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Fraude eletrônica nas eleições

 

Osvaldo Maneschy
jornalista no Rio de Janeiro (RJ)

 

A partir de 31 de julho, entra no ar, em cadeia nacional de televisão, mais uma novela destinada a se tornar campeã de audiência entre milhões de brasileiros. Só que esta, patrocinada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), não será de romance ou aventura; servirá para explicar à população como operar as urnas eletrônicas que o TSE vem usando nas eleições desde 1996 a título de agilizar a apuração e eliminar fraudes tradicionais. Nas eleições de outubro deste ano as máquinas de votar substituirão totalmente pela primeira vez as cédulas de papel nas 315 mil seções eleitorais do Brasil e 107 milhões eleitores, usando 354 mil urnas eletrônicas, elegerão um total de 5.549 prefeitos e 57.316 vereadores, entre os 15 mil candidatos a prefeito e os quase 300 mil candidatos a vereador hoje existentes no país.

          A falta de intimidade com a informática nos recantos mais longínquos e atrasados preocupa o TSE, daí a sua ofensiva para explicar, na forma de telenovela, como o eleitor deve usar a urna eletrônica para exercer o direito de escolher os dirigentes do país. Mas o microcomputador que o TSE chama de "urna eletrônica" é um ilustre desconhecido não só para os brasileiros menos alfabetizados: especialistas em informática também se queixam dele. É porque a Justiça Eleitoral, contrariando a lei que determina absoluta transparência do processo eleitoral, insiste em manter trancado a sete chaves o que denomina "bloco de segurança" do software usado pelo micro; fato que impede que os partidos políticos – os legítimos representantes dos eleitores – fiscalizem a eleição. Hoje, como no tempo do fio do bigode, o que vale é a palavra do TSE. A urna eletrônica é inauditável.

          Sem entrar no mérito da opção do TSE pela novela como a melhor forma de se dirigir aos brasileiros para que aprendam a exercer o direito máximo da cidadania que é o voto, é real a preocupação sobre o mau uso da máquina. O problema pode até provocar a anulação do pleito em alguns lugares, atrapalhando a trajetória até agora tranqüila do projeto do TSE de acabar com o voto de papel e substituí-lo pelo voto magnético.

          As urnas eletrônicas começaram a ser usadas no Brasil em 1996. Naquele ano os brasileiros das cidades com mais de 200 mil eleitores – na proporção de 1/3 do eleitorado – votaram nelas pela primeira vez. Em 1998 todas as cidades com mais de 40 mil habitantes, na proporção de 2/3 do eleitorado, usaram as urnas. Este ano todos os 107 milhões de eleitores usarão as máquinas, do Oiapoque ao Chuí. Gente que jamais viu um disquete na vida terá que usar o computador. Preocupado, o TSE também está promovendo três eleições simuladas para conferir o grau de dificuldade dos eleitores: em Lavras, no extremo Sul do Brasil; em Oiapoque, no extremo Norte, e em Sirinhaém, no interior de Pernambuco.

          O problema é que não existe em qualquer outro país no mundo algo comparável: eleição totalmente informatizada, do início ao fim, do registro do eleitor à totalização dos votos, passando pelo ato de votar, só existe no Brasil. Isto não significa, para quem entende de informática, que tenhamos alcançado um patamar tecnológico único ou tenhamos assumido a liderança mundial no domínio dos meios eletrônicos de votar. Afinal voto eletrônico existe nos Estados Unidos, na França, no Japão, na Alemanha e em muitos outros países desenvolvidos. Mas sempre como apoio ao sistema tradicional, de cédulas de papel.

