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Patrimonialismo e a formação do Estado brasileiro: uma releitura do pensamento de Sergio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro e Oliveira Vianna
Daniel Barile da Silveira*
Resumo: A temática da formação do Estado Nacional
Brasileiro sempre foi submetida ao longo de décadas a uma enorme variedade de
teorias e sistemas de explicação que propiciaram elucidar esse controvertido
momento do surgimento de nossas instituições políticas. Deste modo, o presente
trabalho visa demonstrar como alguns pesquisadores, herdeiros da tradição sociológica
legada pelo alemão Max Weber, lidaram com tal desafio, trazendo à lume algumas
questões postas por Sergio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro e por Oliveira
Vianna.
Palavras-chaves: Patrimonialismo – Formação do Estado
Brasileiro – Max Weber – Sergio Buarque de Holanda – Raymundo Faoro – Oliveira
Vianna
A singular
formação do Estado Brasileiro, desde suas origens mais remotas, plasmada sob as
raízes do Império Português, tem sido tratada por uma ampla parcela da teoria
política nacional como resultado de um processo histórico no qual se verifica
uma forte tendência em considerar nossa gestação como fruto de uma consolidada
ordem patrimonial de cariz medievo. A temática do “patrimonialismo”, cuja
matriz teórica remonta à exsurgência do uso dos conceitos do jurista e
sociólogo alemão Max Weber e que via de regra tende a associar, como idéia
principal, o trato da coisa pública pela autoridade como se privada fosse, não
raro tem fomentado inúmeras discussões no cenário teórico nacional, abrindo um
novo e fecundo campo de investigações ao cientista que se esmera pelo estudo do
curioso nascimento de nossas instituições políticas.
Embora a temática do patrimonialismo assuma no debate
teórico nacional essa tônica, evidenciando assim, em seu sentido mais amplo, a
indistinção das esferas pública e privada, quando se analisam as correntes de
pensamentos que versaram sobre tal enfoque verifica-se um desdobramento deste
conceito, que freqüentemente escapam a sua vertente genética weberiana. Sob o
prisma conceitual mais atento em relação às principais doutrinas políticas que
enveredaram por esse esquema explicativo, faz-se indispensável investigar o
fenômeno de forma a entender como os principais autores nacionais lidaram com
esse conceito, elucidando suas peculiaridades mais significativas e
demonstrando em que medida se afastaram de sua acepção originária.
Neste sentido, a
recepção conceitual do “patrimonialismo brasileiro”, enquanto uma forma de
prática social que não efetua a fundamental diferença entre a esfera pública e
a privada na vida política, adquiriu em nosso contexto diversas interpretações,
às quais remeteram a uma sorte de “rearranjo” de sua raiz terminológica oriunda
das teses de Weber. Como representações mais originais nesta seara destacamos
aqui os trabalhos de Sergio Buarque de Holanda, de Raymundo Faoro e de Oliveira
Vianna, cujos esquemas explicativos merecem uma atual releitura, posto que
representam a consolidação de marcos referenciais clássicos aos quais podemos
nos debruçar no lídimo intuito de entendermos a realidade que nos forma e nos
cinge.
Assim posto, antes
de ingressarmos nestas explicações com maior devotamento, não é despiciendo
proceder a um breve regresso ao arcabouço conceitual weberiano no afã de
desvelar seus conceitos mais importantes, vislumbrando-se um recurso
metodológico indeclinável ao entendimento do tema posto em debate, além de
delinear todo o pano de fundo que dá vida à discussão.
1. Max Weber e
o Patrimonialismo como uma Forma de Dominação Política
Na teoria política
do autor turingiano Max Weber, o “patrimonialismo” enquanto doutrina é uma
sorte de exercício legítimo de poder político, cujo referencial teórico está
ancorado, em seu esquema conceitual, no tipo de “dominação tradicional”. A
partir da análise do fundamento da legitimidade das ordens emanadas pela
autoridade e sua respectiva obediência por parte dos súditos, Weber intenta
descobrir como se procede o fenômeno da dominação no seio das relações sociais,
perquirindo como essas formas de exercício de poder perduram socialmente. Deste
modo, a obediência ao chefe político em sua visão geralmente está assegurada
por um “sistema de dominação”, cuja taxonomia vem representada em seus escritos
pelos “três tipos de dominação legítima”, quais sejam, a “dominação
carismática”, a “dominação racional-legal” e a “dominação tradicional”[1].
