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A Diplomacia. Pompa e circunstâncias de gloriosa carreira





José Osvaldo de Meira Penna*





Introdução


No relacionamento oficial entre nações e pondo de parte o que resulta dos contatos

individuais pelo comércio, a imigração ou o turismo, usa-se de dois métodos, o da guerra

e o da diplomacia. A guerra é a política “por outros meios”, acentuava Clausewitz –

meios excepcionais, violentos e perigosos.

No ato III° do Othello de Shakespear (III, 3), proclama o herói as condições de sua

profissão, como comportando a soberba, a pompa e as circunstâncias de guerra gloriosa.

Othello era militar, um almirante marroquino contratado por Veneza para a reconquista

de Chipre. A frase famosa me serve de título.

Pride, pomp and circumstances of glorious war!

Na normalidade da paz, porém, usam as nações de diplomacia. Esta substitui a

violência pela negociação, a cortesia, a astúcia, o protocolo e a amável sociabilidade.

Assim também os indivíduos, quando se comunicam fora do círculo estreito de sua

família, trocam idéias, coisas, mercadorias, serviços – trocam tudo aquilo que lhes pode

ser útil, necessário ou agradável, no que os grandes economistas modernos Von Mises e

Hayek classificavam como da essência da economia, a catallaxia, o termo grego para

troca. Após o século mais sangrento da história, é a esperança da humanidade que cada

vez mais, global e multilateralmente, possam os indivíduos e as sociedades pacificamente

se inter-relacionar, tendo como propósito a consecução dos interesses individuais e

coletivos de nossa existência.

No presente texto, vou me referir ao relacionamento pacífico entre as nações – a

diplomacia. Ela deve solucionar os problemas crescentes de cujo enfrentamento depende

não só a prosperidade, mas a própria sobrevivência da espécie no mundo global que nos

proporcionam os descobrimentos, a tecnologia, a invenção e a aventura.

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Será talvez, por esse motivo, que se cerca a diplomacia de uma certa aura mística. As

excelências contribuem para criar o ambiente, ao se resguardarem detrás de um véu de

condigna discrição e silêncio. Em nenhuma outra carreira, talvez, vigore com tamanha

pertinácia aquela instância psicológica, a Persona, que Carl Jung caracteriza como um

dos arquétipos protetores do Eu em seu relacionamento com o ambiente social. Trata-se

de uma verdadeira "máscara". Conforme o sentido inicial da palavra, a Persona era o que

usavam os atores no antigo teatro grego e romano. O portador da Persona é, literalmente,

um "mascarado"... A própria natureza da carreira, infensa à publicidade, aumenta a

distância entre seus membros e o comum dos mortais. A mitologia não é sempre positiva.

Para os que nela desejam ingressar, ela refulge com esplêndido e brilhante colorido de

Pompa e Circunstâncias. Para os reprovados em concurso ou aqueles a quem o

Excelentíssimo Senhor Presidente da República negou uma Embaixada ou uma

importante missão no exterior, ela se apresenta sob as facetas pejorativas de uma gaiola

dourada, uma máfia pretensiosa, uma desprezível côterie de diletantes.

No seu divertido Dictionaire des Idées Reçues, ou seja, dos preconceitos universais,

assinala Gustave Flaubert que é a diplomacia, geralmente, considerada une belle

carrière. Não há dúvida: uma bela carreira. Uma carreira singular, embora eriçada de

dificuldades e cercada de mistério, conveniente para gente nobre, muito acima do

comércio e composta de personalidades sempre finas e penetrantes. Flaubert é

naturalmente irônico em suas referências... Mas na patota de burocratas ciosos de seus

interesses, ou clube de arrogantes grã-finos, o título de Embaixador sempre carrega

fascínio. Talvez mais do que o de Ministro, Senador, Governador, Desembargador ou

General. Quanto General-Ministro que exerceu um cargo na carrière prefere ainda, entre

todos os rótulos honoríficos de seu currículo, o que lhe recorda a missão no exterior.

Talvez por isso comenta Geoffrey Moorhouse, em seu livro sobre os Diplomatas, que o

título de Ambassador adere com tanta freqüência aos hotéis de luxo... Com seus fraques,

jaquetões mesclas, calças listadas, casacas e multicores condecorações, muitas

Excelências se consideravam seres verdadeiramente singulares. Perdura de fato

singularidade, mesmo que não mais se distingam do comum dos mortais pelo monóculo,

as polainas, o colete cinza, a distinção de certos maneirismos e os hábitos peculiares da

reserva e introversão. Só os sacerdotes e os militares seguem profissões que tanto

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marcam o estilo de vida. Numa existência de trabalho com tantas singularidades, é

normal que a convivência conduza ao espírito de casta. Um inteligente colega britânico

que foi meu amigo no Rio e por toda a vida, Sir Kenneth Gordon James, observou certa

vez, com espírito, que o Itamaraty era o que de mais próximo a um clube inglês ele

conhecera no Brasil...

Na grande vaidade e pompa da diplomacia clássica, acreditamos que personagens que

nasceram com nomes tão vastos e sonoros como Rodrigues Alves de Moraes Barros,

Silva Paranhos do Rio Branco Nabuco de Abreu, Lima e Silva Moniz de Aragão, ou

Arcoverde Pessoa de Albuquerque Cavalcanti, estão destinados aos píncaros sublimes da

corte de Buckingham ou ao circuito privilegiado de Elisabeth Arden - do mesmo modo

como um Mena Barreto sempre deve atingir o Generalato e um Saldanha da Gama o

Almirantado. Mas, mesmo sem tal coleção de patronímicos ilustres, qualquer terceiro

secretário, filho de imigrante na primeira geração, pode, rapidamente, adquirir a postura

pomposa e blasée de um Embaixador Extraordinário e Plenipotenciário. Na época em que

o antigo DASP, criação de Getúlio Vargas, nos classificava por ordem alfabética, de J a

O, houve um jovem Cônsul de Terceira classe - tinha 23 anos - que conhecido se tornou

com o título de "Embaixador classe J", tal sua empáfia... O concurso no Instituto Rio

Branco permite hoje, a qualquer mestiço plebeu, "varar os umbrais desta gloriosa e

magnífica Casa de Rio Branco" como declarou um deles em seu discurso de posse... A

democracia avança, o espírito burocrático também e a igualdade de todos perante a lei!

Definições

Numa das obras mais recentes sobre a Diplomacia, a de Henry Kissinger (traduzida

pela Editora da UniverCidade), meu brilhante colega Luiz Felipe Lampreia, que foi um

dos que por mais tempo ocupou a pasta ilustrada pelo Barão, afirma ser esse livro “um

dos mais importantes estudos já publicados sobre a história internacional dos últimos

séculos e irá permanecer como referência indispensável para as gerações futuras”.

Acontece que Kissinger não dá realmente uma definição do que seja a Diplomacia.

Apenas insiste, obsessivamente, no seu ponto de vista que é ela a conduta por uma nação

da sua política externa, tendo em vista a defesa de seus interesses. O eminente judeu

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alemão naturalizado que se tornou não somente um dos mais prestigiosos secretários de

Estado, grandes historiadores da questão e dos mais explícitos definidores do que deve

ser uma política de bom senso e moderação – é igualmente um defensor contumaz da

idéia de “equilíbrio do poder” e da superação do “idealismo americano” pela Realpolitik

no estilo de Metternich e Bismarck; ou no da cínica Raison d´État de Richelieu. Nesse

ponto, nem tanto ao mar, nem tanto à terra. A Realpolitik, no meu entender, consiste em

ver longe, ver mais distante no futuro do que o simples oportunismo. Ou descobrir, como

aconselhava o grande economista liberal francês de princípios do século XIX, Frédéric

Bastiat, “aquilo que não se vê”.

Aplicando esse ponto de vista à diplomacia brasileira – pois já tratei dos problemas da

nossa Política Externa num livro publicado em 1968, logo após a conclusão do curso na

Escola Superior de Guerra, ao qual pouco tenho a acrescentar e pouco a modificar – direi

apenas o seguinte. A defesa dos interesses nacionais é uma motivação óbvia. Sempre

achei algo divertido e misterioso o fato que, de modo quase invariável, os condutores de

nossa diplomacia fazem discursos afirmando que “vão defender os interesses brasileiros”.

Que outros interesses poderão defender senão os interesses brasileiros? Poderiam ser os

interesses do Kabaka do Burundi, os interesses do Sultão de Brunei ou do Príncipe de

Mônaco? O termo “interesse” é tão pouco compreendido pela intelectuária brasileira que

virou palavra perigosa. A repugnância romântica em tratar pragmaticamente de

interesses, a curto e a longo prazo, levou grande parte dos diplomatas e dos chanceleres

na Casa a namorarem o mais grosseiro maquiavelismo dos pobres, encampando a cínica

Realpolitik que consistia, em nome da Política Externa Independente, tentar chantagear a

potência hegemônica ao tempo da guerra fria. De um desses chanceleres, pouco

experientes e transitórios, ouvi lamentar-se quanto ao fim da bi-polaridade na política

global. Ele não se dava conta que, ao explicitar uma tal opinião aberrante, após o annus

mirabilis de l989, estava pondo em pé de igualdade a democracia e o totalitarismo, a paz

mundial e o equilíbrio do terror atômico. Com o obsoletismo do conceito de Estadonação

soberano, certamente não estava, na ocasião, defendendo os interesses do país mas

seu interesse pessoal em obter emprego bem remunerado numa entidade internacional.

Tentemos, porém, oferecer algumas outras definições possíveis do que seja a

Diplomacia. Chanceler alemão antes da Primeira Guerra, o Príncipe von Bülow exaltava

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a diplomacia como uma poltrona de primeira fila no teatro da vida. Nenhuma outra

carreira administrativa ou de serviço ao Estado reivindica uma penetração tão profunda

na política do poder quanto a diplomática. Nem requer o mesmo calibre intelectual.

