira ou se configura tendência mais sedimentada,
que vem para permanecer por período histórico mais longo.
O que se observa, no momento presente, é uma tendência que
se impõe, na experiência brasileira, de tal modo afrontosamente
ao quanto antes se afirmara como conjunto de princípios a conduzir
os comportamentos administrativos que não deixa sequer espaço
para críticas ou para emissão de qualquer opinião
que fosse fruto da liberdade cidadã soberana que deveria ser respeitada
na sociedade. É que qualquer manifestação do cidadão
contra o processo de desestatização de entidades e de despublicização
de serviços tem, nas vozes de governantes que se comprometem com
esse processo, resposta definitiva e que não se põe a exame,
mas a pronta contestação.
Não se trata de ser contra ou a favor de privatização.
Privatização não contém em si mesmo qualquer
conotação ideológica definitiva. Determinado processo
de desestatização é que pode ter - e em geral tem
- aquela conotação. Assim, não se é de ser
contra ou a favor de privatização, podendo e devendo o cidadãos
se posicionar, contudo, sobre um processo específico de desestatização.
Também não se há desconhecer que o processo de privatização
possa ser considerado e avaliado fora do contexto no qual ele ocorre. A
desestatização de determinada empresa em um Estado europeu
pode não ter as mesmas conseqüências de igual processo
em Estado subdesenvolvido política e socialmente e dependente de
economia externa.
Ademais, o conjunto das condições estabelecidas por um
governo para determinada privatização pode ter conseqüências
sociais diferenciadas em uma e outra sociedade, em um e outro momento.
Assim, por exemplo, decidir-se pela transferência de uma empresa
estatal para o setor privado nacional traz conseqüências diferentes
de transferência que se dê para o setor privado internacional.
O conjunto de processos que se tem levado a cabo no Brasil nos últimos
tempos tem dado margem a questionamentos sérios. Em primeiro lugar
pelas condições sociais extremamente diversificadas da sociedade
brasileira. O estado nacional tem uma das piores distribuições
de riquezas do mundo: enquanto alguns jogam caviar no lixo outros fuçam
o lixo alheio para se prover de pão seco e envelhecido.
Por outro lado, o país tem condições regionais absolutamente
diferenciadas: enquanto algumas regiões dispõem de uma organização
social com alto nível e grau de participação política
do cidadão no processo decisório (caso do Sul) outras contam
com uma singular situação de dominação baseada
exclusivamente na representação, cujo processo de escolha
macula-se pela ausência de uma educação política
plenamente oferecida e fruída pelo cidadão.
Assim, a opção política da desestatização
há de ser examinada em seu engajamento em determinada sociedade
política, o que, no exemplo brasileiro, importa em considerar realidades
diversas sobre as quais uma mesma decisão administrativa acarreta
conseqüências distintas.
Se o Estado é um, o Brasil é plural em sua condição
territorial, ambiental, social, econômica e política. Não
se há perder de vista, assim, tal conjuntura e suas bases estruturais,
pois um serviço que pode ser prestado - e encontra quem o preste
interessadamente pois ele gerará lucros - por um particular em determinada
localidade, poderá não ser oferecido com igual eficiência
em outro local, no qual não haja as mesmas condições
lucrativas. Ora, não se há de aceitar a existência
de cidadãos de um mesmo Estado com status social diferenciado: enquanto
uns poderiam ter e teriam um elemento de necessidade ou de comodidade eficientemente
prestado porque poderiam por ele pagar, outros que tanto não pudessem
não disporiam dele. Contudo, o serviço - de energia elétrica,
de segurança pública, de telecomunicações dentre
outros - é de igual necessidade para todos. E a cada um há
de responder o Estado e a própria sociedade segundo a sua necessidade
e segundo a sua condição sócio-econômica que
nem sempre pode ser relegada ao plano do ganho financeiro imediato do prestador
do serviço.
De outra parte, há de se considerar com cuidado a questão
de privatização quanto às ideologias do ganho: o neoliberalismo
e a globalização interessam a quem e determinam o que. Sem
que a sua eleição decorra de um processo político
legítimo e de participação prévia e concomitante
do cidadão interessado no processo não se há de imaginá-lo
democrático.
I - O neoliberalismo e a privatização de empresas estatais
A desestatização consiste na transferência das empresas
estatais do setor público - em geral da Administração
Pública indireta - para o setor econômico empresarial privado.
Enquanto naquele o que se tem como objetivo legítimo é a
realização de necessidades e interesses públicos,
nesse o lucro econômico-financeiro do particular é o objetivo.