Para se entender o fenômeno do patrimonialismo faz-se mister esclarecer em que
campo conceitual tal acepção pode ser inserida, demonstrando o âmbito válido de
sua aplicação no seio do arcabouço teórico weberiano, mais afeto à dominação
tradicional, como veremos.
“Dominação” (Herrschaft)
é definida por Weber, em seu conceito classicamente reproduzido, como “a
probabilidade de encontrar obediência a uma norma de determinado conteúdo,
entre determinadas pessoas indicáveis” (1999, v. 1, p. 33). Verifica-se, desde
logo, que o conceito de dominação proposto por Weber está intimamente ligado à
própria idéia que ele tem do poder. “Poder” (Match), como nos traz o
autor, “significa toda a probabilidade de impor a própria vontade numa relação
social, mesmo contra resistências, seja qual for o fundamento dessas
legitimidades” (1999, v. 1, p. 33). Não se trata do fato de qualquer
espécie de exercício de “poder” ou “influência” sobre o outro se configura como
relações de dominação essencialmente legítimas, pois devemos considerar que uma
dominação para ser legítima requer certa vontade de obedecer e interesse
na obediência (WEBER, 1999, v. 1, p. 139). Este aspecto é denominado de “crença
na legitimidade” (ou “princípio da legitimidade”), que se configura como
elemento essencial pelo qual uma ordem da autoridade é possível de ser imposta,
ou também, fenômeno capital que permite a um governante atuar instituindo
regras de observância aceitas como válidas e livremente aceitas, de forma
contínua.
A dominação
tradicional ocorre “[...] quando sua legitimidade repousa na crença na
santidade de ordens e poderes senhoriais tradicionais (‘existentes desde
sempre’)” (WEBER, 1999, v. 1, p. 148). Trata-se da crença na legitimidade do
poder de quem exerce a dominação pelo fato de que sua “investidura” decorre de
longa tradição, de um costume inveterado, a partir de uma autoridade que sempre
existiu. É o costume de determinada coletividade que indica quem exerce
o poder e que também garante a legitimidade do exercício da dominação. Típico
caso é o dos governantes chamados ao poder por ordem de progenitura (monarca, v.g.),
pelo fato de serem os mais velhos – gerontocracia – (conselho de anciãos, p.
ex.), por possuírem glebas de terra – patrimonialismo puro – (como províncias
etc.). Os governados são súditos ou pares que se caracterizam por
não obedecerem às ordens arbitrárias dos governantes ou normas jurídicas
“postas”, porém detêm-se a observar somente as regras estabelecidas pelo costume
vigente, por uma tradição ou por lealdade ao senhor decorrente estritamente de
um status reconhecido pelo decorrer dos tempos. Bem verdade, o que pode
ocorrer em prática, neste último caso, é a obediência sim às ordens privadas do
soberano, mas que via de regra decorrem diretamente da legitimação de sua
assunção ao poder por deferência a uma tradição arraigada. As idéias de
justiça, de retribuição por um desagravo cometido, têm por base os ditames dos
costumes. O aparato administrativo é constituído basicamente por vassalos
(feudalismo), partidários leais, senhores tributários, parentes (dominação esta
última derivada de laços consangüíneos). A aplicação do direito, em sua forma
“pura”, não constitui propriamente a sua criação, porém atém-se à interpretação
dos sagrados mandamentos ditados pelo tempo. Atualmente, o regime monárquico,
em algumas poucas localidades ainda não constitucionalizadas, ou o sistema de
castas na Índia, embora não perfeitamente adaptáveis ao “tipo puro”
estabelecido por Weber, são demonstrações clássicas e mais próximas de tal tipo
de dominação.
Existem inúmeras
sortes de dominação tradicional, e não raro estão misturadas ou de distinção
fluidas, dentre as quais as que mais se destacam são a “gerontocracia” (governo
em que o poder cabe aos mais velhos), o “patriarcalismo” (casos em que o poder
é determinado pelo pertencimento a uma determinada família, normalmente sendo a
dominação exercida por um indivíduo chefe da comunidade doméstica – pater
familias ou despótès –,“determinado segundo regras de sucessão” (1999, v. 1,
151)), o “sultanismo” (forma de dominação no qual está calcada no “arbítrio
livre” do governante, munido de um aparato administrativo próprio para fazer
valer suas ordens), o “feudalismo” (forma de dominação baseada em um contrato
de status, em termos de vassalo-suserano, regidos pelo sentimento de fidelidade
pessoal entre ambos – idéia de “honra”), e, finalmente, o “patrimonialismo”
(dominação exercida com base em um direito pessoal, embora decorrente de laços
tradicionais, obedecendo-se ao chefe por uma sujeição instável e íntima
derivada do direito consuetudinário – “porque assim sempre ocorreu”).