Carregada de artifício, temperada pela discrição, estimulada pela ambição, experimentada

na intriga, a etimologia do próprio termo diplomacia nos leva ao grego diploun, dobrar o

diploma. Estamos a um passo da interpretação de duplicidade. Foi um Ministro do Rei

James Iº da Inglaterra, no século XVII, que ofereceu a famosa definição de um

Embaixador como "um homem honesto, mandado ao exterior para mentir em benefício

de seu soberano". No original inglês - "to lie on behalf of his Sovereign" - há um

trocadilho sibilino: to lie é mentir e é deitar-se. Outro expert nessa área delicada,

Ambrose Bierce, autor de um “Dicionário do Diabo”, The Devil’s Dictionary, define a

diplomacia como “a arte de mentir em proveito de seu país”. Enquanto em seu livro sobre

o Foreign Office, concede Lord Strang que "uma certa capacidade para a fraude e o

engano é necessária a um diplomata".

O realismo político do diplomata, sua convicção entranhada que a política é só, na

expressão de Bismarck, a "arte do possível", e o hábito - que se torna uma segunda

natureza - de conviver com estrangeiros ou compatriotas poderosos, submetendo-se a

seus caprichos, leva muito carreirista a uma verdadeira expertise do compromisso, da

subserviência e da adulação. Acima de tudo, não criar conflitos, não descascar abacaxis e

evitar os riscos da responsabilidade! A mentira "branca" faria parte das boas maneiras.

Quando não é possível permanecer calado, mais vale presentear uma mulher feia com um

elogio galante do que lhe confessar a dura verdade. Napoleão, que foi um grande general

mas não necessariamente um grande diplomata, cometia gafes imperdoáveis. Certa vez,

sentado num sofá entre Madame Récamier e Madame de Staël, pontificou: “Estou entre a

beleza e a inteligência”. Percebendo logo a falha na cortesia que se deve às mulheres,

logo retrucou Madame de Staël, uma mulher supremamente inteligente: “Mais sire, je ne

savais pas que j’étais belle”... O tacto muito convém nos negócios públicos, tratando-se

de hoi polloi ou common people cuja susceptibilidade não se quer ofender. A virtude

suprema não é a veracidade brutal, mas o tacto. Compensamos o silêncio forçado pela

fofoca, o falar muito sem dizer nada, o sous-entendu, a ironia ou o bon mot oportuno que

alivia as tensões, Numa visão pragmática das coisas, porém, invocada por Kissinger ao

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final das novecentas páginas de sua obra, o bom diplomata será aquele que, conforme

aconselhava o poeta espanhol, buscará a andança sem fim: “Caminante, no hay camino.

Se hace camino al andar”... Não se necessita ser maquiavélico. Basta possuir o sentido

das conveniências e oportunidade, explicitando-o com os necessários circunlóquios e

eufemismos. O bom diplomata já foi definido como um indivíduo que é capaz de mandar

Você para o inferno, em termos tão melífluos e convincentes que Você acabará

antecipando, com prazer e entusiasmo, a aventura sugerida.

Os diplomatas, não somos, em geral, gente simples, mas já protótipos do “cidadão do

mundo” futuro. Como escreve ainda Moorhouse, se não nascemos com um traço

calculista, rapidamente o adquirimos em nosso modo de vida. Um provérbio inglês

acentua que o segredo da diplomacia é avaliar seu opositor, sem nunca com ele se

medir... Se por ventura os diplomatas merecem um santo padroeiro, seria Janus – o deus

que, simultaneamente, olha para os dois lados opostos e supervisiona os pórticos e

vestíbulos do mundo. Somos curupiras profissionais. Nossos pés apontam para um lado,

enquanto caminhamos para o outro: o calcanhar para a frente, os dedos para trás. Na

verdade, usamos uma máscara: a famosa Persona. A nossa é monumental! Uma anedota

sobre a carreira pode ser aqui relembrada. Num concurso para entrada no Foreign Office,

a seguinte questão foi oferecida aos candidatos: “Suponha que V. chegue num hotel e o

porteiro se engane com a chave. Você abre a porta do quarto errado e se depara com uma

mulher despida. O que deve fazer?”. O primeiro candidato respondeu: “Eu diria pardon

Madame antes de me retirar”. O candidato foi aprovado porque era bem educado, comme

il faut, mas com nota sofrível. Outro candidato, respondendo à mesma pergunta, disse:

Eu diria pardon Monsieur e me retiraria”. Esse candidato foi aprovado com nota 10.

Além de bem educado, era frio, rápido na decisão. Com um stiff upperlip, tinha tato...

Um grande poeta e ensaísta argentino, Leopoldo Lugones, propunha a divisão do

mundo entre a Cultura da Beleza, que é a nossa, latina, católica, meridional; e a Cultura

da Verdade, que é a do setentrião. Maquiavel, que foi embaixador de Florença, aplicou

muitos dos princípios mais rebarbativos da diplomacia à sua teoria política, endereçada a

Il Príncipe. Acentuava o famoso florentino que “o mundo sempre esteve habitado por

homens que sofrem as mesmas paixões”. A vulnerabilidade do diplomata a essas paixões,

inclusive às mais baixas, é conseqüência de seus privilégios, imunidades e regalias. Os

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estadistas dos países subdesenvolvidos, principalmente os recém-independizados,

reagindo a seus ressentimentos, acreditam que a arrogância, o abuso dos privilégios e

imunidades, e o maquiavelismo é uma técnica legítima e eficiente na conduta das

relações internacionais. Tornam-se por isso fourbes por impotência. Contrabando,

alcovitice, fraude, às vezes o próprio estelionato, roubo e assassinato, sempre são

possíveis na base da “imunidade diplomática”.

Contudo, a duplicidade é às vezes imprescindível. Vejam o que considero o mais

magnífico exemplo dessa atitude em que a clareza e precisão cartesianas, válidas em

matemática, física e boa filosofia, não são de modo algum bem-vindas. Quando o

Conselho de Segurança da ONU, há 30 anos, aprovou por unanimidade a Resolução que

visava orientar a solução da eterna questão da Palestina, descobriu-se que, por

duplicidade deliberada na tradução, o texto inglês, impreciso, impõe aos israelenses a

retirada “from occupied territories”, ao passo que o texto francês, língua mais falada no

Oriente Próximo, estipula, em tom definido, a necessidade da retirada do exército de

Israel “des territoires occupés”. Não é impressionante a pequena diferença? Milhares de

indivíduos, nesta segunda Intifada, estão morrendo em virtude de interpretações

contraditórias do sentido da imposição onusiana – a qual nada tem de salomônica.

O maquiavelismo dos pobres é particularmente bem-vindo entre os latinos, que

apreciam a retórica vã. Os brasileiros, somos mentirosos como as mulheres e diplomatas

natos. Talvez por isso temos tido uma boa diplomacia e raras vezes, senão nunca em

nossa história, cometemos um erro grave de política externa que nos poderia custar a

própria sobrevivência, ou uma crise de proporções argentinas. Keyserling nos definiu

como o povo da Delicadeza, utilizando o próprio termo português. Sérgio Buarque de

Holanda discute longamente o sentido da expressão “Homem cordial”, o que não

significa que não se possa detestar cordialmente um adversário ou procurar desbancá-lo

ou eliminá-lo com palavras cordiais. Os nórdicos, os americanos inclusive, por força de

sua educação protestante e puritana, cultivam melhor a ética da verdade mas, em

compensação, também mais facilmente se vulnerabilizam à acusação de arrogância e

hipocrisia. No século XIX, no apogeu de seu poderio oceânico, era a Inglaterra conhecida

como a "pérfida Albion"... Entretanto, sabiam os britânicos, com muito tacto, obrigar

seus correspondentes a engolir a pílula - e foi assim que construíram um imenso império

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e dele se desfizeram, sem grande alarde ou derramamento de sangue... Theodor

Roosevelt, que foi o primeiro Presidente americano a se dar conta que os Estados Unidos

se haviam tornado uma potência mundial, aconselhou seus compatriotas a carregar uma

grande borduna mas falar de mansinho – “speak softly and carry a big stick”...

A ironia ou o sense of humour, como dizem os ingleses, l´esprit como dizem os

franceses, é sempre um instrumento extremamente útil na linguagem diplomática,

sobretudo quando se enfrenta um homem poderoso. Certa vez, o general Bonaparte, então

Primeiro Cônsul da República Francesa e comandando seu exército invencível na

segunda campanha da Itália, encontrou-se com um antigo político e diplomata, velho

marquês, cheio de experiência e verve, e lhe perguntou, brutalmente, “Diga-me,

marchese, por que se diz dos italianos qu´ils sont tous fourbes (que são todos

velhacos)?”. Com um sorriso nos lábios e voz suave, contestou-lhe o venerando

aristocrata: “Non, non, Sire, non tutti, ma una buona parte, una buona parte...”

Balzac, vendo a diplomacia do lado de fora, acertou na meta ao defini-la como uma

ciência que permite a seus praticantes não dizerem nada, enquanto se protegem detrás de

misteriosos acenos de cabeça... É verdade que muitas vezes somos obrigados a manternos

calados. Pelo menos publicamente, em casos que mais nos revoltam ou nos irritam. A

acumulação do sentimento de frustração pelo silêncio forçado é causa de não poucas

úlceras, crises de stress, depressão, recurso à droga ou ao álcool. Outro diplomata inglês,

Sir Douglas Busk, autor de um livro sobre "A Arte da Diplomacia", escreveu estas

palavras mui verdadeiras (que reconheço, hoje, mea culpa, mea máxima culpa, não haver

inteiramente compreendido e aceito): "Na diplomacia dobramo-nos diante do inevitável;

aceitamos injustiças que nos revoltam, se nos permitimos sobre elas meditar; somos

corteses com homens que nos repugnam totalmente; aceitamos compromissos a despeito

da lógica; carregamos nossa mente contra nossa consciência e o fazemos com razão. Ao

mesmo tempo, se aspiramos a bem servir o Estado, é preciso que em nós subsista, contra

uma pesada armadura de postura cínica, um ódio à injustiça, um desprezo em relação ao

que é vil e abjeto, e uma repugnância inata pelo mau compromisso". Incidentalmente,

argumenta Sir Douglas contra a presença de mulheres no Serviço diplomático já que,

segundo seu ponto de vista, seriam elas incapazes de possuírem uma mentalidade desse

tipo.

