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Patrimonialismo e a formação do Estado brasileiro: uma releitura do pensamento de Sergio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro e Oliveira Vianna

 

Daniel Barile da Silveira*

 

 

Resumo: A temática da formação do Estado Nacional Brasileiro sempre foi submetida ao longo de décadas a uma enorme variedade de teorias e sistemas de explicação que propiciaram elucidar esse controvertido momento do surgimento de nossas instituições políticas. Deste modo, o presente trabalho visa demonstrar como alguns pesquisadores, herdeiros da tradição sociológica legada pelo alemão Max Weber, lidaram com tal desafio, trazendo à lume algumas questões postas por Sergio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro e por Oliveira Vianna.

Palavras-chaves: Patrimonialismo – Formação do Estado Brasileiro – Max Weber – Sergio Buarque de Holanda – Raymundo Faoro – Oliveira Vianna

A singular formação do Estado Brasileiro, desde suas origens mais remotas, plasmada sob as raízes do Império Português, tem sido tratada por uma ampla parcela da teoria política nacional como resultado de um processo histórico no qual se verifica uma forte tendência em considerar nossa gestação como fruto de uma consolidada ordem patrimonial de cariz medievo. A temática do “patrimonialismo”, cuja matriz teórica remonta à exsurgência do uso dos conceitos do jurista e sociólogo alemão Max Weber e que via de regra tende a associar, como idéia principal, o trato da coisa pública pela autoridade como se privada fosse, não raro tem fomentado inúmeras discussões no cenário teórico nacional, abrindo um novo e fecundo campo de investigações ao cientista que se esmera pelo estudo do curioso nascimento de nossas instituições políticas.

Embora a temática do patrimonialismo assuma no debate teórico nacional essa tônica, evidenciando assim, em seu sentido mais amplo, a indistinção das esferas pública e privada, quando se analisam as correntes de pensamentos que versaram sobre tal enfoque verifica-se um desdobramento deste conceito, que freqüentemente escapam a sua vertente genética weberiana. Sob o prisma conceitual mais atento em relação às principais doutrinas políticas que enveredaram por esse esquema explicativo, faz-se indispensável investigar o fenômeno de forma a entender como os principais autores nacionais lidaram com esse conceito, elucidando suas peculiaridades mais significativas e demonstrando em que medida se afastaram de sua acepção originária.

Neste sentido, a recepção conceitual do “patrimonialismo brasileiro”, enquanto uma forma de prática social que não efetua a fundamental diferença entre a esfera pública e a privada na vida política, adquiriu em nosso contexto diversas interpretações, às quais remeteram a uma sorte de “rearranjo” de sua raiz terminológica oriunda das teses de Weber. Como representações mais originais nesta seara destacamos aqui os trabalhos de Sergio Buarque de Holanda, de Raymundo Faoro e de Oliveira Vianna, cujos esquemas explicativos merecem uma atual releitura, posto que representam a consolidação de marcos referenciais clássicos aos quais podemos nos debruçar no lídimo intuito de entendermos a realidade que nos forma e nos cinge.

Assim posto, antes de ingressarmos nestas explicações com maior devotamento, não é despiciendo proceder a um breve regresso ao arcabouço conceitual weberiano no afã de desvelar seus conceitos mais importantes, vislumbrando-se um recurso metodológico indeclinável ao entendimento do tema posto em debate, além de delinear todo o pano de fundo que dá vida à discussão.

1. Max Weber e o Patrimonialismo como uma Forma de Dominação Política

Na teoria política do autor turingiano Max Weber, o “patrimonialismo” enquanto doutrina é uma sorte de exercício legítimo de poder político, cujo referencial teórico está ancorado, em seu esquema conceitual, no tipo de “dominação tradicional”. A partir da análise do fundamento da legitimidade das ordens emanadas pela autoridade e sua respectiva obediência por parte dos súditos, Weber intenta descobrir como se procede o fenômeno da dominação no seio das relações sociais, perquirindo como essas formas de exercício de poder perduram socialmente. Deste modo, a obediência ao chefe político em sua visão geralmente está assegurada por um “sistema de dominação”, cuja taxonomia vem representada em seus escritos pelos “três tipos de dominação legítima”, quais sejam, a “dominação carismática”, a “dominação racional-legal” e a “dominação tradicional”[1]. Para se entender o fenômeno do patrimonialismo faz-se mister esclarecer em que campo conceitual tal acepção pode ser inserida, demonstrando o âmbito válido de sua aplicação no seio do arcabouço teórico weberiano, mais afeto à dominação tradicional, como veremos.

“Dominação” (Herrschaft) é definida por Weber, em seu conceito classicamente reproduzido, como “a probabilidade de encontrar obediência a uma norma de determinado conteúdo, entre determinadas pessoas indicáveis” (1999, v. 1, p. 33). Verifica-se, desde logo, que o conceito de dominação proposto por Weber está intimamente ligado à própria idéia que ele tem do poder. “Poder” (Match), como nos traz o autor, “significa toda a probabilidade de impor a própria vontade numa relação social, mesmo contra resistências, seja qual for o fundamento dessas legitimidades” (1999, v. 1, p. 33). Não se trata do fato de qualquer espécie de exercício de “poder” ou “influência” sobre o outro se configura como relações de dominação essencialmente legítimas, pois devemos considerar que uma dominação para ser legítima requer certa vontade de obedecer e interesse na obediência (WEBER, 1999, v. 1, p. 139). Este aspecto é denominado de “crença na legitimidade” (ou “princípio da legitimidade”), que se configura como elemento essencial pelo qual uma ordem da autoridade é possível de ser imposta, ou também, fenômeno capital que permite a um governante atuar instituindo regras de observância aceitas como válidas e livremente aceitas, de forma contínua.