Deste modo, ipso
facto, o Patrimonialismo é uma forma de exercício da dominação por uma
autoridade, a qual está legitimada pela roupagem da tradição, cujas
características principais repousam no poder individual do governante que,
amparado por seu aparato administrativo recrutado com base em critérios unicamente
pessoais, exerce o poder político sob um determinado território[2].
Trata-se, portanto, de uma sorte de dominação tradicional, ordenada pelo longo
costume atávico. Seu arquétipo constitutivo cronologicamente geralmente possui
raízes na ordem familiar, de cariz patriarcal, posto que com o crescimento da
esfera de poder do governante sobre seus súditos, abarcando uma ampla parcela
de vastas regiões e grandes conjuntos populacionais, a administração pessoal
necessitou racionalizar-se, desenvolvendo um aparato administrativo capaz de
cobrir em grande parte essa nova dimensão territorial e demográfica. Destarte,
embora em termos quantitativos houvesse uma mudança na dimensão da abrangência
da autoridade, a forma típica de exercício do mando continuou repousando em
caracteres vinculados ao poder pessoal do príncipe, delegando este senhor as
funções administrativas a servos pessoais[3], dependentes diretos de sua
mantença, todo esse complexo mecanismo amparado pela via da obediência
tradicional. O reino do governante era um refinado oikos de gigantescas
proporções.
Neste sentido, ao
cargo patrimonial é desconhecida a divisão entre a “esfera privada” e a
“oficial”. A administração política é tratada pelo senhor como assunto
puramente pessoal, bem como o patrimônio adquirido pelo tesouro senhorial em
função de emolumentos e tributos não se diferencia dos bens privados do senhor.
Por tal razão, o príncipe lida com os assuntos da corte, públicos segundo a
acepção moderna, de forma eminentemente privada, posto que o patrimônio pessoal
do governante e a coisa pública são amalgamadas em uma esfera apenas,
comandadas e livremente dispostas por ordem da autoridade política. Os
interesses pessoais da autoridade não distinguiam a sua dimensão íntima da
administrativa, não havendo separação entre a seara do indivíduo em relação ao
mister público que ocupava. Sua forma de administração obedecia unicamente o
livre-arbítrio, baseada em “considerações pessoais” como salienta Weber, desde
que a santidade da tradição, vigente desde sempre, não lhe imponha limites
muito rígidos e diretos (WEBER, 1999, v. 2, p. 253 et seq.). Conforme nos
demonstra Reinhard Bendix,
No
patrimonialismo, o governante trata toda a administração política como seu
assunto pessoal, ao mesmo modo como explora a posse do poder político como um
predicado útil de sua propriedade privada. Ele confere poderes a seus
funcionários, caso a caso, selecionando-os e atribuindo-lhes tarefas
específicas com base na confiança pessoal que neles deposita e sem estabelecer
nenhuma divisão de trabalho entre eles. [...] Os funcionários, por sua vez
tratam o trabalho administrativo, que executam para o governante como um
serviço pessoal, baseado em seu dever de obediência e respeito. [...] Em suas
relações com a população, eles podem agir de maneira tão arbitrária quanto
aquela adotada pelo governante em relação a eles, contanto que não violem a
tradição e o interesse do mesmo na manutenção da obediência e da capacidade
produtiva de seus súditos. Em outras palavras, a administração patrimonial
consiste em administrar e proferir sentenças caso por caso, combinado o
exercício discricionário da autoridade pessoal com a consideração devida pela
tradição sagrada ou por certos direitos individuais estabelecidos” (1986, p.
270-1).