          Ninguém foi tão longe quanto o Brasil na adoção da votação por computador devido aos complexos problemas de segurança que a questão envolve. É por isso que até nos países mais desenvolvidos o voto eletrônico ainda está em discussão, enquanto o Brasil já aposenta este ano a cédula de papel e a urna de lona. O eleitor brasileiro não tem opção: ou ele vota na máquina, ou não vota. Situação diferente, por exemplo, dos contribuintes do Imposto de Renda. A Receita Federal introduziu a declaração informatizada, mas a declaração tradicional, em papel, ainda é uma opção à disposição dos contribuintes.           Para brasileiros versados em informática – especialmente os freqüentam a lista de discussão Fórum do Voto Eletrônico (http://www.votoseguro.org) que existe há três anos na Internet – o Brasil ultrapassou de muito todos os limites da prudência – apesar das garantias do TSE de que a máquina de votar é segura e imune a fraudes. O questionamento deles começa pela própria garantia da Justiça Eleitoral, que consideram uma heresia: para eles nada é inviolável quando o assunto é informática. Citam como grandes exemplos disso a ação de hackers desviando fundos de contas bancárias particulares, mexendo com uma das partes mais sensíveis das pessoas – o bolso; e a confusa eleição peruana – onde a Oposição vem fazendo sucessivas denúncias de que o Presidente Fujimori quer um terceiro mandato a qualquer preço, nem que seja fraudando as eleições.

          As críticas contra a urna vem se avolumando desde 1996, mas não conseguem chegar a opinião pública porque a grande mídia não tem aberto espaço para elas. Estes especialistas garantem que hoje não há como auditar a urna eletrônica porque ela não emite documentos para isso. Eles também condenam os "testes" a que as urnas são submetidas pouco antes da eleição, na frente dos fiscais dos partidos, porque o programa de "teste" não é o mesmo que será usado na eleição. Outra crítica é que o TSE, com as urnas eletrônicas, eliminou etapas que tradicionalmente existiam no processo eleitoral e facilitavam a fiscalização.

          O engenheiro de sistemas Amílcar Brunazo, especialista em segurança, criador e moderador do Fórum do Voto Eletrônico, é um dos maiores críticos da urna eletrônica. "Ela não é segura porque identifica o eleitor no mesmo ambiente magnético em que ele deposita o seu voto e também não permite auditoria externa ao TSE". Aristóteles Gomes, outro profissional da área de informática assíduo freqüentador do Fórum, considera uma impropriedade "até lingüística" chamar de urna o microcomputador desenvolvido pelo TSE para as eleições. "Urna, em latim, significa local onde se pode depositar algo que possa ser retirado a qualquer tempo; conteúdo previamente estabelecido que possa ser visto ou conferido". Exatamente o que não acontece na máquina de votar desenvolvida pelo TSE, que apenas totaliza os votos gravados magneticamente, argumenta. Aristóteles ressalta que não há mais voto a ser conferido, um a um, como acontecia na urna antiga. A nova, no final do dia, emite um boletim com totais e só. Não registra os votos um a um, só os totaliza.

          Mas em 1996, nas primeiras urnas eletrônicas, além do registro magnético, havia a impressão em papel - o que permitia ao eleitor conferir o próprio voto e também tornava possível fiscalização independente ao TSE. Mas a impressão foi abolida em 1998 o que tornou impossível fiscalizar a urna por falta de documentos para isto.

          O fato de aparecer na tela da máquina o nome, o número e a foto de determinado candidato na hora confirmar o voto do eleitor, não significa que ele receberá o voto. Um software desonesto pode totalizar o voto para outro candidato e, ao mesmo tempo, mostrar na tela o político que o eleitor escolheu. Não há limite para o que possa ser feito em matéria de software, daí a absoluta necessidade de controle externo sobre a eleição e os atos do TSE.

          Márcio Teixeira, outro freqüentador do Fórum, com a autoridade de ter sido um dos profissionais que desenvolveu o software das urnas eletrônicas fabricadas pela IBM, explica que o problema da segurança das urnas pode ser dividido em três partes: "Em primeiro lugar, a fraude interna, causada deliberadamente por alguém envolvido no processo, para fraudar ou prejudicar o processo eleitoral; em segundo, a quebra externa de segurança – alguém ou algum grupo não ligado ao TSE que altere o funcionamento ou o resultado de determinada urna eletrônica; e em terceiro lugar, erros de programação – causados não intencionalmente, mas com condição de alterar os resultados".

          Na opinião de Márcio, uma das principais preocupações do TSE deveria ser "garantir que a versão correta dos softwares e dados estarão corretamente instalados em todas as urnas"; além de facilitar ao máximo para todos os partidos, portanto para os eleitores, a auditoria das urnas porque, na sua opinião, não existe processo 100% seguro e garantido contra erros. Divino Leitão, outro freqüentador do Fórum, lembra que antigamente as fraudes eleitorais só aconteciam em pequena escala, estavam ao alcance de todos e recorrer a elas ou não, além de questão ética, dependia da decisão do candidato de querer correr riscos ou não. Agora, com as urnas, a fraude só está ao alcance de uns poucos. "Sabemos nós, macacos velhos de micros, que computadores não são confiáveis se não usarem sistemas abertos. Os programas das urnas, ‘por questões de segurança’, não o são".