A dominação tradicional ocorre “[...] quando sua legitimidade repousa na crença na santidade de ordens e poderes senhoriais tradicionais (‘existentes desde sempre’)” (WEBER, 1999, v. 1, p. 148). Trata-se da crença na legitimidade do poder de quem exerce a dominação pelo fato de que sua “investidura” decorre de longa tradição, de um costume inveterado, a partir de uma autoridade que sempre existiu. É o costume de determinada coletividade que indica quem exerce o poder e que também garante a legitimidade do exercício da dominação. Típico caso é o dos governantes chamados ao poder por ordem de progenitura (monarca, v.g.), pelo fato de serem os mais velhos – gerontocracia – (conselho de anciãos, p. ex.), por possuírem glebas de terra – patrimonialismo puro – (como províncias etc.). Os governados são súditos ou pares que se caracterizam por não obedecerem às ordens arbitrárias dos governantes ou normas jurídicas “postas”, porém detêm-se a observar somente as regras estabelecidas pelo costume vigente, por uma tradição ou por lealdade ao senhor decorrente estritamente de um status reconhecido pelo decorrer dos tempos. Bem verdade, o que pode ocorrer em prática, neste último caso, é a obediência sim às ordens privadas do soberano, mas que via de regra decorrem diretamente da legitimação de sua assunção ao poder por deferência a uma tradição arraigada. As idéias de justiça, de retribuição por um desagravo cometido, têm por base os ditames dos costumes. O aparato administrativo é constituído basicamente por vassalos (feudalismo), partidários leais, senhores tributários, parentes (dominação esta última derivada de laços consangüíneos). A aplicação do direito, em sua forma “pura”, não constitui propriamente a sua criação, porém atém-se à interpretação dos sagrados mandamentos ditados pelo tempo. Atualmente, o regime monárquico, em algumas poucas localidades ainda não constitucionalizadas, ou o sistema de castas na Índia, embora não perfeitamente adaptáveis ao “tipo puro” estabelecido por Weber, são demonstrações clássicas e mais próximas de tal tipo de dominação.

Existem inúmeras sortes de dominação tradicional, e não raro estão misturadas ou de distinção fluidas, dentre as quais as que mais se destacam são a “gerontocracia” (governo em que o poder cabe aos mais velhos), o “patriarcalismo” (casos em que o poder é determinado pelo pertencimento a uma determinada família, normalmente sendo a dominação exercida por um indivíduo chefe da comunidade doméstica – pater familias ou despótès –,“determinado segundo regras de sucessão” (1999, v. 1, 151)), o “sultanismo” (forma de dominação no qual está calcada no “arbítrio livre” do governante, munido de um aparato administrativo próprio para fazer valer suas ordens), o “feudalismo” (forma de dominação baseada em um contrato de status, em termos de vassalo-suserano, regidos pelo sentimento de fidelidade pessoal entre ambos – idéia de “honra”), e, finalmente, o “patrimonialismo” (dominação exercida com base em um direito pessoal, embora decorrente de laços tradicionais, obedecendo-se ao chefe por uma sujeição instável e íntima derivada do direito consuetudinário – “porque assim sempre ocorreu”).

Deste modo, ipso facto, o Patrimonialismo é uma forma de exercício da dominação por uma autoridade, a qual está legitimada pela roupagem da tradição, cujas características principais repousam no poder individual do governante que, amparado por seu aparato administrativo recrutado com base em critérios unicamente pessoais, exerce o poder político sob um determinado território[2]. Trata-se, portanto, de uma sorte de dominação tradicional, ordenada pelo longo costume atávico. Seu arquétipo constitutivo cronologicamente geralmente possui raízes na ordem familiar, de cariz patriarcal, posto que com o crescimento da esfera de poder do governante sobre seus súditos, abarcando uma ampla parcela de vastas regiões e grandes conjuntos populacionais, a administração pessoal necessitou racionalizar-se, desenvolvendo um aparato administrativo capaz de cobrir em grande parte essa nova dimensão territorial e demográfica. Destarte, embora em termos quantitativos houvesse uma mudança na dimensão da abrangência da autoridade, a forma típica de exercício do mando continuou repousando em caracteres vinculados ao poder pessoal do príncipe, delegando este senhor as funções administrativas a servos pessoais[3], dependentes diretos de sua mantença, todo esse complexo mecanismo amparado pela via da obediência tradicional. O reino do governante era um refinado oikos de gigantescas proporções.

Neste sentido, ao cargo patrimonial é desconhecida a divisão entre a “esfera privada” e a “oficial”. A administração política é tratada pelo senhor como assunto puramente pessoal, bem como o patrimônio adquirido pelo tesouro senhorial em função de emolumentos e tributos não se diferencia dos bens privados do senhor. Por tal razão, o príncipe lida com os assuntos da corte, públicos segundo a acepção moderna, de forma eminentemente privada, posto que o patrimônio pessoal do governante e a coisa pública são amalgamadas em uma esfera apenas, comandadas e livremente dispostas por ordem da autoridade política. Os interesses pessoais da autoridade não distinguiam a sua dimensão íntima da administrativa, não havendo separação entre a seara do indivíduo em relação ao mister público que ocupava. Sua forma de administração obedecia unicamente o livre-arbítrio, baseada em “considerações pessoais” como salienta Weber, desde que a santidade da tradição, vigente desde sempre, não lhe imponha limites muito rígidos e diretos (WEBER, 1999, v. 2, p. 253 et seq.). Conforme nos demonstra Reinhard Bendix,

No patrimonialismo, o governante trata toda a administração política como seu assunto pessoal, ao mesmo modo como explora a posse do poder político como um predicado útil de sua propriedade privada. Ele confere poderes a seus funcionários, caso a caso, selecionando-os e atribuindo-lhes tarefas específicas com base na confiança pessoal que neles deposita e sem estabelecer nenhuma divisão de trabalho entre eles. [...] Os funcionários, por sua vez tratam o trabalho administrativo, que executam para o governante como um serviço pessoal, baseado em seu dever de obediência e respeito. [...] Em suas relações com a população, eles podem agir de maneira tão arbitrária quanto aquela adotada pelo governante em relação a eles, contanto que não violem a tradição e o interesse do mesmo na manutenção da obediência e da capacidade produtiva de seus súditos. Em outras palavras, a administração patrimonial consiste em administrar e proferir sentenças caso por caso, combinado o exercício discricionário da autoridade pessoal com a consideração devida pela tradição sagrada ou por certos direitos individuais estabelecidos” (1986, p. 270-1).