Do patrimonialismo
trazido pelos ensinamentos de Weber não se torna despiciendo ainda acrescentar
que é uma forma de organização política assentada na “racionalidade material”
das ordens estatuídas, ou seja, os comandos proferidos pela autoridade são de
características eminentemente voltadas a valores, opiniões, posições pessoais
do senhor, e não com base em critérios racional-finalísticos, fixados
objetivamente em normas impessoais e abstratas. É uma ordem entendida em seu
caráter vertical, “de cima para baixo”, onde o topo está o chefe patrimonial e
na base seus súditos. Por via de conseqüência, o sustentáculo social plana
sobre a ordem política, e não repousa na sociedade civil (entendido aqui este
conceito conforme a respeitada definição hegeliana). Tanto se evidencia esse
fato que a própria Economia, aquelas atividades materiais baseada em um sistema
orientado para uma situação de mercado, dependem incondicionalmente do Estado
para se desenvolver, fenômeno identificado por Weber como “capitalismo
político”, “capitalismo de Estado” ou então “capitalismo politicamente
orientado” (cujos exemplos mais representativos foram as grandes descobertas
dos Estados Ibéricos em suas expansões ultramarinas nos séc. XV e XVI). Da
organização da sociedade, não se denota um fluxo dinâmico na camada de
estratificação social, sendo uma sorte de estruturação ditada basicamente pela
esfera política. Não há noção de indivíduo, entendida no sentido de ser este o
ente centro da política, núcleo de poder e de decisão, receptáculo de direitos
e deveres. Ademais, não se verifica a noção de “desenvolvimento” em seu sentido
próprio de “evolução”, de um movimento de superação do passado e de expansão ad
infinitum para o futuro, porém denota-se um processo histórico repetitivo,
recorrente. Não há a visão de “progresso”. Essa sociedade estática – “orgânica”
na acepção da teoria política – é conduzida por uma sucessão temporal, “com
retorno de formas e de tempos que não passam de um recondicionamento de outro
tempo” (FAORO, 1993, p. 18). Trata-se de um “eterno reviver”, características
todas estas descritas com muita propriedade por diversos autores de tradição
weberiana, cujas premissas teóricas irão moldar esse tipo específico de
dominação vislumbrada em muitas organizações políticas, especialmente do
período medievo e do início da modernidade.
2. O
Patrimonialismo na Ordem Política Nacional
O patrimonialismo,
enquanto doutrina política herdada dos excertos weberianos, obteve fecunda
receptividade na história das doutrinas políticas brasileiras, mormente no que
concerne ao estudo da formação de nossas instituições. Tal corrente específica
do pensamento nacional tende, precipuamente, ao uso dos conceitos trazidos pela
Sociologia Política de Weber para explicar os traços mais marcantes das bases de
nosso modelo político, buscando elucidar em nossas formações cultural e
institucional a génesis do patrimonialismo estatal e de suas relações com o
povo brasileiro[4].
a) Sergio
Buarque de Holanda e o “homem cordial”
A primeira
incursão mais notória nesta seara é atribuída, conforme salienta Vamireh Chacon
(1988, p. 91), a Sergio Buarque de Holanda, que já em 1936 denotava em seu
livro mais bem difundido, Raízes do Brasil, a característica fundamental do
“homem cordial” brasileiro que, em sua débil vida pública, era tenazmente
propenso a não considerar a fundamental diferença entre seu interesse privado e
a dimensão da esfera coletiva que o cingia. Este autor paulistano demonstra em
sua obra, mediante o uso de um método intimamente voltado à psicologia e à
história social, de que maneira as características por nós herdadas durante o
processo colonizador se plasmaram em nossa cultura, desenvolvendo em solo
nacional biótipos e arquétipos institucionais tipicamente patriarcais, de uma
prática de subordinação à autoridade e de manifesto descaso com os assuntos
relativos à esfera pública. Já dizia Sergio Buarque de Holanda sobre o típico
membro da elite detentora do poder político no País:
Não era fácil aos
detentores das posições públicas de responsabilidade, formados por tal
ambiente, compreenderem a distinção fundamental entre os domínios do privado e
do público. Assim, eles se caracterizam justamente pelo que separa o
funcionário “patrimonial” do puro burocrata, conforme a definição de Max Weber.