          Sobre a insegurança da urna, em recente discussão no Fórum, Divino inventou uma historinha para reforçar os seus argumentos, num debate com Ed Gerck, funcionário da Módulo, outro listeiro. "Considere uma urna, numa cidade muito pequena, apenas com uns tantos eleitores. Eles votariam normalmente, sem qualquer problema grave, exceto o fato de um ou outro se atrapalhar com a máquina. Votos que seriam anulados para se chegar ao final da votação. Então seria gravado o disquete com a totalização da urna, que por sua vez seria encaminhado ao local do somatório geral. Logo depois teríamos o resultado na TV". Divino continuou a historinha: "Mas o que aconteceria se ocorresse uma fraude? Digamos que todos os 100 habitantes dessa cidadezinha combinassem votar exclusivamente em fulano para presidente, mas no final do dia a urna eletrônica, na totalização, mostrasse que o candidato beltrano obteve 60% dos votos. As pessoas, indignadas, se reuniriam na pracinha para tirar limpo a história e depois de repassarem um a um os votos, conversando com as pessoas, afinal todos se conheceriam, concluiriam que como combinaram, o candidato fulano foi realmente o mais votado apesar da urna afirmar o contrário. Só restaria a eles gritar fraude! E chamar a imprensa". E mais nada, porque não há como auditar a urna.

          No sistema em vigor, explica Divino, a urna só dispõe do espelho do que foi gravado no disquete da totalização, mais nada. E há um detalhe: o próprio disquete pode conter um pequeno programa de troca de votos. A posteriori, depois da totalização, uma auditoria no programa da urna, com certeza, não leva a nada. Até porque ninguém sabe o que pode estar nos chips usados pela urna, informação que só as pessoas que a criaram e fabricaram sabem hoje, o que é um absurdo na opinião dos especialistas do Fórum.

          Por isso mesmo, explica Divino concluindo a historinha, não adianta os cerca de 100 eleitores da cidadezinha jurarem para o resto do país que a eleição foi fraudada, nem mesmo no Fantástico, porque não terão como provar. O mal já estará feito e, com certeza, aparecerá alguém para dizer na imprensa que 60% dessas pessoas estão mentindo, reportando-se ao resultado da urna eletrônica. Não há defesa.

          O próprio Divino garante que só há uma maneira de impedir que a historinha se torne realidade em outubro próximo: que as máquinas de votar, como faziam em 96, emitam um comprovante impresso registrando o voto do eleitor. A volta do papel impresso é fundamental para a lisura da eleição porque permitiria que as urnas fossem auditadas pelos partidos. Como está vale exclusivamente a palavra do TSE de que as eleições são limpas, honestas e seguras.           Há uma máxima em informática que diz que quando um sistema depende exclusivamente da palavra de quem o controla, ele é intrísecamente inseguro.

          O Senador Roberto Requião (PMDB-PR), autor do projeto de lei 194/99 que está em discussão no Senado que tem o objetivo de aperfeiçoar o voto eletrônico, compara: "O fato de a urna eletrônica não fornecer comprovante impresso do voto equivale a fazer uma compra com cartão de crédito, não receber o comprovante da despesa e, no final do mês, receber um extrato apenas com o total a ser pago, sem discriminação das despesas e sem direito a contestar cobranças indevidas". O projeto de Requião determina que a urna eletrônica imprimirá, em cédula individualizada e não identificável, os votos dos eleitores, para que sejam conferidos antes de depositados em urna convencional. Se, ao conferir o voto, o eleitor não concordar com o impresso, solicitará sua anulação e repetirá a votação. Caso persista a divergência entre os dados eletrônicos e o voto impresso, a urna será submetida a teste por pelo menos dois fiscais de diferentes partidos ou coligações.