Ali conta a finalidade pública, aqui a vontade específica
do empresário segundo o que a lei dispõe.
A assunção de determinadas atividades pelo Poder Público
pode ser constitucional - nas hipóteses em que se contém
no sistema jurídico fundamental a opção pela prestação
única ou concomitante do serviço pela entidade estatal ou
pelo particular -, legal - quando tal opção se dá
por decisão posta em norma infraconstitucional - ou administrativa,
quando a lei deixa que o próprio administrador escolha quem deve
ofertar a atividade e o bem.
Para a prestação de alguns destes serviços o Estado
busca chegar, indiretamente, ao usuário quando, ao invés
de atuar por meio de seus órgãos, cria entidades empresariais
pro meio das quais as desenvolve.
É certo que se pode ter - se tem tido mais propriamente - a criação
de entidades autárquicas ou fundacionais para a prestação
daqueles serviços. Mas também empresas foram constituídas
(inclusive com abundância desde a década de sessenta no Brasil)
não para exercer atividade econômica, mas para a prestação
de serviços públicos.
Em qualquer caso, contudo, quando a entidade empresarial estatal transferida
do setor público para o setor econômico empresarial privado
dá-se a desestatização, também designada como
privatização. Contudo, os termos não são sinônimos,
sendo de se lembrar que pode-se desestatizar sem privatizar, quer dizer,
mantendo-se diluído em toda a sociedade o patrimônio da empresa.
Socializa-se o patrimônio, desestatizando-o mas não o mantendo
em mãos de um empresário ou de um grupo particular.
O discurso e a prática denominados neoliberais propõem a
diminuição das atividades prestadas pelo Estado, donde a
desestatização de suas empresas, tanto daquelas que exercem
atividade econômica quanto daquel'outras prestadoras de serviço
público.
Como dito antes, o que se tem é uma alteração do modelo
de Estado e, o que é mais, do próprio desenho proposto de
sociedade.
Mais ainda, o que ficou conhecido como consenso de Washington determinou,
entre outras coisas, que se tivesse uma limitação do modelo
estrutural de Estado: passou-se a falar em Estado mínimo, ou seja,
aquele no qual a atuação estatal iria se abster a atividade
que o liberalismo clássico rotulou como próprias se intransferíveis
do Estado, tais como a da segurança.
O neoliberalismo ignora as conquistas do constitucionalismo social,
pelo qual novos serviços foram acoplados àqueles tradicionalmente
conferidos ao Estado como corolário lógico se paralelo inafastável
dos novos direitos fundamentais conquistados os direitos sociais, aqueles
outros considerados de terceira geração, tais como o meio
ambiente saudável se os do consumidor, dentre outros.
O discurso neoliberal corresponde a uma ganância empresarial particular
maior, que decorreu, em parte, da queda do contraponto ideológico
e político havido no socialismo experimentado em parte dos Estados
europeus, pelo que o reconhecimento e a garantia dos direitos fundamentais
sociais não mais encontraram respaldo na experiência ensaiada.
As sociedades políticas transformaram-se em mercados lucrativos
disputados pelos conglomerados empresariados; os Estados que pela fase
da tecnologia especialmente a das telecomunicações, já
viam superadas algumas noções com base nas quais se undaram
os seus sistemas (como, por exemplo, a de território, que passa
a ser questionado em sua virtualidade se em sua efetividade), passaram
a sofrer influência do predomínio do poder econômico
sobre o poder político. Mais o poder econômico passou a a
querer e a obter o predomínio do político, quer pela dependência
de recursos gerados pelas empresas transnacionais se que são entregues,
em parte, aos Estados, quer pela sua incontestável importância
determinada na onipresença no processo de eleições,
cujo financiamento é feito, em parte, por particulares.
Os serviços passaram a ser olhados, mais uma vez na história,
como fonte possível de lucro econômico, independente de sua
conotação social. Serviços como os de saúde,
de previdência, de telecomunicações e mesmo o de produção
e de pesquisa e lavra de bens minerários, por exemplo, que importam
para a sobrevivência soberana de um povo e do próprio Estado
passaram a ser olhados com cobiça pelos empresários particulares.
Cada Estado opta, contudo, pela manutenção ou pela transferência
de bens e serviços a particulares e pela sua publicização,
como também elege como a forma e a pessoa encarregada de sua prestação.