Do patrimonialismo trazido pelos ensinamentos de Weber não se torna despiciendo ainda acrescentar que é uma forma de organização política assentada na “racionalidade material” das ordens estatuídas, ou seja, os comandos proferidos pela autoridade são de características eminentemente voltadas a valores, opiniões, posições pessoais do senhor, e não com base em critérios racional-finalísticos, fixados objetivamente em normas impessoais e abstratas. É uma ordem entendida em seu caráter vertical, “de cima para baixo”, onde o topo está o chefe patrimonial e na base seus súditos. Por via de conseqüência, o sustentáculo social plana sobre a ordem política, e não repousa na sociedade civil (entendido aqui este conceito conforme a respeitada definição hegeliana). Tanto se evidencia esse fato que a própria Economia, aquelas atividades materiais baseada em um sistema orientado para uma situação de mercado, dependem incondicionalmente do Estado para se desenvolver, fenômeno identificado por Weber como “capitalismo político”, “capitalismo de Estado” ou então “capitalismo politicamente orientado” (cujos exemplos mais representativos foram as grandes descobertas dos Estados Ibéricos em suas expansões ultramarinas nos séc. XV e XVI). Da organização da sociedade, não se denota um fluxo dinâmico na camada de estratificação social, sendo uma sorte de estruturação ditada basicamente pela esfera política. Não há noção de indivíduo, entendida no sentido de ser este o ente centro da política, núcleo de poder e de decisão, receptáculo de direitos e deveres. Ademais, não se verifica a noção de “desenvolvimento” em seu sentido próprio de “evolução”, de um movimento de superação do passado e de expansão ad infinitum para o futuro, porém denota-se um processo histórico repetitivo, recorrente. Não há a visão de “progresso”. Essa sociedade estática – “orgânica” na acepção da teoria política – é conduzida por uma sucessão temporal, “com retorno de formas e de tempos que não passam de um recondicionamento de outro tempo” (FAORO, 1993, p. 18). Trata-se de um “eterno reviver”, características todas estas descritas com muita propriedade por diversos autores de tradição weberiana, cujas premissas teóricas irão moldar esse tipo específico de dominação vislumbrada em muitas organizações políticas, especialmente do período medievo e do início da modernidade.

2. O Patrimonialismo na Ordem Política Nacional

O patrimonialismo, enquanto doutrina política herdada dos excertos weberianos, obteve fecunda receptividade na história das doutrinas políticas brasileiras, mormente no que concerne ao estudo da formação de nossas instituições. Tal corrente específica do pensamento nacional tende, precipuamente, ao uso dos conceitos trazidos pela Sociologia Política de Weber para explicar os traços mais marcantes das bases de nosso modelo político, buscando elucidar em nossas formações cultural e institucional a génesis do patrimonialismo estatal e de suas relações com o povo brasileiro[4].

a) Sergio Buarque de Holanda e o “homem cordial”

A primeira incursão mais notória nesta seara é atribuída, conforme salienta Vamireh Chacon (1988, p. 91), a Sergio Buarque de Holanda, que já em 1936 denotava em seu livro mais bem difundido, Raízes do Brasil, a característica fundamental do “homem cordial” brasileiro que, em sua débil vida pública, era tenazmente propenso a não considerar a fundamental diferença entre seu interesse privado e a dimensão da esfera coletiva que o cingia. Este autor paulistano demonstra em sua obra, mediante o uso de um método intimamente voltado à psicologia e à história social, de que maneira as características por nós herdadas durante o processo colonizador se plasmaram em nossa cultura, desenvolvendo em solo nacional biótipos e arquétipos institucionais tipicamente patriarcais, de uma prática de subordinação à autoridade e de manifesto descaso com os assuntos relativos à esfera pública. Já dizia Sergio Buarque de Holanda sobre o típico membro da elite detentora do poder político no País:

Não era fácil aos detentores das posições públicas de responsabilidade, formados por tal ambiente, compreenderem a distinção fundamental entre os domínios do privado e do público. Assim, eles se caracterizam justamente pelo que separa o funcionário “patrimonial” do puro burocrata, conforme a definição de Max Weber. Para o funcionário “patrimonial”, a própria gestão política apresenta-se como assunto de seu interesse particular; as funções, os empregos e os benefícios que deles aufere, relacionam-se a direitos pessoais do funcionário e não a interesses objetivos, como sucede no verdadeiro Estado burocrático, em que prevalece a especialização das funções e o esforço para se assegurarem garantias jurídicas aos cidadãos. A escolha dos homens que irão exercer as funções públicas faz-se de acordo com a confiança pessoal que mereçam os candidatos, e muito menos de acordo com as capacidades próprias. Falta a tudo a ordenação impessoal que caracteriza a vida no Estado burocrático. [...] (1969, p. 105-6).

Ocorre que na visão de Buarque de Holanda, remontando aos clássicos gregos, a relação travada entre Estado e Sociedade repousa justamente, para que aquele possa existir, na superação das relações privadas, almejando-se a formação de um espaço que é marcado justamente pelo sobrepujamento desses vínculos particularistas e pela ascensão de um antro de predominância dos aspectos coletivos, públicos por excelência. Assim dizia:

O Estado não é uma ampliação do círculo familiar e, ainda menos, uma integração de certos agrupamentos, de certas vontades particularistas, de que a família é o melhor exemplo. Não existe, entre o círculo familiar e o Estado, uma gradação, mas antes uma descontinuidade e até uma oposição. [...] A verdade, bem outra, é que pertencem a ordens diferentes em essência. Só pela transgressão da ordem doméstica e familiar é que nasce o Estado e que o simples indivíduo se faz cidadão, contribuinte, eleitor, elegível, recrutável e responsável, ante as leis da Cidade. Há nesse fato um triunfo do geral sobre o particular, do intelectual sobre o material, do abstrato sobre o corpóreo e não uma depuração sucessiva, uma espiritualização de formas mais naturais e rudimentares, uma procissão das hipóstases, para falar como na filosofia alexandrina. A ordem familiar, em sua forma pura, é abolida por uma transcendência" (1969, p. 101).

Esse movimento social de passagem da predominância de uma esfera eminentemente privatizada, particularista, familiar, para a formação do Estado foi um processo pelo qual a maioria dos países desenvolvidos modernos vivenciou, inclusive características que revelaram a transição de uma ordem feudal para uma ordem capitalista na Europa. Entretanto, esse mecanismo “evolutório”, em contrapartida, não foi vivenciado pelo povo brasileiro em sua plenitude, o qual ficou ainda intimamente ligado aos laços tradicionais, de predominância das relações familiares, transpondo estes valores inadvertidamente para a esfera pública.