          Verificado o problema, o fato deverá ser imediatamente comunicado ao juiz eleitoral para as providências cabíveis à continuação da votação e à abertura de inquérito criminal. Ao justificar seu projeto, Roberto Requião argumenta querer impedir práticas capazes de prejudicar o processo eleitoral. Mediante a simples exigência de que o próprio eleitor tenha certeza do candidato em quem votou, verificando seu voto impresso e previamente rubricado pelos mesários, qualquer possibilidade de fraude eleitoral ficará dificultada. Os votos, depositados em urna convencional, permitirão a recontagem em caso de suspeita de fraude.

          Amílcar Brunazo, que assessorou Requião, explica com mais detalhes o problema: "Tradicionalmente a eleição passava obrigatoriamente por quatro etapas distintas, todas fiscalizáveis pelos partidos: identificação do eleitor, a votação, a apuração e a totalização dos votos. Cada uma dessas etapas podia ser conferida por alguém de "fora" da Justiça Eleitoral, para garantir a total lisura do processo. Com a adoção da urna eletrônica, as três primeiras etapas foram unificadas num único local e equipamento, continuando separada apenas a quarta etapa, a totalização".

          Pelo fato dos documentos de controle das três etapas terem sido eliminados, não é mais possível "alguém de fora" do TSE conferir a apuração de cada urna. Elas são 350 mil este ano e se o software falsear a digitação dos eleitores, desviando votos, não há como detectar a fraude porque embora a lei garanta aos partidos políticos acesso a todas as etapas da votação, apuração e totalização – os partidos não tem acesso ao que o secretário de informática do TSE, Paulo César Bering Camarão, classifica de "bloco de segurança" da máquina, para do software que é inacessível por determinação do TSE as pessoas de fora.

          Para os críticos do voto eletrônico o TSE escancarou as portas para novas e sofisticadas fraudes – muito mais graves do que as tradicionais. Fraudes que põem em risco a própria democracia – já que se tornou possível, fraudar até uma eleição presidencial. Basta usar o software adequado. Na visão de Brunazo, a própria democracia brasileira corre risco porque a vontade de milhões de pessoas pode ser manipulada porque os controles que a sociedade dispunha no sistema anterior e envolviam milhares de pessoas foram todos desativados.

          "Alguns entendem que o voto eletrônico brasileiro seja sinal de pujança e desenvolvimento da tecnologia da informática, mas a prudência e o bom senso recomendam que este tema seja pensado com maior cuidado e profundidade", alertou Brunazo em palestra no Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), São Paulo, em setembro do ano passado.

          Citando o Código Eleitoral em vigor, Brunazo argumenta que segundo o artigo 103, o sigilo do voto era garantido no sistema antigo através do uso de cédulas únicas impressas em papel; o uso de cabine indevassável, a verificação das rubricas dos mesários nas cédulas e o uso de urnas "largas" para receberem os votos, além da fiscalização em todo processo. Agora, com as máquinas de votar, tudo se resume ao artigo 61 da Lei 9.504, de 1997: "A urna eletrônica assegurará o sigilo do voto, garantindo aos partidos ampla fiscalização". O problema – explica Brunazo - é que honestidade não existe por decreto.

          É impossível para os partidos políticos auditarem, por impossibilidade física e até por desconhecimento técnico, uma a uma, as 354 mil urnas eletrônicas que serão usadas em outubro. Mas o problema é maior: segundo a resolução 20.563 do TSE, de março último, os fiscais partidários acompanharão a carga apenas das tabelas contendo nome e número dos candidatos aos cargos municipais. Eles não terão acesso a carga dos programas e do sistema operacional das máquinas de votar.

          Como não existe voto impresso, também nada garante que as máquinas funcionarão como deveriam funcionar, de forma isenta. A máquina de votar do TSE, controlada apenas pela informática do TSE – faz tudo. Trocou-se a segurança do processo eleitoral anterior pela velocidade e a rapidez da proclamação dos resultados. Sem dúvida alguma um retrocesso levando-se em conta que uma das bandeiras da Revolução de 30 foi exatamente a moralização dos costumes políticos brasileiros e o fim das fraudes eleitorais tão comuns nos tempos do coronelismo, enxada e voto – da República Velha. Para isto foi criada a Justiça Eleitoral.

          Segundo Brunazo, hoje o eleitor brasileiro não tem qualquer garantia de que será isento o software a ser empregado nas 354 mil urnas eletrônicas da eleição de outubro próximo, exceto a palavra do TSE. Ele não será analisado, validado ou certificado por qualquer auditor externo ao TSE. Na sua opinião, a confiança jamais poderia ser a única garantia. Há necessidade de procedimentos técnicos para isto.