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Um dos mais famosos teóricos da diplomacia, Sir Harold Nicholson, descreve o

Embaixador ideal como um bom lingüista, hospitaleiro, um homem de gosto, paciente,

imperturbável, tolerante da ignorância e tolice de seu próprio governo... e das safadezas

do governo junto ao qual está acreditado. É isso que devemos ser, diante das

circunstâncias! Nicholson adiciona, como virtudes do diplomata, a veracidade (sic), a

precisão, a lealdade, a modéstia e o senso de proporções. Sir Harold devia ser otimista.

Parece-me que essas supinas qualidades não são tão encontradiças entre nós - mas enfim!

reconheçamos que raro é o homem perfeito. Voltando a Geoffrey Moorhouse, acredito

com este ilustre britânico que a diplomacia constitui um contraponto cuja função não é

tanto procurar soluções, quanto impedir que o pior aconteça. Moorhouse parece ser

discípulo de Sir Karl Popper pois o grande filósofo ensinava que o mais importante, na

vida política, não é saber governar mas descobrir como nos livrarmos de um mau

governo sem violência. Seguindo nessa trilha, Lord Strang descreveu nossa profissão

como a arte da negociação e da persuasão. Das três funções do diplomata, postuladas pelo

grande guru da teoria diplomática que foi Nicholson - informar, negociar e representar

- o certo é que ainda nos encontramos sobretudo, os brasileiros, no patamar da

representação.

Representar, informar e negociar. Sabemos informar, sem dúvida, e negociar em

ocasiões prementes. Rio Branco se tornou um homem símbolo por ter sido capaz de

negociar fronteiras do país sem qualquer conflito. Hoje em dia, negociamos

adequadamente nossas finanças, nossa dívida externa, os créditos que pretendemos obter

de organismos internacionais, os conflitos que surgem na área da WTO, a Organização

Internacional do Comércio, as barreiras criadas pela Europa e os Estados Unidos em

matéria de produtos agrícolas, aço e outros produtos de exportação, e a confusão criada

pelo Canadá, na concorrência da Bombardier com a Embraer em matéria de mercado

aeronáutico. Mas isso é, sobretudo, questão econômica. Em tais áreas, bilaterais ou

multilaterais, são os detentores das pastas da Fazenda, Indústria e Comércio os mais

habilitados, em que pese a assistência dos diplomatas de plantão. Entretanto, dentro do

próprio Itamaraty, cresce em poder e prestígio a classe dos economistas que chegam a

invadir outras áreas da administração federal. Quando entrei para a carreira, a Divisão

Econômica da Secretaria de Estado, mal localizada no pardieiro do lado esquerdo do

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lago, tinha um status que só levemente excedia o da Portaria. Qualquer jovem diplomata

considerava uma capitis diminutio não servir nos augustos recintos dos gabinetes do

Ministro e do Secretário Geral, ou na Divisão Política. Com os anos foram as coisas

mudando. Alguns funcionários – louvados sejam! – como Dias Carneiro, Roberto

Campos, Edmundo Barbosa da Silva e Paulo Tarso Flecha de Lima – deram uma virada

de 180° no academicismo e nos divertissements da velha carreira. Muitas vezes vencendo

a oposição de seus chefes, foram estudar nos Estados Unidos com o propósito de

pragmatizar um pouco nossa diplomacia. Seu sucesso foi estrondoso. E como o brasileiro

em geral é levado aos extremos no entusiasmo imediatista, o ponteiro do relógio oscilou

para o outro extremo. Para alguns, o Itamaraty virou um armazém de secos e molhados.

Efetuamos, em suma, uma evolução contrária à que registrou o Canadá. Começou este

com um Department of Trade e só posteriormente à IIª Guerra Mundial, criou seu

Ministério das Relações Exteriores. Em contraposição a essa nova tendência, fruto da

chamada “ideologia desenvolvimentista” que prosperou à época do Presidente

Kubitschek, houve um descaso deplorável com a Cultura. A burocratização implicou

numa ojeriza aos que com ela se preocupam. Teria havido, ao que parece, um alto

funcionário da Casa que manifestou a opinião deveria ela livrar-se tanto dos intelectuais

quanto dos habitués do amor grego,

Entretanto, certo é que certas insuficiências de nosso país são visíveis na estrutura de

seu Ministério das Relações Exteriores. Temos que representar, o que quer dizer, fingir,

pretender, ludibriar, apresentar uma fachada mais potente e rica do que a realidade atual

da nação. Recebemos instruções da Secretaria de Estado que nos repugnam e desesperam,

mas temos que cumpri-las com um sorriso nos lábios, para despistar os nativos.

"Representação" faz parte de nosso hábito do "farol" e do "cartaz" - aparentar mais do

que a realidade. A Máscara, a Persona como eu já disse. Uma história me foi contada por

um colega, da época em que servia na Bolívia e bem reflete essa exigência soberana de

nossa carreira. O episódio se passou já há uns 50 anos. Encontrava-se esse meu amigo em

La Paz, como Encarregado de Negócios, ainda relativamente jovem, quando o chamaram

à Chancelaria local para lhe pedir consulta ao Itamaraty sobre determinada atitude que,

coletivamente, deviam as Repúblicas sul-americanas tomar em relação ao

reconhecimento da China Popular maoísta. O Secretário encaminhou o pedido ao

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Ministério, no Rio, por telegrama. Mas nada de resposta. Insistiu, e ainda nada, o silêncio

se mantinha. Passaram-se os dias, as semanas e, envergonhado com a abstinência oficial

brasileira em proporcionar a opinião solicitada - de duvidosa cortesia diante da insistência

das autoridades bolivianas - meu colega improvisou uma resposta que considerava

adequada às impacientes indagações do Altiplano. Consultou os precedentes, leu o

Hildebrando Accioly em seu prestigioso Tratado de Direito Internacional Público, assim

como uma história diplomática brasileira que lhe veio às mãos. Foi à Chancelaria

boliviana e explicou qual seria, normalmente, a atitude brasileira no caso em pauta.

Honesto entretanto, explicou ao colega nativo que, na realidade, nada ainda oficialmente

se sabia do Rio de Janeiro. Sugeria, em suma, que improvisara a resposta. Incrédulo, o

funcionário olhou, sorriu e pontificou, com de secreto e soberano entendimento:- "Ah!

ah! el Itamaráty jamás improvisa!"... El Itamaráty no improvisa tornou-se um slogan.

Adotamo-lo e o repetíamos cada vez que nos sentíamos frustrados com as ineficiências,

lentidões, displicências e demoras da Secretaria de Estado..

Seleção para a Carreira.

Não possui nosso sistema de seleção o rigorismo intelectual da École Nationale

d'Administration (ENA) francesa, nem tampouco a abundância de disciplinas

especializados em grandes Universidades, como ocorre nos Estados Unidos, preparando

nos cursos superiores os candidatos ao State Department. Tampouco, creio eu, pode

nosso Instituto Rio Branco competir com o hábil peneiramento de um complexo de

virtudes intelectuais, morais e públicas que caracteriza a prova seletiva para o Foreign

Service britânico.

O que se poderia, por ventura, criticar em nosso sistema de exame e aprendizagem no

Instituto Rio Branco, fundado posteriormente à IIª Guerra Mundial, é o diminuto apelo

feito a certas qualidades mentais e morais, não suscetíveis de serem aferidas

exclusivamente através de questionários de múltiplas escolhas, nem de dissertações ou

inquéritos de conhecimento a nível puramente cerebral. Os imponderáveis psicológicos

são mais importantes, o caráter. Haveria, por isso, que sempre se dar ênfase ao exame

psicotécnico, mas no bom sentido do método. O tipo de entrevista individual usada para o

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ingresso no F.O. britânico, através de uma simples conversa ou diálogo sobre temas

gerais de atualidade, permite obter uma melhor avaliação do caráter, talento, educação

mundana e cultura geral do candidato, do que no concretismo da prova escrita.

No sistema francês podemos registrar o hábito do Senhor Alexis Léger, antigo e

perene Secretário Geral do Quay d’Orsay de conceder uma entrevista final ao candidato

favorecido pelo Concurso na ÉNA. Ao terminar positivamente a conversa, Léger (que

recebeu o prêmio Nobel de literatura sob seu pseudônimo de Saint-John Perse) fazia

votos ao jovem diplomata para que gozasse de “uma boa carreira e um bom estômago”.

Certamente a culinária exótica é um dos percalços da diplomacia. Para estômagos

acidófobos, não são poucos os sacrifícios que fazemos pela Pátria em mesas estranhas.

No deserto do Negev, visitando tendas de beduínos, se oferece um olho de carneiro como

pièce de résistance, o acepipe mais delicado que possuem para um hóspede ilustre. Para

evitar esse teste e sabendo que, em outras tendas, me seriam oferecidas iguarias da

mesma natureza, numa visita à area argumentei, em cada tenda, que almoçaria na

residência do próximo Xeique. Mas o que então aconteceu é que ofereceram-me tantos

copos de café amargo, com chicória, e de chá tão adocicado que mais se assemelhava a

um xarope, que acabei atingido por taquicardia incontrolável. O Oriente Médio é fatal

nesse particular. Na Índia, fui escarmentado por um curry (caril) de tal potência que,

durante dois dias, temi estar sofrendo de disenteria aguda. Na Turquia, foi de um modo

geral a cozinha à base de gordura de rabo de carneiro o que me castigou. No Dahomey foi

um doce de feijão preto com azeite de dendê que me caiu no estômago como chumbo.

Cheguei a ouvir o baque. Em Hong-Kong, escapei de traumatismo ao me negar a

comparecer a um banquete, oferecido pelo Cônsul Honorário local, onde o acepipe

máximo seria cérebro de macaco, condimentado e comido diretamente dentro do crânio

do bicho, logo ali decepado. Vale lembrar os versos de St-John Perse,: “De doctrine

littéraire, je n´en ai point à formuler: je n´ai jamais trouvé mangeable la cuisine des

chimistes”...

Se, no sistema francês, se insiste na inteligência e na culinária, diferente é a

perspectiva no sistema britânico. Neste, não se avalia apenas a capacidade mental.