O ponto crucial ao qual Buarque de Holanda enfatizava era essa peculiaridade deste perfil de homem público nacional que, nascido e criado sob um invólucro cultural marcado pela forte presença dos valores de um núcleo familiar de caráter patriarcal, trazia para suas atividades na seara pública características próprias do meio em que se fez indivíduo. Deste modo, este sólito homem carregava para o mister público os mesmo traços paternalistas delimitadores de sua visão de mundo, de modo conducente a confundir na prática aqueles assuntos aptos ao âmbito pessoal das atividades inerentes à res publica[5]. Mais adiante, segue em sua profícua argumentação:

No Brasil, pode dizer-se que só excepcionalmente tivemos um sistema administrativo e um corpo de funcionários puramente dedicados a interesses objetivos e fundados nesses interesses. Ao contrário, é possível acompanhar, ao longo de nossa história, o predomínio constante das vontades particulares que encontram seu ambiente próprio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal. Dentre esses círculos, foi sem dúvida o da família aquele que se exprimiu com mais força e desenvoltura em nossa sociedade. E um dos defeitos decisivos da supremacia incontestável, absorvente, do núcleo familiar – a esfera, por excelência dos chamados “contatos primários”, dos laços de sangue e de coração – está em que as relações que se criam na vida doméstica sempre forneceram o modelo obrigatório de qualquer composição social entre nós. Isso ocorre mesmo onde as instituições democráticas, fundadas em princípios neutros e abstratos, pretendam assentar a sociedade em normas antiparticularistas (1969, p. 106).

Antonio Candido, já no prefácio de “Raízes do Brasil”, assevera com extrema propriedade que o conceito de “patrimonialismo”, assim como o de “burocracia”, foi de forma pioneira utilizado por Sergio Buarque de Holanda para explicar a sua concepção de que o típico indivíduo brasileiro – o denominado “homem cordial” – caracterizava-se profundamente por seu caráter de afabilidade, fundamento remoto de seu ambiente familiar. Essa característica, segundo Candido, importaria na extrema dificuldade do padrão médio de indivíduo nacional em tratar seus pares de forma impessoal e formal, pois os laços de pessoalidade e de intimidade – próprios do ambiente familiar – transcenderiam a esfera privada e eclodiriam na pública (1969, p. xviii). A partir dessa constatação sociologicamente vislumbrada, portanto, seria inerente à condição do brasileiro típico essa atávica propensão em tratar a política e os assuntos do Estado em conformidade com a noção que o indivíduo adquiriu de seu ambiente familiar, ou seja, de modo pessoal, avesso a formalismos. Tudo isso obteve como contrapartida o obstáculo em se erigir um Estado burocrático por excelência, dificultando a inserção deste “homem cordial” em organizações sociais que estejam fora de sua visão patriarcal do mundo.

b) Raymundo Faoro e o “estamento burocrático”

Sem maiores dúvidas, a elaboração mais refinada da teoria patrimonialista ganhou corpo e maior estilo no pensamento político de Raymundo Faoro, quando da publicação em 1958 de sua obra paradigmática “Os Donos do Poder”, considerada um dos maiores marcos teóricos da conciliação entre dominação tradicional-patrimonial weberiana e a formação de nossa identidade política. Não obstante o autor declare, já no prefácio à segunda edição, que o livro não segue, “apesar de próximo parentesco”, a linha de Weber, mormente pelo fato das sugestões deste autor alemão tomarem outros rumos, “com um novo conteúdo e diverso colorido” (1977, v. 1, p. XI), é evidente a base conceitual weberiana sobre a qual se assenta Faoro na construção de seu raciocínio.

Segundo Faoro, a explicação para as mazelas do Estado e da Nação brasileiras pode ser mais manifestamente encontrada ao nos debruçarmos sobre o caráter específico de nossa formação histórica, em especial sobre nosso passado colonial. Em seus estudos, Faoro analisa a estrutura de poder patrimonialista adquirida do Estado Português por nossos antepassados, tendo sido este inteiramente importado em sua estrutura administrativa para a colônia na época pós-descobrimento, fato que depois foi reforçado pela transmigração da Coroa Lusitana no século XIX. Em sua acepção, tal modelo institucional foi transformado historicamente em padrão a partir do qual se estruturaram a Independência, o Império e a República do Brasil. O patrimonialismo seria, para Faoro, a característica mais marcante do desenvolvimento do Estado brasileiro através dos tempos.

Ao analisar as raízes históricas do Estado Português, Faoro descobre que a fundamental peculiaridade de sua forma de organização estava calcada no fato de que o bem público – as terras e o tesouro da Corte Real – não estava dissociado do patrimônio que constituiria a esfera de bens íntima do governante. Tudo constituía um imenso conjunto de possessões sob a égide de disponibilidade fática e jurídica de deliberação do príncipe. Assim dizia:

A coroa conseguiu formar, desde os primeiros golpes da reconquista, imenso patrimônio rural (bens “requengos”, “regalengos”, “regoengos”, “regeengos”), cuja propriedade se confundia com o domínio da casa real, aplicado o produto nas necessidades coletivas ou pessoais, sob as circunstâncias que distinguiam mal o bem público do bem particular, privativo do príncipe [...] A propriedade do rei – suas terras e seus tesouros – se confundem nos seus aspectos público e particular. Rendas e despesas se aplicam, sem discriminação normativa prévia, nos gastos da família ou em bens e serviços de utilidade geral (1977, v. 1, p. 4 e 8).

Como forma de argumentação extremamente bem articulada, Faoro, com base em Alexandre Herculano e em uma vasta gama de informações documentais e históricas, demonstra em seu livro que, tanto em Portugal quanto no Brasil, não houve o desenvolvimento de uma organização social compatível com o feudalismo, porém, ao revés, estas formações sociais foram marcadas pela forte presença do Estado na vida dos indivíduos, demonstrando na tradição luso-brasileira marcas de uma evidente estrutura de cariz patrimonial[6].

Em sua investigação, o advogado e historiador gaúcho defende que tal modelo institucional tinha como forma de organização política um patrimonialismo gerido pela vontade administrativa do príncipe, o qual estava munido de todo um aparato de funcionários e súditos leais que se apropriavam do Estado e que se utilizavam deste em benefício próprio, em caráter particularista. Essa elite que administrava os assuntos reais constituía, de forte inspiração weberiana, o “estamento burocrático” de que Faoro se vale para explicar como um certo círculo de notáveis conduzia os assuntos de natureza pública em uma ordem patrimonial nestas nações[7].