          A título de comparação, no Estado da Virgínia, nos Estados Unidos, os fabricantes das urnas eletrônicas de lá são obrigados a apresentar toda informação sobre o hard e o software da urna a uma comissão composta exclusivamente por pessoas de fora do órgão executivo das eleições. Não repassar os dados, como o TSE brasileiro faz, é considerado como desistência do fornecimento do equipamento. Os analistas da comissão especial, por sua vez, são obrigados a assumir compromisso, assinando um documento, de que nunca revelarão para terceiros o conteúdo do que for classificado como "segredo" da urna.

          Outro problema sério, na opinião de Brunazo, é a possibilidade de quebra do sigilo do voto eletrônico. Só o TSE, mais uma vez, garante que o voto continua secreto depois da adoção da urna eletrônica. É que ao chegar a seção para votar, o eleitor entrega o título ao mesário e este digita o número dele no teclado acoplado a urna eletrônica. Segundo o TSE, para "disponibilizar" o equipamento para o voto.

          "Quem garante que este simples procedimento não identifique o voto do eleitor, já que o número do título é digitado no mesmo ambiente que recebe o voto magnético?" questiona Brunazo. Na opinião dele, a identificação do eleitor não precisa ser feita na urna, bastaria que prevalecesse o sistema antigo, da conferência de listas e documentos pessoais. O fim desse procedimento, garante Brunazo, garantiria sem qualquer dúvida o sigilo do voto – uma questão básica para a democracia.

          Outro problema apontado, que reforça a argumentação pela necessidade de transparência, é que técnicamente é muito simples inserir na máquina programas do tipo "ovo de páscoa", que depois de rodarem dentro de outro, o principal, desaparecem sem deixar vestígios. Esse subprograma simples transferiria os votos magnéticos de um candidato para outro e se apagaria sem deixar vestígios. Segundo Brunazo, quem é do meio sabe disso, por isso é preciso dar transparência ao processo, além de confiar no TSE.

          Para Brunazo e demais especialistas os procedimentos de segurança são essenciais - tanto que o Banco Central obriga os bancos a guardarem em papel, por seis meses, todos os registros relacionados a movimentação das contas dos clientes. O registro magnético, por si, não é garantia de nada.           A fraude é possível e o mais recente exemplo disso é o que está acontecendo no Peru. Mês passado Fujimori, com 49,9% dos votos apurados, estava quase ganhando a eleição presidencial no primeiro turno apesar das reiteradas denúncias de fraude feitas pela Oposição. Quando os Estados Unidos e países da Europa se somaram ao coro dos insatisfeitos, inexplicavelmente, votos sumiram, mapas desapareceram e a vitória certa de Fujimori virou disputa de segundo turno. E a crise continua porque o segundo colocado, com o apoio da comissão designada pela OEA para fiscalizar o pleito, exige que o software da totalização seja auditado – e para isto é preciso adiar a eleição. O impasse está criado.

          Aqui no Brasil, em 1989, o Partido Democrático Trabalhista solicitou ao TSE, na época presidido pelo Ministro Francisco Rezek, que fosse feita uma auditoria internacional no programa de totalização dos votos. O TSE se recusou, mandou arquivar o processo, Lula ultrapassou Brizola por menos de 500 mil votos, no primeiro turno, e perdeu o segundo turno para Collor de Melo – candidato das elites.

          Em se tratando de informática, todos os procedimentos precisam ser checados e conferidos por auditores externos para que não haja dúvidas.

          Amílcar Brunazo é bastante direto: "Chegou a hora do Brasil discutir a política de segurança do voto eletrônico, sob pena de deixarmos para nossos filhos um arremedo de democracia, onde o eleitor jamais saberá em quem votou e a Oposição mais terá condições de conferir os votos".