A desestatização é uma forma de acatamento de um dos
dez itens do consenso de Washington, aquele que se refere à presença
de empresas em setores econômicos antes detidos pelo Estado e à
possibilidade não apenas de serem eles excluídos do âmbito
estatal, mas ainda e até mesmo do âmbito do empresariado nacional.
No Brasil, o processo de desestatização levado a cabo pela
transferência maciça de empresas estatais para o setor econômico
privado e a transferência de forma delegada de prestação
de serviços por estas empresas particulares marca uma definição
governamental quanto à condução e ao desempenho dos
negócios públicos. Mais ainda marca-se com esta escolha o
figurino de cidadãos que o Estado se encarrega de prover de serviços
e bens. E tem sido ele o alvo ausente, porém maior, de todo o processo
a que se assiste, mormente no que se refere à privatização
de empresas prestadoras de serviços públicos.
II - Os serviços públicos se a privatização
de empresas estatais
Os serviços públicos prestados por empresas estatais que
sejam transferidas para o setor econômico privado passam por uma
transformação na sua forma de aporte ao cidadão. É
que a empresa pública concessionária de serviço público
subsume-se a regime jurídico que a deixa muito mais próxima
do direito público, do controle social e estatal, enquanto a concessão
outorgada ao particular determina alguns elementos da prestação
sem perder de vista, contudo, que à empresa privada interessa o
lucro econômico, enquanto ao setor público interessa o lucro
social.
A empresa estatal prestadora de serviço público afeiçoa-se
ao regime jurídico público pela circunstância de ser
bem da coletividade, enquanto a particular é bem inserido no patrimônio
do empresário privado.
Ainda que o contrato de concessão restrinja a conduta do empresário
em razão dos objetivos do serviço delegado, a natureza da
empresa e o seu regime de direito não se alteram por isso. Logo,
as finalidades que determinam a conduta do empresário não
são modificadas pela sua situação de concessionária
do serviço público, conquanto afetadas pelo contrato de concessão.
Privatizar empresas prestadoras de serviço público não
modifica necessariamente a condição da atividade por ela
desenvolvida. Entretanto, esta é atingida pela opção
administrativa privatizante, donde a circunstância de denotar a eleição
do serviço como público o modelo de Estado que se tem e bem
assim a escolha da entidade (pública ou privada) incumbida de sua
prestação.
No Estado Social se tem uma forma diferenciada de serviços arrolados
como públicos daqueles elencados em Estado liberal (ou, como agora
em voga, neoliberal). Nesse se tem um cuidado com a constituição
e organização administrativa distinta do quanto se tem naquele.
a) A condição das empresas privatizadas prestadoras de serviços
públicos
O serviço público tem como um de seus princípios constitucionais,
no Brasil, a finalidade de atendimento do usuário a preços
módicos quando não se tenha a sua gratuidade.
Assim é que, mesmo quando prestado mediante concessão, a
Constituição da República reconhece como um dos elementos
imprescindíveis do contrato no qual se contenha tal delegação
o resguardo dos direitos dos usuários do serviço.
Aqui tem o primeiro cuidado a ser considerado quando da desestatizaçao
de empresa prestadora de serviço público; o que se tem no
discurso neoliberal e na prática nele baseada é o afastamento
do Estado da própria atividade; o que se tem como finalidade da
empresa privada, mesmo concessionária de serviço público,
é o lucro econômico-financeiro; o que se tem no esboço
jurídico do regime do serviço público é a ênfase
no usuário do serviço e em seu direito de obter o melhor
serviço pelo menor preço possível. Como se assegurar
a eficiência, a modicidade dos preços no serviço quando
o empresário ganhará menos e o seu objetivo é obter
o mais?
Em segundo lugar, alguns serviços públicos são
estratégicos para o próprio desempenho estatal. Assim, por
exemplo, os serviços de telecomunicações, os serviços
de produção e comercialização de energia dentre
outros são essenciais à soberania do estado ou à sua
não dependência de outros estados e de outras economias.
A sua desestatização importa, então, em escolha de
um determinado caminho que pode impor gravames de dependência não
apenas econômica ao Estado. Como conferir a empresas particulares
internacionais, por exemplo, tais atividades sem embaraços à
sociedade e, inclusive, às futuras gerações que se
sujeitaram a um estado de coisas definido externamente e sem a sua participação?
Finalmente, a desestatização - quando a transferência
da empresa estatal se dê para entidade privada estrangeira - implica
em participação mais difícil da sociedade brasileira
( e não apenas do usuário) quanto à sua oferta e prestação.