Escolhe-se os melhores pelo equilíbrio, a educação, a lealdade, uma cabeça clara, o bom

senso, o tacto, as boas maneiras e, nos termos da estrutura aristocrática da sociedade

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inglesa, o status social do candidato que já vem preparado de Eton, Oxford e Cambridge.

Em certa época, o Sub-Secretário Permanente do Foreign Office - cargo que corresponde

ao de Secretário Geral – insistia numa entrevista individual com os candidatos. Sir Robert

Vansittart costumava acrescentar a esses colóquios inquisitoriais um convite pessoal para

almoçar pois, além da capacidade intelectual, examinava as boas maneiras (table

manners) do postulante. O “exame de maneiras” é, em muitos serviços, estendido com

proveito às esposas dos candidatos. O Foreign Service Institute, de Washington, promove

cursos especiais para as mulheres. Outrora, no Brasil da época do Barão, era o próprio

Chanceler que gostava de investigar os candidatos sobre esses pontos: além do

comportamento do rapaz à mesa, apreciava sua habilidade como dançarino... Sobre table

manners adequadas fui duas vezes examinado por Ciro de Freitas Valle – na época do

Itamaraty do Rio era cognominado o Dragão da Rua Larga. Quando ingressei na carreira

(em priscas eras, 1938!), havia na seção de Protocolo, hoje denominada Cerimonial, uma

simpática Senhora, Dona Laura de Barros Moreira, filha de diplomata, que

ocasionalmente prestava valiosos serviços de “instrução social” sobre, por exemplo,

como usar os talheres e os copos de vinho; qual o dever de todos se levantarem à chegada

do Embaixador (inclusive as mulheres pois, como pontificava o Maurício Nabuco, “o

embaixador não tem sexo”); a regra de não saírem da festa antes da partida da mais alta

autoridade presente ou da pessoa a quem é a mesma oferecida; outras normas, como a de

sempre cederem a direita às senhoras, mesmo num taxi ou numa calçada; e de não

interromperem a conversa quando os mais velhos estão falando. Experiências do Grand

Monde... Estas boas maneiras foram sendo esquecidas. Para os “progressistas”, elas são

elitistas”. Democracia é, por muitos, tida como sinônimo de cafajestismo...

Peculiaríssima é, em suma, a carreira diplomática. Trata-se de uma profissão em que

se vive ou, pelo menos em parte, se deve viver no meio de estrangeiros, sendo diplomata

24 horas por dia... Uma profissão em que, com freqüência, se escapa do controle, da

convivência e mesmo da companhia e apoio moral de nossos familiares e amigos mais

chegados. No exterior, pode ocorrer que os diplomatas não cheguem mesmo a falar a sua

própria língua, por falta de interlocutor – considerando-se sobretudo que o português é

idioma parcialmente confidencial. Isto me aconteceu, pelo menos, em duas ocasiões, na

Turquia e na China, em períodos turbulentos em que tive de me arranjar como podia. A

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solidão e a alienação nos perseguem. A reserva se impõe como uma necessidade. As

tensões que o estranho modo de vida provoca determinam uma grave erosão no

psiquismo individual, donde o alto número de alcoólatras, drogados e desequilibrados.

Donde, para alguns, a escapatória do sexo: Roger Peyrefitte fala na “folie érotique des

diplomates” no seu best-seller que se tornou Les Ambassades... Donde a baixa

expectativa de vida, o alto índice de divórcios e outros percalços que se descobre numa

carrière geralmente tida como glamourosa.

As esposas dos diplomatas são vítimas notórias de tais tensões – o que explicaria¸ em

parte, a rapidez de câmbio em seu estatuto matrimonial. Por tal motivo, costuma ser de

bom conselho não perguntar a um colega, re-encontrado depois de longa ausência, como

vai passando sua cara-metade, citando-a nominalmente. A praxe é simplesmente indagar,

perfunctoriamente, “como vai a família?”. A estes achaques devemos amiúde agregar as

preocupações, sempre presentes, com a educação dos filhos – freqüentemente crianças

desenraizadas que acabam não sabendo muito bem qual é seu país, sua língua, sua cidade

natal, cultura, até mesmo identidade. A responsabilidade das esposas é quase igual a dos

cônjuges. Conviria, consequentemente, que o Instituto Rio Branco mantivesse cursos

especiais de instrução sobre os métodos de adaptação à vida estrangeira para aquelas,

menos brilhantes, que se revelem incapazes de viver sem feijão com arroz, uma mulata

doméstica, sol de Copacabana e samba no pé.

A filha de um velho amigo e colega inglês, John Hickman, escreveu uma histórica,

eminentemente pitoresca, Daughters of Britannia, a respeito de célebres esposas de

diplomatas britânicos. Duas, de interesse particular, foram a bela e espirituosa lady

Hamilton, mulher do embaixador em Nápoles e amante do almirante Nelson, e a piedosa

esposa de Sir Richard Burton. Em Santos, que os Burtons consideraram seu pior posto na

carreira, o famoso aventureiro, descobridor, escritor e diplomata traduziu Camões e

aperfeiçoou suas versões das “Mil e Uma Noites” e “O Jardim Perfumado”, as duas

grandes obras da imaginação erótica dos árabes. Também excursionou por áreas

desconhecidas de nosso país que, entretanto, acabou detestando.

Vida e prática no exterior

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É verdade que grande parte de nossas idiossincrasias emana da necessidade, muito

real, de permanente convívio com estranhos, com gente de todas as raças, religiões e

culturas, em climas rudes ou situações de violência coletiva. O imperativo de uma vida

que se estende dos trópicos ao círculo ártico, ou das altas latitudes da Noruega às

altitudes extremas do planalto boliviano, é essencial ao bom diplomata aceitar o sueco, o

venezuelano, o egípcio, o etíope, o iorubá ou o coreano como eles são e se comportam,

em seu meio nativo - o que nem sempre se explicita de maneira fácil. O isolacionismo

que a diplomacia cria entre seus membros e deve ser quebrado com a necessária

habilidade, lhe é imposto pelas circunstâncias do próprio convívio global, cada vez mais

diversificado. Voltando à obra The Diplomats, escreve pitorescamente Geoffrey

Moorhouse que uma Embaixada é “uma colônia cercada de natives”. Todo problema

consiste em relacionar-se com o gentio, esses indígenas exóticos, sem ofendê-los.

É dever específico do diplomata conhecer as idiossincrasias do tipo peculiar que é o

alien, o meteco. É chato ser alien, mesmo com passaporte de capa vermelha. Comporta

uma longa e árdua aprendizagem. Devemos estar a par do fato que, na Tailândia, não se

afaga com a mão a cabeça de uma criancinha, nem se dirige a ponta do sapato no sentido

da pessoa com quem se conversa. Na Turquia, não se aponta, nessa mesma direção,

qualquer objeto cortante ou perfurante. Em todo o Oriente Médio, não se beija uma

mulher em público pois beijar uma mulher constitui ato obsceno – que pode conduzir à

lapidação em praça pública – sendo perfeitamente lícito, porém, beijar um homem na

boca; nem se tira fotografia de alguém: é mau-olhado. Na Arábia Saudita, não se anda na

rua de calças curtas ou “bermudas”, nem se bebe qualquer espécie de álcool. No Japão,

ninguém se senta em cima de uma mesa, ato considerado extremamente ridículo. Na

Inglaterra, Suíça, Escandinávia e maior parte da Europa, não se fala em voz alta em

público – pois é considerado falta de educação, própria de cidadão de país

subdesenvolvido como o nosso. Convém ainda saber, quando se convida alguém para

jantar, que esse alguém chega cinco minutos antes se é finlandês, toca na campainha

pontualmente ao bater da hora se é sueco, aparece pelo menos com uma hora e meia de

atraso se é latino-americano e, provavelmente, não comparece se é africano.

Em Brasília mesmo, pois tais são nossos costumes tupiniquins, um embaixador

estrangeiro convidou um Ministro de Estado, homem de prestígio e conhecido em todos

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os círculos sociais da capital, marcando dia e hora para o jantar de cerimônia. Convocou

outros colegas a fim de serem apresentados à eminente autoridade. Quando chegou a

data, o casal não compareceu. O embaixador esperou meia hora, uma hora, duas horas. Já

alarmado, telefonou para a residência do Ministro onde uma empregada, com o sotaque

quase incompreensível do agreste sergipano, respondeu-lhe que o casal havia ido ao

cinema. Às dez e meia da noite, quando os convidados já começavam a se aprontar para a

partida, foram todos surpreendidos pelo Ministro e sua “madama” que, sem qualquer

cerimônia, explicou que não podiam perder a fita que haviam ido assistir... Um

embaixador tem de estar pronto para essas desfeitas. Nas embaixadas bem organizadas,

um casal de secretários permanece de plantão para ocupar os assentos deixados vazios

por desculpas de última hora. No Brasil o diplomata estrangeiro se habitua à mentalidade

do “mais ou menos” e acaba percebendo, se é suficientemente inteligente para uma tal

análise psicológica, que nosso país ainda não passou pela revolução cartesiana que exige

sejam as idéias explicitadas, coerentemente, com clareza e precisão... mais ou menos.

A variedade de costumes representa um folclore universal que nos é mister aprender,

se desejarmos nos adaptar à sociedade local e com ela conviver no exercício de nossas

obrigações diplomáticas. O diplomata é, por isso, a pessoa que ex-officio se prepara para

a globalização iminente. É o pioneiro do fenômeno mundial e, em que pese seu

patriotismo, deve ser um Cidadão do Mundo. Pois se desejarmos bem representar e bem

informar nossos governos, temos que nos misturar com os natives, quaisquer que sejam.

Válido é assim o cuidado com os russos que vos oferecem vodca, em quantidade

considerável e sempre suficiente para vos desatar perigosamente a língua; com os

franceses, que ficarão indignados se, em vez de um Bordeaux ou Bourgogne, Você pedir

coca-cola; com os japoneses, que gostam de peixe cru; com os nigerianos, para os quais

comida picante à base de palm-oil, azeite de dendê, é apimentada mesmo e indigestível;

com os indianos, que não vos oferecerão qualquer talher para degustar o inflamado carril;

e assim por diante. Pelo menos, nunca me aconteceu ser convidado para almoçar por um

canibal.