Para o funcionário “patrimonial”, a própria gestão política apresenta-se como
assunto de seu interesse particular; as funções, os empregos e os benefícios
que deles aufere, relacionam-se a direitos pessoais do funcionário e não a
interesses objetivos, como sucede no verdadeiro Estado burocrático, em que
prevalece a especialização das funções e o esforço para se assegurarem
garantias jurídicas aos cidadãos. A escolha dos homens que irão exercer as
funções públicas faz-se de acordo com a confiança pessoal que mereçam os
candidatos, e muito menos de acordo com as capacidades próprias. Falta a tudo a
ordenação impessoal que caracteriza a vida no Estado burocrático. [...] (1969,
p. 105-6).
Ocorre que na
visão de Buarque de Holanda, remontando aos clássicos gregos, a relação travada
entre Estado e Sociedade repousa justamente, para que aquele possa existir, na
superação das relações privadas, almejando-se a formação de um espaço que é
marcado justamente pelo sobrepujamento desses vínculos particularistas e pela
ascensão de um antro de predominância dos aspectos coletivos, públicos por
excelência. Assim dizia:
O Estado não é uma
ampliação do círculo familiar e, ainda menos, uma integração de certos
agrupamentos, de certas vontades particularistas, de que a família é o melhor exemplo.
Não existe, entre o círculo familiar e o Estado, uma gradação, mas antes uma
descontinuidade e até uma oposição. [...] A verdade, bem outra, é que pertencem
a ordens diferentes em essência. Só pela transgressão da ordem doméstica e
familiar é que nasce o Estado e que o simples indivíduo se faz cidadão,
contribuinte, eleitor, elegível, recrutável e responsável, ante as leis da
Cidade. Há nesse fato um triunfo do geral sobre o particular, do intelectual
sobre o material, do abstrato sobre o corpóreo e não uma depuração sucessiva,
uma espiritualização de formas mais naturais e rudimentares, uma procissão das
hipóstases, para falar como na filosofia alexandrina. A ordem familiar, em sua
forma pura, é abolida por uma transcendência" (1969, p. 101).
Esse movimento
social de passagem da predominância de uma esfera eminentemente privatizada,
particularista, familiar, para a formação do Estado foi um processo pelo qual a
maioria dos países desenvolvidos modernos vivenciou, inclusive características
que revelaram a transição de uma ordem feudal para uma ordem capitalista na
Europa. Entretanto, esse mecanismo “evolutório”, em contrapartida, não foi
vivenciado pelo povo brasileiro em sua plenitude, o qual ficou ainda
intimamente ligado aos laços tradicionais, de predominância das relações
familiares, transpondo estes valores inadvertidamente para a esfera pública.
O ponto crucial ao
qual Buarque de Holanda enfatizava era essa peculiaridade deste perfil de homem
público nacional que, nascido e criado sob um invólucro cultural marcado pela
forte presença dos valores de um núcleo familiar de caráter patriarcal, trazia
para suas atividades na seara pública características próprias do meio em que
se fez indivíduo. Deste modo, este sólito homem carregava para o mister público
os mesmo traços paternalistas delimitadores de sua visão de mundo, de modo
conducente a confundir na prática aqueles assuntos aptos ao âmbito pessoal das
atividades inerentes à res publica[5]. Mais adiante, segue em sua
profícua argumentação:
No Brasil, pode
dizer-se que só excepcionalmente tivemos um sistema administrativo e um corpo
de funcionários puramente dedicados a interesses objetivos e fundados nesses
interesses. Ao contrário, é possível acompanhar, ao longo de nossa história, o
predomínio constante das vontades particulares que encontram seu ambiente
próprio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal.
Dentre esses círculos, foi sem dúvida o da família aquele que se exprimiu com
mais força e desenvoltura em nossa sociedade. E um dos defeitos decisivos da
supremacia incontestável, absorvente, do núcleo familiar – a esfera, por
excelência dos chamados “contatos primários”, dos laços de sangue e de coração
– está em que as relações que se criam na vida doméstica sempre forneceram o
modelo obrigatório de qualquer composição social entre nós. Isso ocorre mesmo
onde as instituições democráticas, fundadas em princípios neutros e abstratos,
pretendam assentar a sociedade em normas antiparticularistas (1969, p. 106).