O estamento, que Faoro remonta a Weber para descrever seus aspectos mais importantes, é uma forma de ordem social vigente sob a qual se funda a estratificação e que dissemina relações de poder pela tessitura social, reclamando “a imposição de uma vontade sobre a conduta alheia” (FAORO, 1977, v. 1, p. 46). Enquanto que nas classes sociais se tem uma manifesta criação segundo ao rearranjo de grupos que estão dispostos conforme interesses econômicos determinados por uma “situação de mercado” (WEBER, 1999, vol. 2, p. 175-86), os estamentos se fundam na divisão da sociedade conforme a posição social que ocupam, ou seja, a um status específico. Trata-se de comunidades “fechadas”, de maneira que fazem de tudo para impedir que outros indivíduos adentrem tal grupo e compartilhem do poder ali centralizado (ao contrário das classes, que são “comunidades abertas”, desde que haja um fator econômico preponderante). Calcam-se na desigualdade social, reclamando para si privilégios materiais e espirituais que irão assegurar sua posição e sua base de poder no seio da sociedade. Neste sentido, o estamento é uma camada de indivíduos que se organiza e que é definido pelas suas relações com o Estado (CAMPANTE, 2003, p. 154). Conforme Faoro, “os estamentos governam, as classes negociam. Os estamentos são órgãos do Estado, as classes são categorias sociais (econômicas)” (1977, v. 1, p. 47). Nesta acepção, estes estamentos organizados se apropriam do Estado, de seus cargos e funções públicas, impondo-se um regime de uso dessas vantagens advindas do status ocupado para a utilização da máquina estatal em proveito próprio, para a satisfação de interesses particulares. Eles são os verdadeiros “donos do poder”. Dessas considerações remanescem as conseqüências, conforme nos demonstra Rubens Goyatá Campante:

O instrumento de poder do estamento é o controle patrimonialista do Estado, traduzido em um Estado centralizador e administrado em prol da camada político-social que lhe infunde vida. Imbuído de uma racionalidade pré-moderna, o patrimonialismo é intrisecamente personalista, tendendo a desprezar a distinção entre a esfera púbica e privada. Em uma sociedade patrimonialista, em que o particularismo e o poder pessoal reinam, o favoritismo é o meio por excelência de ascensão social, e o sistema jurídico, lato sensu, englobando o direito expresso e o direito aplicado, costuma veicular o poder particular e o privilégio, em detrimento da universalidade e da igualdade formal-legal. O distanciamento do Estado dos interesses da nação reflete o distanciamento do estamento dos interesses do restante da sociedade (2003, p. 155).

No caso brasileiro, o patrimonialismo que Faoro aponta como fundamento edificativo de nossas origens institucionais é apresentado como forte papel centralizador[8]. Desde as concessões de cargos até a condução dos assuntos econômicos (“capitalismo politicamente orientado”), tudo era empresa de incumbência do Estado, que estava presente em praticamente todas as esferas da vida social. Faoro argumentava que, até mesmo antes da formação de algumas vilas coloniais, antes mesmo da afirmação de um patronato rural dominante, de coronéis chefes de engenho e de líderes regionais, já havia no interior do Brasil todo um sistema cartorial apto a registrar, controlar e fiscalizar as produções (1977, v. 1, p. 221 et seq.). Não havia autonomia dos latifundiários para o exercício de suas atividades sem que os donatários estivessem sob a égide da Coroa. Em seus dizeres,

Os olhos vigilantes, desconfiados, cuidavam para que o mundo americano não esquecesse o cordão umbilical que lhe transmitia a força de trabalho e lhe absorvia a riqueza. O rei estava atento a seu negócio (FAORO, 1977, v. 1, p. 133).

Destarte, o empreendimento de Faoro em destacar a importância do caráter centralizador do patrimonialismo brasileiro reside na diminuição da influência da sociedade civil como força refreadora dos mandos unívocos do Estado nacional. A figura do povo brasileiro é retratada constantemente pelo autor como dotada de uma veemente inatividade na ordem política, uma sociedade “abúlica” (Rubens Campante), que na esfera pública não consegue se organizar e se contrapor aos desígnios autoritários da chefia política. Esta ausência do indivíduo brasileiro na condução da vida política no Brasil revela o anacronismo da identidade do sujeito político nacional, sempre dependente da atuação estatal em sua vida privada e extremamente leniente com a reivindicação da probidade e eficiência no trato com as matérias de ordem coletiva.

No ávido pensamento deste jurista, o afloramento de uma identidade política nacional possui estreita ligação com a forma de organização social com a qual um grupo de indivíduos assume historicamente. Nesta acepção, a exsurgência de liberdades públicas estão intimamente conexas ao cultivo de liberdades econômicas, sendo que apenas em uma ordem social organizada em classes é que há a possibilidade da assunção de tal quadro político. Apenas neste sistema, em que subsiste o domínio da economia livre de mercados, é que se pode afirmar da consolidação de um verdadeiro Estado de Direito liberal-democrático, em que, de fato, há a nítida separação das esferas público e privada. Caso contrário, em uma estrutura social em que prevalece a posição de estamentos que cooptam os interesses no ápice de um mecanismo estrutural de Estado, não há uma vida civil livre, não poderá prevalecer a justiça social e a desigualdade é regra de sobrevivência dessa elite, forma pela qual a sociedade se assenta e se reproduz. Em tal contexto, democracia e liberalismo político são meramente simulacros de um sistema político vigente. Esfera pública e esfera privada são amalgamadas em um único poder central, emanado ou do governante, ou da camada de indivíduos detentores do poder político (estamento). Assim asseverava Faoro sobre o liberalismo brasileiro encarado nesta conjuntura submetida a uma ordem patrimonial:

O liberalismo que assim nasce tem alguma coisa de liberal e pouco de democrático. Não se estranhe esse divórcio que, até Tocqueville, foi um dos grandes dogmas do credo liberal. O problema do liberalismo era compatibilizar-se com os estamentos, que assumem papel semi-independente. Forma-se uma modalidade especial de liberalismo, onde a base não está no povo, no cidadão, mas nos corpos intermediários.[...] O povo, nessa perspectiva, é um corpo inorgânico a ser protegido ou, se entregue a si mesmo, a ser temido. [...] As deficiências do liberalismo político estão na base das fraquezas do liberalismo econômico. Embora, entre nós, um não tenha saído do outro, com mais desencontros do que encontros, na base da racionalidade do liberalismo econômico estão os elementos previsíveis e calculáveis do Estado de direito. Esta irracionalidade formal é o grande obstáculo de um e de outro para vencer o patrimonialismo (1993. 26-7, grifo do autor).

c) Oliveira Vianna e o “clã político”