Entrementes, na Inglaterra, não se deve usar certas gravatas cujas cores constituem

emblemas privativos de universidades, clubes ou corporações militares. Na Escandinávia,

os inevitáveis discursos de banquete precedem a refeição, com um skoll! que inaugura a

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beberagem. Na Noruega, o convidado de honra senta-se à esquerda da dona de casa. Os

americanos não possuem a mínima idéia de precedência num jantar de cerimônia pois,

em sua Declaração de Independência, está assinalado como uma verdade evidente por si

própria que todos os homens nasceram iguais. Os ingleses, varões, permanecem à mesa

após o repasto, para fumar charuto e beber seu Porto, refugando sem cerimônia as

mulheres para a sala das visitas (Em Oslo, porém, aconteceu que uma Senhora, Ministra

da Justiça e convidada de honra, recusou-se a acompanhar as de seu sexo, alegando que

sua posição política lhe concedia o direito de permanecer com os cavalheiros – e assim

criando um “caso”, que exigiu a intervenção dos talentos do Chefe do Protocolo). Em

Ankara, durante a IIa Guerra Mundial quando lá servi, a presteza do Chefe do Cerimonial

era admirável. Ele sabia como evitar o contato direto entre os representantes de potências

beligerantes – valendo-se, com esse objetivo, da intermediação dos soviéticos e nipônicos

os quais, muito embora pertencentes a campos opostos, se davam conta que Japão e

URSS haviam assinado um Tratado de Neutralidade e Não-Agressão. O marco

memorável na vida desse grande turco foi desatar a saia da embaixatriz britânica que,

durante a recepção do Dia Nacional da Turquia, se havia embaraçado na ponta da espada

do adido militar nazista. No Vaticano, é desacato entrar com chapéu na cabeça num

edifício ou cerimônia religiosa. Em Israel ou numa Sinagoga, entrar sem chapéu. Nos

países islâmicos é sacrilégio entrar de sapatos numa Mesquita. No Ocidente, entrar sem

sapatos em qualquer recinto oficial. Em todos os países latinos é costume elegante, entre

as mulheres diplomáticas, conversarem sobre criados e queixar-se de sua incompetência.

O tema é tabu nos países da Europa nórdica, pelo simples motivo que lá não existe

criadagem. De um modo geral, na carreira, é perfeitamente in falar mal do país em que se

está acreditado... com os colegas estrangeiros, haja visto. No Brasil, porém, qualquer um

pode falar mal dos políticos locais pois são todos reconhecidos como de duvidosa

honestidade...

O relacionamento com a gente local varia em intensidade conforme os postos. Na

Turquia que, nos anos, 40 ainda era uma espécie de estado policial, o contato com o turco

era mínimo. Vivíamos embrenhados em nosso próprio meio, um gueto diplomático. Mas

como o calibre do CD, naquela época de guerra, era o mais alto possível, a introversão

diplomática configurava uma experiência altamente estimulante. Na China antiga,

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Beidjing possuía seu Quarteirão diplomático, cercado de muralhas. As muralhas

ajudaram quando, em 1900, foi o bairro assaltado pelos Boxers xenófobos e assassinos,

sendo defendido por um pelotão de marines. Quando os comunistas conquistaram

Beidjing e lá instalaram seu “Governo Popular”, uma das primeiras providências da

administração municipal foi derrubar as Muralhas, uma deplorável iniciativa do ponto de

vista da arquitetura, do urbanismo e do turismo. Mas um “bairro diplomático” foi

reconstruído em outra parte da cidade. Em Riyadh, na Arábia Saudita, o gueto fechado é

muito útil. Sobretudo para as mulheres dos diplomatas, que só ali podem sair à rua de

calças, dirigir automóveis ou mesmo andar sozinhas numa calçada, sem véus que as

cubram da cabeça aos pés. Topless nas praias, nem ouvir falar. Nos países da antiga

Europa de Leste ao tempo do estalinismo, ou seja, antes da queda do Muro da Vergonha

em Berlim e do esfacelamento do Império soviético, o isolamento era quase total, salvo

polidas conversas de salão nos cocktails e repastos oficiais. Uma Cortina de Ferro se

erguia não apenas nas fronteiras, mas em torno de todas as Embaixadas. Em Moscou,

vivia o diplomata assombrado pela bisbilhotice eletrônica e a espionagem policial e

convinha tudo filtrar do que se dizia, em termos ideológicos. Criava-se uma segunda

natureza de reserva e discrição pois, mesmo no segredo da alcova conjugal, não se podia

obter a certeza de que as orelhas inimigas não vos escutassem (pelo microfone

microscópico escondido sob o travesseiro). Os contatos com os cidadãos privados eram

impensáveis. O mesmo regime ainda hoje vigora em Cuba e na Coréia do Norte. E,

liberal e democrático como possa ser o Brasil, o país do “homem cordial” – tampouco

fácil é o relacionamento dos diplomatas estrangeiros, lotados em Brasília, com a gente

local. Conheci muitos embaixadores de países ditos “amigos” que, depois de anos de

trabalho na Novacap, continuavam com suas amizades restritas aos meios oficiais,

enquanto nos famosos jantares diplomáticos são os poucos convidados brasileiros

invariavelmente recrutados em um número limitado de favorecidos... e isso por

indiferença nossa, não por desconfiança ou xenofobia.

Daí o valor dos cocktails que muitos apontam como prova da fútil ociosidade

diplomática. Eles possuem o valor de promover os contatos sociais imprescindíveis e

facilitar o relacionamento politicamente útil em terra estranha. Informações ocasionais e

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fofocas são assim colhidas para a apreciação da conjuntura local. Em seu Cocktail Party,

T.S. Eliot é sarcástico

In the room women come and go

Talking of Michelangelo.

Em Israel, o relacionamento com a gente do país é fácil e imediato. Há que

reconhecer que se trata de uma das nações mais cosmopolitas do mundo, composta de

imigrantes procedentes da Europa, Ásia, África e América, falando praticamente todas as

línguas e transplantando para ali todos os costumes. O cosmopolitanismo vence as

barreiras e favorece o intercâmbio de gentes e idéias. O papel peculiar do diplomata em

Israel difere, assim, do enfrentado em outros países. Uma vez, numa reunião seleta de

israelenses que ocupavam posições eminentes nas artes, na universidade e negócios do

país, a conversa - em francês e inglês - começou a descambar para a crítica ferina ao

governo, aos setores religiosos ortodoxos da comunidade e aos erros que Israel cometia

na conduta de sua política externa. Tive então que solicitar aos presentes a interrupção do

franco bate-papo, pois do contrário, como diplomata, estrangeiro e goy me sentiria

obrigado à imediata partida - para não comprometer a postura indicada de neutralidade

nos negócios internos do país. Meus escrúpulos causaram hilaridade. Cabe, por outro

lado, não exagerar as nossas próprias idiossincrasias, hábitos folclóricos e idiotismos. A

Humanidade é uma só e o será cada vez mais, num mundo globalizado, mas ainda é cedo

para realizar o sonho utópico do velho Kant de uma paz perpétua numa sociedade

inteiramente cosmopolita. Um dia virá!

Entretanto, em matéria de eventualidade física, a carreira diplomática tem

demonstrado seu alto índice de periculosidade, particularmente no período de terrorismo

que surgiu a partir da década dos 60. Cinco embaixadores americanos, pelo menos, foram

assassinados por terroristas, pelo simples fato de serem representantes da super-potência

considerada “imperialista” e pro-sionista. Dois embaixadores alemães também. No

próprio Brasil, nos anos do regime militar, três embaixadores, o americano, o alemão e o

suíço, assim como o Cônsul Geral do Japão em S.Paulo, foram seqüestrados para forçar a

libertação de guerrilheiros e terroristas urbanos. O americano recebeu, na ocasião, uma

coronhada na cabeça que afetou irremediavelmente sua saúde, sendo obrigado a uma

cirurgia que lhe privou das pernas, vindo a morrer poucos anos depois de problemas

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circulatórios. Vários guardas diplomáticos foram assassinados. Os diplomatas turcos por

todo o mundo pagaram, muitas vezes com a vida, o genocídio praticado contra os

armênios durante a primeira Guerra Mundial. Os israelenses foram, naturalmente, vítimas

preferidas do terrorismo da PLO e sua embaixada em Buenos Aires, entre outras, voou

pelos ares com uma bomba colocada por fanáticos, até hoje não identificados. No atual

conflito com os apóstolos de Osama Bin Laden, não apenas as Torres Gêmeas de Nova

York, mas duas embaixadas, uma no Sudão e outra na Tanzânia, voaram pelos ares.

O ataque a diplomatas é fenômeno moderno. Revela a deterioração dos costumes

internacionais, ocorrendo como reação ao movimento irreversível de extensão do

ecumenismo e globalismo na economia e na cultura.

Entretanto, era comum, na Idade Média, a vingança sobre os diplomatas pelos atos de

seus respectivos soberanos, quando impossível atingi-los de outro modo. Vlad Tepes, o

Estripador, benevolente príncipe da Valáquia no século XV, tornou-se célebre por suas

inacreditáveis crueldades, dando origem à lenda do conde Drácula. Conta-se que

recebendo, certa vez, embaixadores do Sultão otomano que ameaçava seus domínios,

perguntou-lhes por que não se descobriam ao serem recebidos na corte. Pressurosos, os

enviados turcos explicaram ao Voivoda da Transilvania que o uso permanente de

turbantes era hábito de seu país. Elas mantinham a cabeça coberta, mesmo diante de seu

próprio soberano e na presença do Allah-uh Akbar, o Deus Todo Poderoso do qual é

Maomé o Profeta. “Vossas Excelências, então, nunca tiram seus turbantes?”, insistiu

Vlad na pergunta. E como lhe fosse respondido na afirmativa, o Voivoda comandou

alguns serviçais que trouxessem martelo e pregos enormes, com os quais foram os

turbantes turcos fixados à força no crânio dos eminentes legados. Isso não impediu,

contudo, mas antes apreçou a queda da Valáquia sob o jugo da Sublime Porta... Genghiz-

Khan, o maior “conquistador do mundo” que a história registra, encontrou no envio de

embaixadores aos soberanos que pretendia desafiar um pretexto fácil para desencadear

suas operações invasoras – e sabemos de seu sucesso. Em certa época, do mar Adriático e

planície húngara ao rio Yang Tzê, na China, e ao mar do Japão, passando pelo Iran e o

Afeganistão, a maior parte do continente eurasiático esteve sob seu poder descomunal -

uma área mais ou menos equivalente à da URSS e satélites entre 1945 e 1989.