Sendo privada, a empresa obedece a comandos internos. Sendo estrangeira,
subordina-se ela a comandos que advém de agente gerenciador assentado
em gabinete descomprometido e mesmo desconhecedor da realidade nacional.
Sendo ausente do cenário nacional, ausente dela fica o cidadão
brasileiro que pode e deve participar dos negócios públicos,
inclusive dos serviços que componham as obrigações
estatais. Ressalvadas as formas de atuação do usuário
que a lei assegure, a sociedade não tem qualquer participação
ou ingerência na dinâmica de oferta e garantia do serviço
delegado à entidade privada empresarial estrangeira.
Merece grande atenção no tema questão relativa
à condição jurídica do patrimônio nacional
quando se dá o processo de privatização de empresa
estatal prestadora de serviço público a) em relação
aos recursos provenientes da licitação por meio da qual se
tenha ela passado ao patrimônio particular; b) em relação
à nova condição jurídica interna desta empresa
com a concessão que lhe tem sido entregue sem o atendimento da exigência
constitucional de licitação.
Quanto ao primeiro item, é de se saber qual a condição
dos recursos provenientes da transferência da empresa para o setor
empresarial privado e qual a forma de participação do cidadão
no uso destes recursos.
Todos os recursos públicos têm a sua utilização
previamente definidos pela lei orçamentária. Cada vez mais
se tem a participação do cidadão no orçamento,
exatamente porque aí é que dos mínimos aos maiores
dispêndios se realizam (ou não) os objetivos da sociedade.
Os recursos obtidos com a venda de empresas antes estatais e que são
postas à desestatização são de natureza pública
e sujeitam-se, então, aos mesmos princípios daqueles que
adentram o patrimônio público. Como, pois, ser possível
imaginar que quanto a estes - que às vezes são vultosos -
a escolha do seu emprego é livre de qualquer vinculação,
ficando a exclusivo trato e decisão do titular do poder executivo
correspondente à entidade que leve a cabo tal processo em qualquer
participação ou controle popular?
Como ser possível admitir-se, no sistema jurídico democrático
constitucionalmente adotado, que o cidadão nada possa em relação
à coisa pública, que seja objeto de transferência e
mudança de natureza para o patrimônio particular?
Como, ainda, admitir-se como aceitável que um sistema que proíbe
até mesmo realização de concurso público no
período eleitoral (regra que já prevalecia quando inadmitida
a reeleição para os cargos do executivo no período
imediatamente subseqüente para os seus ocupantes) permitiria a realização
de concursos licitatórios de vulto que modificam o figurino de Estado
adotado e comprometem recursos que podem ser de enorme significação
para os períodos posteriores no mesmo período pré-eleitoral
e quando adotada no sistema jurídico a reeleição nas
condições acima postas?
Como se negar que os empresários novos titulares daquelas empresas
privatizadas sejam independentes do governante no qual se decidiu a opção
que o beneficiou?
E como se pensar que com tantas indagações em resposta única
e pronta se tenha assegurado o sistema jurídico democrático?
b) as conseqüências da privatização de empresas
estatais para a sociedade
A desestatização de empresas implica na recriação
do modelo de organização política, econômica
e jurídica do Estado. Sendo ele a pessoa que abriga toda a sociedade,
da qual é instrumento para a realização de objetivos,
é certo que quando se remodela a estrutura e a forma de organizar-se
a administração dos bens e serviços públicos
tem-se uma transformação do quanto antes eleito.
A modificação da estrutura e da forma de prestação
dos serviços afeta a vida das pessoas diariamente.
A primeira e mais imediata mudança havida por força de desestatização
dá-se, contudo, para a parcela da sociedade que compunha o corpo
de servidores ou empregados participante da entidade transferida para o
setor privado. Mudado o regime jurídico da empresa, alterado está,
paralela e imediatamente, o regime dos seus servidores. Mais ainda: o modelo
de empresa se altera pelo objetivo de busca do lucro que, legitimamente,
caracteriza o setor privado e neste novo desenho, em geral, servidores
e empregados antigos sentem a mudança de rota administrativa.
Servidores formados durante anos ou décadas no sentido de se aperfeiçoarem
em determinado serviço - especialmente aqueles que eram prestado
em regime de monopólio pela empresa estatal agora privatizada -
deixam de ser úteis e não encontram emprego ou colocação
no mesmo setor no qual se formaram.
Ademais, quando a privatização importa em transferência
da entidade antes estatal para empresas estrangeiras o que se tem é
um importe de recursos humanos, especialmente no que diz respeito aos quadros
mais especializados e de chefia, o que conduz ao afastamento dos servidores
e empregados nacionais.