Seguindo nossa exposição, a terceira vertente teórica que versa sobre a curiosa temática da difícil relação entre público e privado no Brasil é de Oliveira Vianna. Em sua célebre obra, Instituições Políticas Brasileiras, Vianna busca investigar o direito público nacional, desvendando suas mais tênues repercussões na vida política pátria. Ocorre que, apesar de ser um jurista de profissão, Oliveira Vianna intenta empregar em sua análise uma metodologia que privilegia o comportamento social, os aspectos culturais que revestem os problemas de nosso direito público, ao invés de seguir a tradicional investigação lógico-sistemática das leis pela ciência do direito clássica. Em seu entender, apenas investigando-se o papel da cultura na formação de uma sociedade é que é passível de se entender seus problemas intrínsecos, especialmente os de natureza política e que, conseqüentemente, relacionam-se diretamente com o funcionamento do Estado. A partir de tal entendimento, o pensador formula, já nas páginas iniciais de seu livro, aquelas quais seriam suas premissas básicas que sustentariam o cerne da obra:

1) Na vida política de nosso povo, há um direito público elaborado pelas elites e que se acha concretizado na Constituição. 2) Este direito público, elaborado pelas elites, está em divergência com o direito público elaborado pelo povo-massa e, no conflito aberto por esta divergência, é o direito do povo-massa que tem prevalecido, praticamente. 3) Toda a dramaticidade de nossa história política está no esforço improfícuo das elites para obrigar o povo-massa a praticar este direito por elas elaborado, mas que o povo-massa desconhece e a que se recusa a obedecer (VIANNA, 1982, p. 298-9).

Um dos pontos que Vianna pretende atacar em seu arcabouço teórico se assenta no fato de que o direito imposto pelas elites nada tem a ver com aquelas noções de regras e do justo que são praticadas nas relações sociais do “povo-massa”. Um dos problemas das nações latino-americanas – e no Brasil se vê especial enfoque – é o forte impacto que as doutrinas políticas e sistemas de governo do exterior tem assumido em nosso direito. Conforme Vianna, é muito forte a intenção dos latinos em importar essas teorias e modelos de organização de poder que nada têm a ver com nossas tradições culturais, sendo que esse direito e essa estrutura de dominação imposta, sempre por uma pequena elite, não correspondem nem de longe àquilo que se pratica no seio dos usos sociais. Entre a vontade dessa elite em aplicar essas convenções extraterritoriais e o exercício de um costume local existe um fosso enorme, para o qual converge grande parte de nossas mazelas políticas e de nossas condutas sociais desordenadas.

Portanto, neste contexto, Vianna vai estudar como se deu essa peculiar formação política e social brasileira, que em nada se assemelhou às matizes européias. Ao se debruçar sobre o nosso processo colonizador, o pensador fluminense verifica que a fundação da população brasileira basicamente foi gerida pela Metrópole Portuguesa, uma vontade de Estado, e não a partir da livre agregação do povo. Sua criação se devia à reunião de grupos de “moradores dispersos”, sendo que estes eram forçosamente agrupados em vilas, criando microrregiões populacionais sem um vínculo mais próximo que os unisse, salvo o pesado mando do governador. Assim, a população brasileira ia sendo engendrada a partir de um contingente extremamente disperso e desarticulado, sendo que tais características tinham um ávido apelo à descentralização desses povos para o campo. Vivendo em vilas pouco habitadas, criadas artificialmente por um poder central e submetidas ao forte jugo dos arbitrários desígnios do “capitão-mor regente”, a população brasileira tendeu a se voltar submissivamente para comunidades restritas, quase sempre circunscritas ao ambiente familiar, fatores que foram propícios para que estas células humanas se constituíssem como povos extremamente individualistas, isolados da vida coletiva pujante – como diferentemente ocorreu em algumas cidades européias, ou de colonização espanhola, em que prevaleceu a propriedade comunal propícia à coesão societária, por exemplo (VIANNA, 1982, p. 377-90). Assim o autor retratava tal traço em tons categóricos:

[...] o brasileiro é fundamentalmente individualista; mais mesmo, muito mais do que outros povos latino-americanos. Estes tiveram, no início, uma certa educação comunitária de trabalho e de economia. [...] Nós não. No Brasil, só o indivíduo vale e, o que é pior, vale sem precisar da sociedade – da comunidade. Estude-se a história da nossa formação social e econômica e ver-se-á como tudo concorre para dispersar o homem, isolar o homem, desenvolver, no homem, o indivíduo. O homem socializado, o homem solidarista, o homem dependente de grupo ou colaborando com o grupo não teve, aqui, clima para surgir, nem temperatura para desenvolver-se: - “De onde nasce que nenhum homem nesta terra é repúblico, nem vela ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular [...]” (1982, p. 392, grifos do autor).

Veja-se, portanto, como em Vianna a questão do patrimonialismo toma rumos próprios que revelam e acentuam essa presença marcante do individualismo em nossa sociedade, cujas conseqüências irão repercutir na dificuldade de diferenciação do público e do privado quando a ação do indivíduo é politicamente orientada. Nesta acepção, os únicos impulsos que gerenciam o espírito desse “homem disperso” repousam em sua vontade individual, em sua predominante visão privatista do mundo. Esse universo restrito e extremamente arraigado em laços tradicionais constituía, na acepção de Oliveira Vianna, um verdadeiro “clã” (o “clã feudal” para o povo-massa, dominado, e, de um outro lado, o “clã parental” composto pela elite aristocrática senhorial, dominante) que, projetado para sua dimensão pública, adotava caracteres de verdadeiros “clãs políticos”, pequenos grupos de indivíduos que diretamente influíam nas decisões práticas da vida política local segundo critérios baseados em sua conveniência particular. Em uma análise histórica, a partir do momento em que algumas cadeiras institucionais eram obtidas a partir do voto (que de início era censitário, é bem verdade, expandido-se progressivamente, até o “sufrágio universal” da Constituição de 1824), esses clãs políticos agora se transformam em “clãs eleitorais”, no qual a busca pelo poder de Estado os compele a agregação (“solidarização”) para possibilitarem cooptar os votos necessários ao jogo político. Na visão de Vianna, o “clã eleitoral” foi a gênese de nossos partidos políticos, os quais inicialmente se dividiram em “Liberais” e “Conservadores” e depois se reproduziram em escala nacional para o alcance de amplas parcelas demográfica e territorial. Nesta visão, o autor nos esclarece:

O agrupamento local que conseguia ter ao seu lado o Governador dominava o município todo, passando a dispor de todos os meios de aliciamento, que o Centro – pelo seu preposto, o Governador – dispunha: polícia civil; polícia militar; guarda nacional; títulos de nobreza; nomeação para postos de administração locais (delegados, subdelegados, comandantes, inspetores, fiscais, etc.). [...] Parece que o processo de agremiação e sincretismo dos nossos clãs se iniciou sobre este critério nativista. Eram expressões puramente bairristas e pessoais, não havendo nelas nenhum conteúdo de interesse público ou ideológico. [...] Os partidos locais, como se vê, surgiam por meros motivos pessoais: – eram sempre as ambições, as vaidades e as preocupações de prestígio de família que decidiam da formação destas agremiações. Todos eles tinham um objetivo único: – procurar para si o apoio do Governador. Este era o centro de força na Província e, conseqüentemente, nas localidades... (VIANNA, 1982, p.504 a 512, grifos do autor).