          "O povo não será ludibriado na sua vontade e não há perigo algum de que alguém possa manipular o voto eletrônico", com esta frase, pronunciada agora no último dia 7 de maio na sua cidade natal, Lavras do Sul, no interior do Rio Grande do Sul, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Néri da Silveira, resumiu as vantagens da informatização do voto no Brasil. Néri presidiu a singela cerimônia realizada na 6a. seção eleitoral de Lavras do Sul ao final do teste onde 420 dos 6.762 eleitores da cidade usaram a urna eletrônica pela primeira vez, numa eleição simulada. Lavras é uma das milhares de pequenas cidades brasileiras onde as urnas eletrônicas, em outubro próximo, substituirão definitivamente as cédulas de papel. O TSE promoveu um teste semelhante em Sirinhaém, no interior de Pernambuco, e fará outro em Oiapoque, no extremo Norte do Brasil.

          Na noite anterior, empenhado no que chamou de "cruzada cívica pelo voto livre e pela eleição de homens honestos", Néri da Silveira fizera palestra para os advogados da região pregando as vantagens da urna eletrônica. Na ocasião, afirmou: "Não vai trabalhar para o povo o candidato que gasta mais na campanha do que receberá de subsídios, se for eleito. Esse vai servir a grupos e a outros interesses, não a quem lhe deu o voto". No dia 20 de maio último, após visitar os estúdios onde será rodada a novela que o TSE começa a exibir a partir do próximo dia 31 de julho sobre as dúvidas dos eleitores no uso da urna eletrônica, Néri da Silveira assegurou que a Justiça Eleitoral "agirá com rigor para combater o uso da máquina administrativa e o abuso do poder político nas eleições municipais deste ano". Néri da Silveira é a mesma pessoa que, na véspera da eleição presidencial de 98, declarou publicamente o seu apoio à reeleição de Fernando Henrique Cardoso – embora devesse ficar neutro pelo fato de ocupar a presidência do TSE.

          Naquela ocasião os seguidores da chapa Lula-Brizola lembraram, com a declaração de Néri, a polêmica atitude do então presidente do TSE Francisco Rezek que, depois de comandar e conduzir todo o processo eleitoral que levou Fernando Collor de Melo à Presidência da República em 1989, afastou-se do TSE e tornou-se Ministro das Relações Exteriores do recém eleito governo. E que antes do término deste, no mar de denúncias de corrupção capitaneadas por PC Rodrigues, estrategicamente se retirou do Ministério e, caso inédito no Brasil, tornou-se novamente ministro do Supremo Tribunal Federal (STF).

          Em 1996, quando as primeiras urnas eletrônicas foram usadas no país, para quebrar eventuais resistências, o TSE também fez uma campanha nacional de esclarecimento como a de agora. Naquela ocasião destacou principalmente que as urnas eram seguras e evitavam fraudes, além de ensinar a usá-las. A mídia repassou esse mote – as urnas são 100% seguras – sem qualquer senso crítico e ele pegou. Mas já em 1996, pela Internet, uns poucos começaram a alertar que ela, da forma como estava, possuía falhas que permitiam novos tipos de fraudes bem mais graves que as tradicionais. A posição do TSE sempre foi olímpica, evitando polêmicas. A urna é segura e pronto.

          Na prática o voto eletrônico foi regulamentado, desenvolvido, implantado e controlado pelo próprio TSE que, a este respeito, assumiu funções legislativas, executivas e judiciárias. Toda a legislação eleitoral está reunida na Lei 4.737, de 1965, também conhecida como Código Eleitoral Brasileiro. Por ter sido elaborado em 1965, o código obviamente não trata do voto eletrônico, embora o seu artigo 152 deixe a porta aberta para a utilização futura de "máquinas de votar, mediante a regulamentação do TSE". O voto eletrônico é regulamentado por outra lei, a Lei. 9.504 de 1997, especificamente por seis dos seus 107 artigos. Há grande discrepância entre a legislação do voto tradicional – subdividida em 383 artigos descendo-se a detalhes como a cor da caneta dos escrutinadores e a distância mínima entre estes e os fiscais – o voto eletrônico tem a apuração, por exemplo, regulada por apenas 2 artigos da Lei 9.504, de 1997. Este pouco detalhamento é que permitiu que o TSE criasse uma máquina de votar que eliminou a possibilidade de auditagem e conferência da apuração.

          Enquanto o Código Eleitoral estabelece o direito à conferência da apuração no voto tradicional, a Lei 9.504 é omissa a este respeito em relação ao voto eletrônico. Por isso mesmo, quem quiser contestar algum aspecto do voto eletrônico tem que recorrer aos juízes do TSE pedindo que eles julguem seus próprios atos, baseados em resoluções e portarias escritas por eles mesmos.