Assim, a privatização altera, significativamente, a vida
das pessoas que trabalharam na empresa e em seu círculo imediato.
Mas não apenas para os servidores e empregados se tem a mudança.
A sociedade e, em especial o usuário do serviço que antes
era prestado por empresa estatal ressente-se imediatamente da mudança.
Exemplo disso se deu, no Brasil, com as franquias do serviço de
correios e telégrafos (e note-se que não houve transferência
de empresa ou mudança de sua natureza, mas uma forma inicial de
passagem do serviço mediante a franquia, que é considerada
tão somente uma forma de parceria do setor público com o
setor privado). Como o particular quer obter o maior lucro ele diminui
o número de empregados, diminui o período de trabalho a ser
feito (pois então ele pagará menos, mas o usuário
terá um tempo menor de disponibilidade de serviço), diminui
a exigência do nível de aprimoramento do empregado, o que
o leva a pagar menos a quem menos qualificado está. Não apenas
a natureza da empresa prestadora mudou como também o serviço
e a situação do usuário.
Quando a privatização não é de uma outra empresa
mas um processo envolvendo várias e muitos serviços antes
sujeitos ao regime de direito púbico e prestados pelas entidades
do próprio Estado as conseqüências para a sociedade são
sensíveis e exigem mudança de postura de todos os cidadãos.
Seu patrimônio empresarial altera-se e cede lugar ao empresário
privado, com os seus peculiares objetivos e formas de atuar.
III) - Privatização e desnacionalização de
serviços e de patrimônio estatal
A desestatização pode se dar, como antes lembrado, pela transferência
de empresas do setor público para o setor privado mantendo-se, contudo,
o patrimônio no âmbito nacional, a dizer, os recursos e os
serviços mantém-se nos limites da sociedade nacional.
Pode ocorrer, entretanto, que não somente se opte pela desestatização,
mas se permita também a transferência das entidades privatizadas
para o empresariado internacional.
A mudança é, então, muito mais profunda e sensível.
É que se caracteriza, nesse caso, uma mudança tanto do perfil
da empresa, quanto da estrutura dos serviços públicos pelos
quais ela responde, quanto, ainda, da ordem econômica acolhida no
estado.
Na esteira do neoliberalismo se tem a denominada globalização.
E é esta que propõe desconhecimento de fronteiras de qualquer
ordem sejam elas jurídicas, econômicas e territoriais. Esse
fenômeno que é tão antigo quanto as formações
estatais e que tem como objetivo meramente o lucro traduz-se, agora em
mercados que querem impor a lei do mais forte economicamente, a lei da
selva econômica, sem que leis dos homens e das sociedades políticas
civilizadas em busca de objetivos justos (o que distingue cada grupo com
suas crenças suas histórias). A desestatização
casada com a desnacionalização determina a desjuridicização
do projeto político e derrocada da soberania de um povo sobre o
seu destino. Não se cuida, pois, de uma questão relativa
a uma ou outra empresa, mas à forma de desenho do Estado e às
condições da sociedade.
Conclusão
Neste final de século de individualismo sem individualidade,
em momento no qual o que se come, o que se bebe, o que se veste é
determinado externamente pelos vendedores de comida, de bebida, de roupas,
e em que os molhos, os modelos são ditados por quem os fabrica,
é de considerar que o que se busca é o retorno à humanização
das relações cuidadas pelo direito formulado a partir da
escolha do povo no exercício de suas liberdades.
Desestatizar, desconstitucionalizar, desjuridicizar, desregulamentar e
o que é pior desocializar, desumanizar tem todos eles, em sua base,
destruir. O tempo é de resistência contra todas as formas
de destruição desumanizadora. A destruição
que impede a solidariedade verdadeira, fundada na fraternidade dos objetivos
mais humanos e mais justos, que cada grupo social define sem perder de
vista a única humanidade geral, que é a essência do
homem em sua contigência de ser que nasce, vive, tenta ser feliz
e depois morre. Segundo o seu próprio projeto pessoal e social,
coerente com o que se põe como aspiração o homem quer
ser autor de sua história e viver a sua cidade, não a do
outro. A privatização do poder da cidade política,
o afastamento do povo deste poder, a desculturalização de
seus hábitos e costumes não guarda qualquer afinidade com
o que é a individualidade. Afinal, como na palavra do poeta brasileiro,
"quero inventar o meu próprio pecado, quero morrer do meu próprio
veneno".
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