Como se pode bem notar, todo o caminho traçado em Instituições Políticas Brasileiras conduz o leitor ao inevitável entendimento da dificuldade do brasileiro em atuar na esfera pública, sendo que, durante toda sua história, foi eficazmente condicionado a pensar conforme sua visão de mundo privatizada e individualista, fruto de uma longa tradição de forte presença do núcleo familiar na nossa vida pública. Nessa perspectiva, o “clã político” ou “clã eleitoral” são as categorias de agregação social que mais revelam esse comportamento bairrista, desprovido de qualquer sentimento mais refinado de solidariedade ou de preservação de valores coletivos que apenas se recrudescem na esfera pública. Ao atuar em um contexto público, em que se defrontam interesses de toda uma comunidade no seu mais amplo aspecto, esses clãs naturalmente se voltavam para a preservação de suas vantagens próprias, evidenciando, destarte, o trato da coisa pública submetida ao regime de desígnios privado desses microgrupos. Assim nos esclarece o comentador Ricardo Silva,

Para Oliveira Vianna, a realidade não percebida por todos os “idealistas utópicos” que povoaram a história do Brasil independente é que o “espírito de clã” contaminou os partidos políticos em sua origem. A “solidariedade clânica” foi o verdadeiro fator organizativo de nossos partidos políticos, no momento de criação dos partidos de base nacional por exigência da Constituição de 1824. Simultaneamente à criação dos partidos liberal e conservador, instituiu-se o sufrágio universal, e com isso reuniram-se as condições para a metamorfose do clã feudal em clã eleitoral, nos primórdios do Brasil independente (2002, p. 8).

E a solução dada por Oliveira Vianna para essa incapacidade dos grupos políticos de se articularem e de intentarem uma saída para as mazelas nacionais pela via da preservação do público sobre o privado é apenas encontrada quando da existência de um Estado forte, centralizador, autoritário. Apenas um mecanismo de centralização de decisões políticas submetidas ao forte império da estrita obediência à autoridade seria capaz de reunir esses grupos sociais dispersos e fazer prevalecer o primado do público sobre o privado no cenário nacional[9]. Justificar-se-ia tal modelo autoritário pois em grande medida é compatível com história política brasileira – de contínua valorização e submissão ao poder central do Estado –, sendo este o veículo encontrado para a transformação de uma realidade institucional marcada pela forte presença do descaso com a coisa pública, pouca coesão social e uma prática parental de exercício de governo. Esta forma de Estado, que seria transitória – arquétipo teórico denominado por Wanderley Guilherme dos Santos de “autoritarismo instrumental” – seria o único caminho a ser traçado para que no Brasil fossem implantados os postulados do liberalismo político, defendido por Vianna em seus escritos. Antonio Paim, citando Wanderley G. dos Santos, esclarece essa forma de pensamento assumida por Oliveira Vianna:

O sistema republicano [...] não alterou o padrão básico das relações sociais e econômicas. A sociedade brasileira ainda era basicamente oligárquica, familística e autoritária. A intervenção do Estado não representava, portanto, uma ameaça para os "cidadãos", mas sim sua única esperança, se é que havia alguma, de proteção contra os oligarcas. Qualquer medida de descentralização, enquanto a sociedade continuasse a ser o que era, deixaria o poder cair nas mãos dos oligarcas, e a autoridade seria exercida mais para proteger os interesses privados dos oligarcas, do que para promover o bem público. Em conseqüência, o liberalismo político conduziria, na realidade, à oligarquização do sistema e à utilização dos recursos públicos para propósitos privados. O liberalismo político seria impossível na ausência de uma sociedade liberal e a edificação de uma sociedade liberal requer um Estado suficientemente forte para romper os elos da sociedade familística. O autoritarismo seria assim instrumental para criar as condições sociais que tornariam o liberalismo político viável. (1982, p. 27-8).

3. Considerações finais

A temática do patrimonialismo, extraída de fundamento originário do pensamento político de Max Weber, no Brasil assumiu inúmeras formas e não se restringiu ao pensamento de Sergio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro e Oliveira Vianna. Depois desses autores, hoje considerados clássicos tanto pela importância no estudo original dos problemas políticos brasileiros quanto pela consolidação de correntes de pensamento no debate teórico nacional, diversos outros se debruçaram sobre a análise da formação do Estado Brasileiro, invocando ou combatendo, sobretudo, a forte presença de um patrimonialismo na gestão da coisa pública em nosso país.

Marya Silvia de Carvalho Franco, com seu livro “Homens Livres na Ordem Escravocrata”; José Murilo de Carvalho, em sua tese de doutoramento “A Construção da Ordem: A Elite Política Imperial”; Fernando Uricochea, em sua obra intitulada “O Minotauro Imperial”; Antonio Paim com “A Querela do Estatismo”; Simon Schwartzman em “As Bases do Autoritarismo Brasileiro”; o renomado sociólogo Florestan Fernandes, com seu “A Revolução Burguesa no Brasil”; Jessé de Souza em “A Modernização Seletiva: Uma Reinterpretação do Dilema Brasileiro”; todos estes célebres pensadores dentre vários outros, quer em grande medida, quer de forma tangencial, estabeleceram em seus trabalhos um diálogo com a tríade Buarque de Holanda, Faoro e Vianna, seja desenvolvendo as idéias por estes autores inicialmente abordadas, seja para refutá-los em grande medida[10].