Amparados pelas credenciais, Genghiz-Khan enviava seus homens, com reivindicações

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absurdas e ameaças horrendas. Se na ignorância do poder irresistível da cavalaria tártara e

algo ciosos de sua reputação e honra, os soberanos atingidos repeliam as demandas, o

Grande Khan encontrava, então, pretexto fácil para suas incursões devastadoras. Ainda

mais feroz, seu descendente Tamerlão (Timur Lenk) lhe seguiu o exemplo.

A pessoa dos embaixadores só se tornou inviolável e sacrossanta em épocas

posteriores, mais civilizadas. As regras da cortesia e privilégio diplomáticos foram

sobretudo formalizadas nos séculos XVII e XVIII, um período de equilíbrio de poder

entre as grandes potências européias, o século das luzes e de grande cuidado com as

aparências, as fórmulas, os trajes, os costumes e as cerimônias cortesãs. Atingir um

embaixador em sua integridade e dignidade constituía um autêntico casus belli. Muita

expedição punitiva foi desencadeada pelas potências européias contra régulos africanos

ou orientais, por motivo de atentado a seus representantes oficiais. As regras minuciosas

de precedência, por exemplo, foram elaboradas para evitar ciumeiras fatais: el Embajador

de Sua Majestade Católica se sentiria ofendidíssimo, por exemplo, se em Hampton Court

l´Ambassadeur de Sa Majesté Très Chrétienne ou o Sehr Geehrter Herr Botschafter der

Kaiser lhe precedessem no salão ou na colocação à mesa de banquetet.

O que hoje nos parece um protocolo ridículo era, nesse suntuoso período de

meticulosas normas sociais, uma praxe racional destinada a evitar o desporte favorito dos

reis, a guerra. No século XIX e princípios do século XX, a “política das canhoneiras”

garantia a segurança dos diplomatas. O que hoje ocorre revela, portanto, uma

barbarização do relacionamento entre os povos cujos elementos radicais não mais

compreendem ou respeitam os refinamentos do protocolo entre nações só teoricamente

iguais. A vaidade e a agressividade humanas não têm limites – entram em conflito.

Vocação e Profissão

A idéia normal que se tem do diplomata é que é um “profissional” no sentido próprio

do termo. A profissão é definida nos dicionários, no Aurélio por exemplo, como uma

declaração ou confissão pública de crença, opinião, sentimento religioso ou modo de ser.

É igualmente uma atividade ou ocupação especializada e que implica determinado

preparo. Max Weber pode ser aqui invocado. Em sua obra colossal destaca-se a Wirtshaft

und Gesellschaft em que o grande sociólogo alemão analisa o conceito de Beruf e seu

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efeito sobre a profissionalização efetuada na burocracia moderna. O efeito seria uma

conseqüência da Racionalização ou Des-magificação do mundo, a Entzauberung der Welt

com que Weber procurou descrever o processo em andamento nos fenômenos de

modernização e globalização. No Ocidente, nota-se que a profissionalização e

burocratização ocorreu, como destaca nosso colega Ricardo Vélez, a partir do colapso da

Autoridade Tradicional feudal ou patrimonialista, com sua substituição através da

transição do Carisma para a Autoridade racional-legal que caracteriza o regime liberaldemocrático

desenvolvido nas nações avançadas.

No Oriente, o processo é mais difícil no prosseguimento e menos distinto ao exame

científico dos especialistas. A China, por exemplo, é governada por uma classe

burocrática que data do aparecimento de Confúcio (Kung Fu-tse), no quinto século antes

de Cristo. Os ocidentais designaram essa classe com o termo português mandarim, o

homem que “manda” em nome do soberano, qualquer que seja o poder tradicional do

Imperador ou dinastia então reinante. A burocracia weberiana possui certas

características como o princípio de áreas gerais de jurisdição oficial; atividade requerida

por regimentos e propósitos cartesianamente estabelecidos; a execução de deveres e

direitos correspondentes a emprego permanente, carreira e salários determinados; e o

princípio da competência e da hierarquia estabelecido permanentemente em documentos

escritos. O conceito que o burocrata é um “servidor do Estado”, sendo esse Estado uma

entidade abstrata é assim formalizado.

O Itamaraty, particularmente a partir da administração do barão do Rio Branco em

princípios do século passado, criou a idéia de vocação e profissionalização no método de

racionalização crescente na seleção de seus funcionários. Originariamente, a seleção se

efetuava pelo exame pessoal do próprio barão, cedendo às indicações do Presidente da

República ou outro personagem influente no âmbito da política federal. Em seguida, pelo

sistema de exame ou concurso de provas, como já ocorria havia mais de dois mil anos na

seleção do mandarim chinês. Minha entrada para a carreira se deu desse modo.

Entretanto, sob a Ditadura Republicana de Getúlio Vargas, a seleção podia ocorrer, como

se comentava então sarcasticamente, por um “concurso de circunstâncias”. O último

funcionário escolhido desse modo pode ter sido, por ironia, o filho do Presidente do

Supremo Tribunal que, interinamente, governou o país em 1945, após a queda,

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militarmente forçada, do próprio Getúlio. A partir dessa época, a lealdade do funcionário,

pelo menos em teoria, não o prendia mais diretamente a uma pessoa, mas a uma

corporação abstrata, ou seja, à própria Casa. Fundado pouco depois, o Instituto Rio

Branco configurou, exatamente, essa idéia de laço abstrato de lealdade, obediência e

proteção entre o funcionário “de carreira” e a Casa, ou seja a corporação diplomática

organizada. O termo Itamaraty foi apropriadamente escolhido por sua natureza simbólica,

tanto assim que continua sendo usado muito embora o edifício em que funciona em

Brasília, só tenha sido construído e inaugurado na década dos 70. Lentamente, mas num

processo ainda longe de concluído, a racionalização da organização diplomática brasileira

tende a substituir o Patrimonialismo congênito de nossa sociedade, fruto de nossa herança

lusitana ibero-católica. Por isso, modéstia à parte, considero o Itamaraty um paradigma

para todo nosso serviço público civil. A idéia de “carreira profissional” deveria aos

poucos ser estendida a todo o serviço público federal.

Nessas condições, o corporativismo, a constituição de “panelinhas”, grupelhos ou

facções burocráticas, às vezes consteladas em torno de tendências não apenas

personalistas e clânicas (segundo a noção do “complexo de clã” de que falava Oliveira

Viana), mas ideológicas e partidárias, devem ser considerados como conseqüências

inevitáveis do processo incompleto de racionalização concebido por Weber. Assim, nos

primeiros anos de minha carreira, ou seja, ainda sob o primeiro governo de Getúlio

Vargas, assisti a um embate pitoresco e dramático entre dois grupos de embaixadores –

cada um deles sendo, segundo as circunstâncias do momento e as conveniências do

Getulismo, chamado ao poder ou dele afastado. Um dos grupos era distintamente

burocrático e mesclava os elementos patrimonialistas com os de organização racional.

Era formado em torno de personalidades fortes como Oswaldo Aranha, Maurício Nabuco

e Freitas Valle. O outro, mais informal, desorganizado e indisciplinado, porém mais

brilhante intelectualmente, se poderia caracterizar como constelado originariamente em

torno de Ronald de Carvalho, Mário de Pimentel Brandão e Carlos (Carlinhos) de Ouro

Preto. O conflito entre Nabuco e Pimentel Brandão foi monumental! Pimentel Brandão

era Ministro de Estado quando Getúlio impôs seu sistema ditatorial de governo em

novembro de 1937. Nabuco posteriormente conseguiu forçar sua “disponibilidade”

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(1941) mas, quando o adversário retornou à ativa alguns anos mais tarde, ele pediu

aposentadoria e, furioso, abandonou a embaixada em Washington.

A natureza polimórfica da carreira igualmente atrai os escritores. Vejam Joaquim

Nabuco, Graça Aranha, Ronald de Carvalho, Ribeiro Couto, Raul Bopp, Guimarães

Rosa, Vinicius de Moraes, João Cabral de Mello, José Guilherme Merquior e alguns

outros, como Érico Veríssimo, Viana Moog ou Josué Montello - que exerceram funções

quase diplomáticas. A profissão possui, evidentemente, um fascínio especial para aqueles

que manobram os livros, os que combatem com a pena enquanto simbólica e

elegantemente armados da espada embainhada da diplomacia. Mas suponho que a atração

de um além-mar mais culto, mais sofisticado, rico de artes, ciência e cultura, representa

um fator igualmente importante na escolha da profissão, ou na “vocação” para a

existência no mundo do além-mar. “El mal de Europa” dizia Manuel Galvés. Há 30, 50

ou mais anos, num Brasil ainda bastante provinciano, éramos todos mazombos, seduzidos

pela miragem estonteante da civilização européia e não há por que negar esse fato. Antes

da Segunda Guerra Mundial, a diplomacia abria perspectivas de alcançar uma vida

superior nos Estados Unidos, ou em Londres, Berlim, Roma e, sobretudo, Paris que, em

nossa cultura euro-afrancesada, era a “cidade luz” por excelência, o ofuscante foco de

todos nossos adejos de inquietas mariposas e onde, para alguns habitués, até os esgotos

da velha Lutécia e o desinfetante do metrô cheiram a perfume!

Esse tipo de bovarismo cultural, aliás, constituía um fenômeno geral. Destaca-se não

apenas nos países hispânicos, mas em todas as colônias e ex-colônias, e na área marginal.