          A resolução 20.103/98, por exemplo, discorre sobre a apresentação dos programas para análise de auditores indicados pelos partidos políticos; e a 20.105/98, por sua vez, regula os testes de certificação das urnas preparadas para funcionamento. A 20.105/98 é absolutamente vaga ao dizer que os fiscais dos partidos políticos fiscalizarão "a carga das urnas eletrônicas e poderão conferir, por amostragem, até 3% das máquinas". Além de não explicar a razão deste número mágico de 3%, quando o total de urnas a serem empregados este ano, por exemplo, é de 354 mil; o conteúdo da urna escolhida para teste pelos fiscais é alterado com a carga de um programa específico para teste e, logo depois, volta a ser carregado com o programa real de votação. Já a resolução 20.103/98, garante que os partidos terão ‘garantido o conhecimento dos programas de computador a serem utilizados". O TSE sempre se negou a apresentar o código completo dos programas usados na urna eletrônica, alegando razões de segurança.

Paulo César Bhering Camarão, assessor de informática do TSE, o homem que concentra em suas mãos todas as informações sobre a urna eletrônica brasileira, em palestra na OAB de São Paulo no dia 8 de março último, falando sobre a "total transparência aos partidos" que o TSE oferece, caiu em contradição ao afirmar que os fiscais partidários em acesso a tudo, "menos ao bloco de segurança" dos programas da urna. Disse também que a grande preocupação do TSE nas eleições municipais deste ano "é aumentar a transparência para os partidos" tanto do software da urna, quanto o da totalização dos votos. Num outro de seus raros contatos com a mídia, numa entrevista para a Rádio CBN no dia 16 de setembro do ano passado, Camarão garantiu a Heródoto Barbeiro que a urna era inviolável e que o TSE estava sempre pronto a receber qualquer cidadão, qualquer representante de partido, para a qualquer momento verificar a segurança dos programas. Na prática o TSE nunca permitiu uma auditoria real durante a votação, segundo Amílcar Brunazo, "conhecer um programa qualquer antes de ser carregado ou depois de utilizado não tem o menor fundamento técnico como método de segurança de dados". Outro problema é que o prazo de cinco dias para validação do software é insuficiente – sendo a recente eleição peruana o melhor exemplo disto: o candidato da Oposição se recusou a concorrer porque Fujimori queria que o programa de totalização, sob suspeita, fosse validado antes do prazo que os técnicos – inclusive os da OEA – consideraram que fosse o necessário para validar o programa peruano de totalização. Sem a garantia de um programa honesto, Cholo preferiu não concorrer – para não validar a eleição de Fujimori para um terceiro mandato presidencial.

          Depois de passar anos e anos argumentando que "as urnas eletrônicas eliminam totalmente as fraudes", Paulo César Camarão admitiu, na "Folha de São Paulo" de 23/09/98, que "quem for tentar (fraudar a urna) terá que subornar pelo menos uns 30" dentro do TSE. Fernando Koch, um dos integrantes do Fórum do Voto Eletrônico que foi funcionário do TRE no período 1996-1998, quando teve acesso a informações internas do desenvolvimento do projeto urna eletrônica e que hoje trabalha para as Nações Unidas, considerou absurda esta declaração de Camarão. "Em 1996 todo o desenvolvimento das urnas eletrônicas ficou a cargo de poucos menos de 10 pessoas contratadas na época pelo INPE que nem funcionários da Justiça Eleitoral eram, portanto não estavam sujeitos aos preceitos da confidencialidade".

          Koch, segundo ele mesmo afirma, teve contado direto e prolongado com o desenvolvimento das urnas desde o início, mas fez questão de deixar claro que nenhum funcionário dos TREs da época, nem mesmo ele, teve acesso direto ou abertura para fazer sugestões no desenvolvimento da urna eletrônica, trabalho que definiu como "fechado em razão do cronograma sempre apertado e do sigilo". Mas ele tem e teve acesso a alguns documentos ´internos´ do TSE porque, pela ONU, participa do projeto de instalar máquinas de votar em outros países – segundo explicou aos integrantes do Fórum do Voto Eletrônico.