A tradição do patrimonialismo brasileiro, que, a partir do estudo da natureza social do brasileiro típico, ou ainda no estudo do funcionamento de nossa instituições políticas, demonstra como a dicotomia clássica de público e privada em nossa tradição não apresenta uma separação muito distinta dessas esferas, havendo em nossa formação histórica e cultural traços que estigmatizam no homem público nacional a prática não demarcatória de tais âmbitos de atuação.

A herança legada do patrimonialismo em nossa formação é trazida por toda uma corrente doutrinária que entende diversas práticas desenvolvidas em nosso Estado – e na América latina, em geral – são produtos de uma situação histórica adquirida das antigas estruturas coloniais implantadas na região, sendo posteriormente reproduzidas ao longo dos tempos, cujas conseqüências se mostram mais evidentes pela forma de burocracia ineficiente e autoritária assumida por nossas instituições políticas hodiernamente.

A única constatação que resta desta tradição se deve a assertiva de que onde o patrimonialismo impera, naqueles âmbitos institucionais em que o indivíduo age “privatizando a coisa pública”, não distinguindo a separação necessária entre a esfera individual e a pertencente a toda uma coletividade, nunca há a realização em sua completude dos desígnios de ordem coletiva aos quais o Estado se presta em essência a proteger. Nesses casos, sempre prevalece o sistema de clientela, muito mais do que na existência de partidos, que propõem valores e visões do mundo. Nesta ordem conjuntural, a acomodação e a corrupção tornam-se práticas comuns, não florescendo no seio da sociedade política valores republicanos, além de repelir definitivamente qualquer resquício de cidadania que possa subsistir da clivagem sociedade civil e Estado. Não há aí nem esfera pública, tampouco espaço privado, pois ambos já teriam perdido sua essência, imiscuídos em um amálgama de difícil reparação e de contínua reprodução de interesses, os quais, certamente, não são de incumbência de uma sociedade política institucionalizada na figura do Estado atender.

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[1] Essas formas de dominação, cabe ressaltar, são denominadas por Weber como sendo “tipos-ideais”, ou seja, um recurso metodológico que o cientista utiliza toda vez que necessitar de compreender um fenômeno formado por um conjunto histórico ou uma seqüência de acontecimentos, os quais não podem ser encontrados na realidade – em seu “estado puro” –, mas que se situam apenas no plano da abstração teórica (ARON, 1999, p. 465). Nada mais é do que um recurso científico-metodológico que se vale o pesquisador para compreender uma realidade ou um fenômeno dado, preservando-se os pressupostos de neutralidade axiológica e objetividade científica .Trata-se, como afirma Julien Freund, de uma “ucronia”, i.e., aquilo que não se situa nem se pode situar em nenhum tempo (2000, p. 57). Com tal fórmula, diz-nos Florestan Fernandes, visa o estudioso do comportamento humano social, artificialmente, controlar a obtenção de dados e sua interpretação (1959, p. 96-7). Segundo o próprio Weber, [...] “obtém-se um tipo ideal mediante a acentuação unilateral de um ou vários pontos de vista, e mediante o encadeamento de grande quantidade de fenômenos isoladamente dados, difusos e discretos, que se podem dar em maior ou menor número ou mesmo faltar por completo, e que se ordenam segundo os pontos de vista unilateralmente acentuados, a fim de se formar um quadro homogêneo de pensamento” (1991, p. 106, grifos do autor).

[2] Weber afirma no decorrer do desenvolvimento de tal conceito: “Falaremos de Estado patrimonial quando o príncipe organiza seu poder político sobre áreas extrapatrimoniais e súditos políticos – poder que não é discricionário nem mantido pela coerção física – exatamente como exerce seu poder patriarcal” (1999, v. 2, p. 239). E logo em seguida arremata seu raciocínio com a afirmação: “A maioria de todos os grandes impérios continentais teve forte caráter patrimonial até o início e mesmo depois dos tempos modernos” (1999, v. 2, p. 240).

[3] Weber descrever a característica historicamente vislumbrada do fenômeno da “distribuição das terras senhoriais”, sendo este o núcleo embrionário da transformação de um patriarcalismo originário em patrimonialismo puro. Vide Weber (1999, v. 2, p. 233 et seq.).

[4] Sobre a influência do pensamento weberiano no Brasil, consultar a obra de Vamireh Chacon, “História das Idéias Sociológicas no Brasil” (1977, p. 117-28).

[5] Tal visão é também compartilhada por Simon Schwartzman em seu artigo intitulado “A atualidade de Raymundo Faoro” (2003, p. 207).

[6] Posição que é contrária ao pensamento de inúmeros autores nacionais, dentre os mais importantes, Oliveira Vianna, que apontam evidentes traços feudais na organização da sociedade brasileira. Faoro rejeita expressamente essas acepções, tanto da existência do feudalismo em Portugal quanto no Brasil. Para tal apreensão, vide, em “Os Donos do Poder”, os capítulos I, parte 3, e IV, parte 6, de seu primeiro tomo.

[7] “Burocrático”, no termo empregado por Faoro, indica em sua essência não o sistema administrativo típico da dominação racional-legal, onde se tem competências fixas, baseadas em critérios legais e impessoais de ordem, mas como estrutura de organização dos “funcionários” administrativos patrimoniais. Weber e Faoro se referem à preocupação desse estamento em se valer do cargo “burocrático” como um veículo para a diferenciação social.

[8] O que destoa em parte da concepção original de Weber que concebe o patrimonialismo como descentralizado, ante principalmente a divisão do poder do senhor territorial entre seus súditos leais e consangüíneos. Nesta visão, o pensamento de Faoro não identificou o patrimonialismo brasileiro de forma “pura”, como Weber inicialmente idealizou tal fórmula de pensamento, mas reduziu-lhe a uma forma mista, referente à centralização que se vislumbra no patriarcalismo, sultanismo ou mesmo no feudalismo presentes nos tipos-ideais weberianos.

[9] Dois livros que demonstram bem essa passagem são Vieira (1976) e Queiroz (1975).

[10] Este pensamento corrobora o entendimento de Rubens Goyatá Campante (2003).

 

 

 

 

*Mestrando em Direito do Estado pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília (Unb). Mestrando em Ciência Política pelo Instituo de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

 

 

 

 

SILVEIRA, Daniel Barile da .Patrimonialismo e a formação do Estado brasileiro: uma releitura do pensamento de Sergio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro e Oliveira Vianna. Disponível em: < http://sociologiajur.vilabol.uol.com.br/tadanielsilveira3.htm>. Acesso em: 28 set 2006.