Na Europa, a mesma atração vigorou na Rússia Tzarista – Dostoievsky, Turgenev,

quantos outros, falaram da Europa como um ídolo venerável não obstante constituir a

Rússia uma das potências dominantes da época. E, até a época da Grande Depressão,

quantos americanos emigraram para Londres, Paris e Roma, os expatriates que

encontravam o ambiente de seu próprio país demasiadamente materialista, vulgar e

filisteu: Henry James, Julien Green. T. S. Eliot, Ezra Pound, Henry Miller. Hemingway.

A lista é interminável...

Se é verdade que a literatura, o jornalismo e a política também atraem a atenção

paralelas daqueles que não se satisfazem com a função puramente burocrática, o fato é

que os regulamentos da Casa proíbem o exercício de atividade comercial ou remunerada

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paralela, o que é normal. Mas até onde vai a proibição? Durante a época de minhas

estrepolias jornalísticas, que me causaram atritos com suas mais altas autoridades, outros

colegas continuavam a dar concertos de piano, vender quadros e esculturas, lecionar em

universidades e escrever artigos de crítica literária - tudo o que uma interpretação estrita

poderia julgar uma violação do princípio estapafúrdio que o diplomata, como o oficial do

exército ou o sacerdote ou o médico, deve ser profissional as 24 horas do dia.

Entrementes, o embaixador Roberto Campos, senhor de suficiente prestígio público para

não fazer caso das cominações da Chancelaria, prosseguia com sua colaboração

jornalística sobre assuntos concretos de política, após um simples encolhimento de

ombros.

É interessante lembrar, neste contexto, que na mesma época do veto de Azeredo

Silveira à minha colaboração com o Jornal do Brasil, Jornal da Tarde e Estadão

(1978/81), um curioso incidente chamou a atenção da imprensa européia. A Unesco

discutia medidas de inspiração totalitária, patrocinadas por marxistas e terceiromundistas,

no sentido e cercear a livre circulação de informações internacionais. Um

relatório a respeito do assunto fora apresentado à Organização, para debate, pelo sr. Sean

MacBride, ex-terrorista irlandês e chefe do Estado-Maior do IRA, homem de maus bofes

que, por uma aberração, recebeu o Prêmio Nobel da Paz. O embaixador dos Países

Baixos no Conselho da Europa, Jan Breman, publicou um artigo na revista do Conselho

denunciando o Relatório MacBride com palavras duras, entre as quais os qualificativos

de "escapista e hipócrita". Esclarecia, porém, que tal era sua opinião pessoal. MacBride

que, como bom marxista, mantinha tendências incoercíveis ao patrulhamento ideológico,

queixou-se ao governo holandês pelas manifestações de seu embaixador. O assunto foi

objeto de interpelação no Parlamento neerlandês onde o Chanceler respondeu de maneira

exemplar: "Como na maior parte das democracias, os embaixadores holandeses têm o

direito de exprimir seus pontos de vista privados, como cidadãos possuidores dos

mesmos direitos do que quaisquer outros - sempre que suas opiniões sejam identificadas

como tal". Vejam o contraste dessa atitude com a política de restrições acima

mencionada!

O meio-termo e o bom senso nesse terreno seriam desejáveis: o lema délfico meden

agan, "nada em excesso". A extravagância libertária chega a absurdos nos Estados

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Unidos, onde muito funcionário público, valendo-se ao que parece da primeira emenda

constitucional que garante a liberdade de expressão, sente-se com direito de provocar

escândalo (bem remunerado naturalmente), pela "revelação" de segredos de Estado e de

documentos confidenciais. A tolerância de lá, oriunda do ímpeto suicida característico do

liberalismo americano, não deve evidentemente ser imitada. Por ouro lado, o conflito de

interesses pode seriamente afetar a atividade de embaixadores, num contexto em que

diplomatas amadores, political appointees como dizem, favorecidos com prebendas

diplomáticas em troca de sua contribuição financeira aos dois grandes partidos em época

eleitoral, chefiam missões em postos importantes. Em nosso continente austral, podemos

citar o caso do embaixador Spruille Braden que, em Buenos Aires, intervindo

ostensivamente com o intuito de prevenir a subida ao poder de Perón, então considerado

como instrumento obsoleto do nazismo, acabou por reação à sua incompetência

favorecendo a eleição desse demagogo que tanto mal causou àquela nação, nossa vizinha,

amiga e associada do Mercosul. Mesmo no Brasil, em setembro 1945, Adolphe Berle,

embaixador americano de fora da carreira, mas político da confiança de Roosevelt, viu-se

emaranhado pelas artimanhas de Getúlio Vargas o qual, prestando secretamente apoio à

campanha “queremista” (“queremos Getúlio sempre no poder”) usou o pretexto da

intervenção indevida do governo americano nos negócios internos do país” para reforçar

seu controle sobre a massa popular – controle que o iria conduzir, como se sabe, à eleição

de 1950, declínio e suicídio quatro anos depois.

Enfim, um embaixador não deve intervir na política do país junto a cujo governo está

acreditado. Muito incidente diplomático tem sido provocado pela violação desse tabu.

Um embaixador, no entanto, não é um simples “moço de recado”. Nesse sentido, as

facilidades de comunicação e transporte oferecidas pela moderna tecnologia estão

mudando drasticamente a forma e modo de ação do diplomata. Quero citar um exemplo

interessante do fenômeno. No princípio dos anos 80 tornei-me amigo, em Brasília, do

embaixador da Alemanha, Schoeller, e sua esposa, um casal encantador. Posteriormente,

foi ele transferido para Paris onde, minha mulher e eu, o visitamos na sua residência às

margens do Sena. A embaixada alemã ocupa um majestoso palácio que pertencera à

imperatriz Josefina, primeira esposa de Napoleão. A embaixada fora adquirida pelo

governo da Prússia durante a ocupação de Paris, em 1815, pelas tropas dos aliados que

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haviam vencido o imperador dos franceses em Waterloo. Ao felicitar Herr Schoeller por

sua nova missão, certamente de maior glamor do que Brasília, contestou-me ele,

explicando que se tornara muito fácil tanto para o Chanceler alemão, quanto para o

Presidente francês se comunicarem pelo telefone ou darem um pulo de avião, entre suas

capitais, do que pela intermediação dos respectivos embaixadores. Em suma, a

diplomacia deve minimizar sua relevância na era da globalização, eis um fato

incontestável. Estará a profissão condenada?

Isso tudo quer dizer que o fator de “representação” fútil ainda configura um elemento

considerável da atividade diplomática. Quando eu entregava credenciais, firmadas pelo

Presidente da República Federativa brasileira, ao etnarca de Chipre, ao presidente da

Polônia ou ao rei da Noruega, invariavelmente ouvia o hino nacional, para dar o

necessário tom emocional à cerimônia. Em tais ocasiões a tropa apresenta armas. Por que

esse gesto? Desde a noite dos tempos, desde a pré-história, talvez mesmo desde a época

dos Neanderthal e, possivelmente, ainda hoje o enviado de um cacique tupiniquim

visitando um cacique botocudo, com qualquer mensagem de relevância para ambos,

confirma a prática de um guerreiro apresentar seu arco e flecha em sinal de suas

intenções pacíficas e amistosas, ou saudar o estranho com o braço levantado e a mão

aberta (a saudação “romana”), como a querer demonstrar que não está armado, nem lhe

quer ofensa alguma. Do mesmo modo, se diz que o familiar aperto de mão teria sua

origem num antigo episódio de pandemia, em que se estabeleceu o hábito de demonstrar

um sentimento de amizade, superior ao risco de contágio maléfico pelo contato físico

direto.

Num mundo globalizado, temos que nos familiarizar tanto com gente muito rica e

civilizada, quanto com os povos “exóticos”, sempre nos dando conta que somos nós, na

perspectiva do outro, os verdadeiros “exóticos”, os excêntricos, os extravagantes,

eventualmente até os levemente loucos, perigosos ou indignos de qualquer atenção. O

Brasil não se considera potência emergente? Seríamos a sétima ou oitava economia do

mundo. Somos pouco conhecidos em termos de nosso poder político ou econômico real.

Mereceríamos, incidentalmente, não um lugar permanente no Conselho de Segurança da

ONU – um capricho ridículo e não facilmente alcançável – mas, sim, um convite

permanente no sentido de nosso Presidente comparecer às reuniões dos sete, oito ou nove

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Grandes que dirigem o mundo – se souber falar inglês, evidentemente. Como o convite é

informal, seria muito menos árduo, creio eu, obtê-lo do que a situação almejada que exige

uma reforma da extremamente rígida Carta daquela organização.

Valor e Deficiências da Carreira

O último ponto a que em que desejo tocar diz respeito a certas críticas,

ocasionalmente, dirigidas à carreira. Amiúde são elas apontada por pessoas que ignoram

tanto o âmbito, quanto as limitações propriamente impostas à ação diplomática, muito

embora certas tendências da diplomacia brasileira levantem problemas que merecem ser

debatidos. É verdade que a moderna ação diplomática exige dedicação, vocação e grande

capacidade de pensar e antecipar, o que implica profundidade de conhecimentos. A

burocratização necessária, no sentido de forjar um instrumento eficiente para ação

externa, não deve ser tal que comprometa o uso da imaginação. Não queremos que se

estenda esse rebaixamento da Cultura nacional ao nível de uma declaração do cacique

Juruna, um discurso petista ou uma pornochanchada financiada pela Embrafilme. No

vendaval provocado pela Revolução industrial que nos atinge em cheio e nos deixa

perplexos, o Itamaraty continua sendo uma das poucas instituições que têm atravessado,

quase indenes, as vicissitudes políticas do país. Fiz recentemente a constatação algo

terrível que, desde quando há 64 anos fui nomeado Terceiro Secretário por concurso e, há

36 anos, fui promovido ao escalão mais alto da carreira, Ministro de Primeira Classe com

o título de embaixador, o Brasil mudou várias vezes de governo, de regime, de

constituição (pelo menos, quatro vezes), de presidente (cerca de 17 vezes ao todo), de

política e de atitude perante o mundo. De uma nação pobre e atrasada de 50 milhões o

país se tornou uma potência de 170 milhões, com a sétima ou oitava economia do mundo.