          Koch também conhece bem a sistemática de licitações do TSE que está sendo julgado pelo Tribunal de Contas da União (TCU) por malversação de verbas para a aquisição de urnas eletrônicas. Sobre esta questão Koch alertou: "É sabido dentro dos TREs que a urna custa muito mais do que o valor das unidades compradas a cada eleição (neste ano de 2.000, algo em torno de R$ 168 milhões), devido a custos extras que englobam o armazenamento delas no período em que não são utilizadas, além dos sistemas de computação extra necessários para processamento dos disquetes, treinamento, equipe operacional, etc.

          Por exemplo, apesar do custo de R$ 168 milhões das urnas novas compradas para as eleições municipais deste ano, o valor total estimado de gastos do TSE com elas é de R$ 249 milhões, não estando incluído aí o custo do armazenamento das urnas usadas em 96 e 98, que também serão usadas em outubro próximo. Segundo Koch, o custo final do uso das urnas eletrônicas na primeira eleição brasileira totalmente informatizada, hoje, é estimado em três vezes o gasto com a aquisição das 354 mil máquinas que serão usadas - cerca de R$ 1 bilhão, algo em torno de US$ 500 milhões a grosso modo.

          Uma mistura perigosíssima de pouca transparência e muito dinheiro que gerou acirrada disputa de contratos entre as empresas que fabricam softwares e urnas (entre elas a HP, IBM, Itautec, Procomp, SID e Unisys); que foi parar neste início de junho na internet, no site http://www.ue2000.com.br, e no plenário do TCU que julga por esses dias denúncias de malversação de verbas do TSE – na antevéspera da eleição.

          Ainda de acordo com Koch, desde o começo do projeto urna eletrônica a questão da constitucionalidade (ou cumprimento das normas), além da segurança, eram itens muito questionados. Vários pontos de segurança foram ponderados "e o projeto estava por ser desaprovado, mas muitas ´forças´ a favor, quase todas de ordem político/econômicas", forçaram a aprovação e o início das operações da urna eletrônica já em 1996. Com a autoridade de quem teve acesso aos documentos internos do TSE, Koch afirmou aos integrantes do Fórum que até hoje não existe certeza do ´sigilo absoluto do voto´ como determina a Constituição". E todos no TSE sabem disto "independente de software/hardware, entrada de código, do eleitor ou não".

          Ele citou um exemplo: inicia-se a votação em determinada seção, cinco eleitores usam a máquina e ela quebra, por qualquer motivo. Passa-se então para a votação manual e aqueles cinco votos são incluídos no Boletim de Urna (BU) como votos-papel. Sabe-se quem foram os cinco que votaram tanto pela entrada do número do eleitor na urna, como por exclusão, já que foram os cinco que não que votaram em papel. Se os cinco votarem no mesmo candidato, o voto deles é conhecido, embora a Constituição em vigor garanta que o voto é secreto e inviolável para todos os brasileiros.

          Koch garante que nas eleições de 96, que acompanhou, houve muitos problemas no sistema de criptografia dos dados totalizados pelas urnas eletrônicas, tanto que no momento da totalização – sempre feita em locais pré-determinados pelos TREs/TSE - "o sistema foi abandonado e alguma ´forma alternativa´ de coleta de votos foi estabelecida durante a totalização, sem que fossem abertos detalhes sobre o procedimento, como sempre acontece". Comentário final de Koch, sobre este ponto: "Ficou estranha" a totalização...

          Na opinião de Koch, a forma de evitar fraudes na urna eletrônica é promover uma auditoria a fundo no programa da urna. Ponto-de-vista que Amílcar Brunazo Filho, moderador do Fórum, discorda: "Não creio ser possível garantir por melhor auditoria que seja feita, que as 350.000 urnas estarão com o software correto. Parte dos programas (sistema operacional e complementos) são carregados na fábrica e parte nas seções eleitorais. Não existe partido político com capacidade de mandar fiscais para todas as cidades do Brasil na semana anterior a votação, quando as urnas estão sendo carregadas e lacradas. Também é totalmente furada a idéia de fazer auditoria depois da eleição, existem programas que se auto-apagam da memória depois de executados, não deixando rastros de sua existência. No caso do voto eletrônico só tem sentido auditoria ANTES e DURANTE a votação. Depois, não serve".

 

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