Como tem mudado nosso país! No entanto, durante todo esse longo período que cobre

dois terços de uma centúria, uma coisa jamais cambiou em minha vida profissional.

Nunca deixei de receber o contra-cheque de meus honorários, na ativa ou na

aposentadoria, ao final do mês. Não representa isso um triunfo da burocracia? Não é este

fato o testemunho mais concreto da longevidade e fortaleza do dinossauro que é o Estado

brasileiro – esse Leviatã bonachão ou Ogro Filantrópico como o chama Octávio Paz?

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Um fator extra a considerar nessa situação é a pretensão patriótica de o Brasil se fazer

representar em lugares tão absolutamente distantes de nossos interesses quanto de nossa

geografia. Capitais como, por exemplo, Windhoek, Maputo, Libreville, Abu-Dhabi,

Harare, Cotonou, Kuala-Lumpur ou Manila. É verdade que possuímos 98 embaixadores

do quadro, mais 63 do Quadro Especial; mais 148 Ministros de Segunda dos quais uma

grande percentagem está comissionada como embaixador em países de segunda categoria

na Ásia e África (oficialmente, sendo “embaixador” apenas um título, numa interpretação

rigorosa do termo, concedido após entrega de credenciais ao Chefe de Estado estrangeiro,

por parte de um Ministro de Primeira; ou de um Ministro de IIª classe comissionado; ou

de uma personalidade de notório saber e prestígio, de fora da carreira porém de livre

escolha do Presidente da República) – enquanto existem apenas 171 Terceiros Secretários

em início de carreira – o que dá pouco menos de mil funcionários de carreira. Resultado,

a hierarquia constrói uma pirâmide invertida – a base menor do que topo! O número de

embaixadores, dizia eu, está crescendo de maneira tão extraordinária que já os colocamos

em número de quatro ou cinco em Roma, sete nos Estados Unidos, dois ou três em Paris,

e assim por diante em ordem decrescente de importância ou amenidade da cidade onde

estabelecem presença oficial. Cria-se embaixadas para ter o que fazer com embaixadores

supranumerários. A inflação diplomática não reflete apenas a inflação da Persona. Não

constitui somente o desejo de proporcionar prebendas e sinecuras para os funcionários

nos últimos postos da carreira. No Brasil, o fenômeno inflacionário na burocracia é geral.

Também possuímos mais almirantes do que navios na esquadra, mais brigadeiros do que

aviões de combate, mais generais do que divisões prontas para a guerra, mais escolas de

medicina do que nos EUA, mais universidades do que na Europa e mais funcionários, no

Banco do Brasil, do que os que trabalham no Citicorp, o maior banco do mundo. Talvez

tenhamos mais advogados do que “Causas”, embora seja sabido que elas se amontoam

aos milhares nos tribunais, sem solução por anos e anos a fio. E certamente criamos

estados artificiais, a partir de territórios vagabundos, para arranjar lugar para oito

deputados e três senadores cada um, juntando mais a cambada que os cerca. Do mesmo

modo como criamos municípios para sustentar a ociosidade local com recursos federais.

O conhecido economista americano-canadense John Kenneth Galbraith, personagem

detestável com quem almocei no Rio de Janeiro ao final da década dos cinqüenta quando

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era ainda incógnito, foi posteriormente embaixador em Nova Delhi. Ele escreveu a

propósito: “Na Índia, durante o tempo em que lá estive, existiam algo como cinqüenta

embaixadores... que eram um exemplo espetacular do que os economistas chamam de

desemprego dissimulado’ (disguised unemployment). Os embaixadores da Argentina e

do Brasil não poderiam ter mais do que um dia de trabalho sério por mês. Os diplomatas

mais atarefados da Escandinávia, Holanda, Bélgica ou Espanha poderiam cumprir seus

deveres essenciais em um dia por semana”... Uma opinião ainda mais derrotista quanto à

utilidade da profissão foi formulada, antes da IIª Guerra Mundial, pelo prestigioso

político socialista francês Edouard Herriot que asseverava existirem “apenas duas

espécies de diplomatas: os que lêem jornais e tanto sabem quanto nós; e os que não lêem

os jornais e nada sabem”... Pior ainda é o que, ao longo da carreira, ouvi de dois colegas,

um - que não cito - segundo o qual a carreira é uma maneira de viver longe do Brasil mas

às custas dele; e o outro, meu primeiro grande chefe, Carlos (Carlinhos) de Ouro Preto, o

qual, num momento de ressentimento e asco pela maneira como estava sendo tratado pelo

então Chanceler, afirmava a profissão não deixa de ser, igualmente, uma prostituição... A

verdade é que a burocracia brasileira perdeu todo controle, valendo a versão brasileira

específica da Lei de Parkinson: “o número de empregos na burocracia cresce para encher

o tempo disponível de ociosidade”...

Às vezes não posso refugar um secreto sentimento de embaraço quando faço o

confronto entre as presunções de grande potência e a fachada magnífica de nossas

Embaixadas, com a realidade de subdesenvolvimento do país – com a picaretagem e a

molecagem que constituem grande parte da forma existencial de nossa vida pública. Que

sentido faz a soberba do Itamaraty do ponto de vista das condições reinantes em

Guajaramirim ou Catolé do Rocha? Que tal comparar nossa embaixada em Roma, o

palazzo Doria-Pamphili, com a favela da Rocinha ou a Ceilândia? Que vale a sétima

economia do mundo quando nos damos conta que o analfabetismo no Maranhão ou no

Piauí ainda é de quase 50% da população adulta? Ou que 150.000 cidadãos foram

assassinados no Rio e em S. Paulo nos últimos dez anos. Mas sejamos otimistas: nosso

dia chegará...

Conclusões. A Opinião de Kissinger

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Entretanto, no terceiro volume de suas Memórias, “Anos de Renovação” (trad.

Topbooks, Rio,2000), Henry Kissinger reserva um capítulo especial à visita que fez à

América do Sul ao tempo em que foi Secretário de Estado dos Presidentes Nixon e Ford.

Ainda que não alimente particular admiração pelo personagem, que considero um tanto

pretensioso e responsável por certas políticas de seu país com as quais não consigo

concordar plenamente (muito embora num sentido diametralmente diverso das críticas

que lhe são dirigidas por intelectuais brasileiros, trogloditas da linha tupiniquim) – tratase,

inegavelmente, de um dos mais prestigiosos inspiradores e dirigentes da política

externa dos EEUU no período de ‘guerra fria” e da hegemonia americana da segunda

metade do século passado. Estive presente à famosa sessão na Universidade de Brasília,

em princípios da década dos 70, em que Kissinger ficou sitiado por estudantes cafajestes

e baderneiros, tendo que sair do edifício no camburrão da polícia. Naquela ocasião, após

sua palestra, dirige-lhe uma pergunta sobre sua posição durante a guerra do Vietnam que

ele me respondeu de maneira defeituosa. Assim mesmo, é interessante saber o que

Kissinger tem a dizer sobre nossa carreira diplomática. Cito trechos das páginas 763 em

diante da tradução mencionada:

O Brasil distingue-se de seus vizinhos de língua espanhola por lá falar-se português

e pela história mais pacífica e evolutiva. Suas dimensões são continentais, e o fato de já

ter sido sede do império português (enquanto o exército de Napoleão ocupava Portugal)

torna sua história parcialmente global. Portanto, o Brasil é mais autodeterminado do

que outros países sul-americanos – exceto, possivelmente, a Argentina, cujas pretensões

até recentemente encontravam menos eco entre vizinhos... O Brasil tem me nos

complexos quanto à preeminência dos EUA e nunca se viu sob o exercício direto do

poderio americano... (o país) possui recursos, população e escala para se tornar uma

das potências líderes do mundo. Malgrado o progresso para esse status venha sendo

espasmódico, o Brasil percebe-se a si próprio como um potência mundial – e não sem

razão. O funcionalismo público brasileiro, em especial o das relações exteriores, é de

classe internacional, sagaz, inteligente e persistente. Os diplomatas brasileiros buscam

seus objetivos com tal tenacidade, charme e tão animadoramente que seus

interlocutores correm o risco de esquecer, pela tranqüilidade com que são levados, que

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estão diante de consistente e vigorosa perseguição de interesses nacionais... No

verdadeiro estilo brasileiro, os diplomatas acompanharam o movimento (da nova

política americana do Presidente Carter), fazendo o possível para minimizar o estrago,

sem contudo esforçar-se para que fosse um sucesso. O colapso do Novo Diálogo permitiu

que o Brasil voltasse a pleitear, formalmente, um relacionamento especial com os EUA.

Esse fato dominou minhas tratativas com o ministro do exterior... e seu presidente,

Ernesto Geisel... Eles têm uma visão mundial. Além disso, a atenção do Brasil para os

assuntos internacionais – SALT, abertura para a China, détente, Oriente Médio – é um

interesse de homens sérios, não de diletantes, porque pensam que têm papel global a

desempenhar”.

Kissinger acrescenta, mais adiante: (O estilo do Chanceler brasileiro) “diferia

substancialmente dos colegas latino-americanos, que se sentiam obrigados a

acompanhar as concordâncias ocasionais com os EUA com desafiadores gestos para

demonstrar impermeabilidade às tentativas americanas de dominação... (Ele) não

experimentava essa pressão. Insistia em ser ouvido porque o Brasil era o único país da

América Latina que praticava uma política global. Não tinha a necessidade de ser um

desafiador, mas queria audiência para o que dizia”.

Cito as palavras de Kissinger porque diferem do que está implícito na opinião de

Galbraith e porque melhor correspondem a uma opinião geralmente positiva dos

estrangeiros, no meu entender até mesmo exagerada, em relação a nosso serviço

diplomático. E digo isso porque, com dois outros velhos amigos, colegas de concurso e



* Brasília, julho de 2002


Disponível em: <http://www.meirapenna.org/publicacoes/conf/2000/diplomacia/pompa_e_circustancia.pdf>. Acesso em: 25 jul. 2006.