Antonio Candido,
já no prefácio de “Raízes do Brasil”, assevera com extrema propriedade que o
conceito de “patrimonialismo”, assim como o de “burocracia”, foi de forma
pioneira utilizado por Sergio Buarque de Holanda para explicar a sua concepção
de que o típico indivíduo brasileiro – o denominado “homem cordial” –
caracterizava-se profundamente por seu caráter de afabilidade, fundamento
remoto de seu ambiente familiar. Essa característica, segundo Candido,
importaria na extrema dificuldade do padrão médio de indivíduo nacional em
tratar seus pares de forma impessoal e formal, pois os laços de pessoalidade e
de intimidade – próprios do ambiente familiar – transcenderiam a esfera privada
e eclodiriam na pública (1969, p. xviii). A partir dessa constatação sociologicamente
vislumbrada, portanto, seria inerente à condição do brasileiro típico essa
atávica propensão em tratar a política e os assuntos do Estado em conformidade
com a noção que o indivíduo adquiriu de seu ambiente familiar, ou seja, de modo
pessoal, avesso a formalismos. Tudo isso obteve como contrapartida o obstáculo
em se erigir um Estado burocrático por excelência, dificultando a inserção
deste “homem cordial” em organizações sociais que estejam fora de sua visão
patriarcal do mundo.
b) Raymundo Faoro
e o “estamento burocrático”
Sem maiores
dúvidas, a elaboração mais refinada da teoria patrimonialista ganhou corpo e
maior estilo no pensamento político de Raymundo Faoro, quando da publicação em
1958 de sua obra paradigmática “Os Donos do Poder”, considerada um dos maiores
marcos teóricos da conciliação entre dominação tradicional-patrimonial
weberiana e a formação de nossa identidade política. Não obstante o autor
declare, já no prefácio à segunda edição, que o livro não segue, “apesar de
próximo parentesco”, a linha de Weber, mormente pelo fato das sugestões deste
autor alemão tomarem outros rumos, “com um novo conteúdo e diverso colorido”
(1977, v. 1, p. XI), é evidente a base conceitual weberiana sobre a qual se
assenta Faoro na construção de seu raciocínio.
Segundo Faoro, a
explicação para as mazelas do Estado e da Nação brasileiras pode ser mais
manifestamente encontrada ao nos debruçarmos sobre o caráter específico de
nossa formação histórica, em especial sobre nosso passado colonial. Em seus estudos,
Faoro analisa a estrutura de poder patrimonialista adquirida do Estado
Português por nossos antepassados, tendo sido este inteiramente importado em
sua estrutura administrativa para a colônia na época pós-descobrimento, fato
que depois foi reforçado pela transmigração da Coroa Lusitana no século XIX. Em
sua acepção, tal modelo institucional foi transformado historicamente em padrão
a partir do qual se estruturaram a Independência, o Império e a República do
Brasil. O patrimonialismo seria, para Faoro, a característica mais marcante do
desenvolvimento do Estado brasileiro através dos tempos.
Ao analisar as
raízes históricas do Estado Português, Faoro descobre que a fundamental
peculiaridade de sua forma de organização estava calcada no fato de que o bem
público – as terras e o tesouro da Corte Real – não estava dissociado do
patrimônio que constituiria a esfera de bens íntima do governante. Tudo
constituía um imenso conjunto de possessões sob a égide de disponibilidade
fática e jurídica de deliberação do príncipe. Assim dizia:
A coroa conseguiu
formar, desde os primeiros golpes da reconquista, imenso patrimônio rural (bens
“requengos”, “regalengos”, “regoengos”, “regeengos”), cuja propriedade se
confundia com o domínio da casa real, aplicado o produto nas necessidades
coletivas ou pessoais, sob as circunstâncias que distinguiam mal o bem público
do bem particular, privativo do príncipe [...] A propriedade do rei – suas
terras e seus tesouros – se confundem nos seus aspectos público e particular.
Rendas e despesas se aplicam, sem discriminação normativa prévia, nos gastos da
família ou em bens e serviços de utilidade geral (1977, v. 1, p. 4 e 8).
Como forma de
argumentação extremamente bem articulada, Faoro, com base em Alexandre
Herculano e em uma vasta gama de informações documentais e históricas,
demonstra em seu livro que, tanto em Portugal quanto no Brasil, não houve o
desenvolvimento de uma organização social compatível com o feudalismo, porém,
ao revés, estas formações sociais foram marcadas pela forte presença do Estado
na vida dos indivíduos, demonstrando na tradição luso-brasileira marcas de uma
evidente estrutura de cariz patrimonial[6].
Em sua
investigação, o advogado e historiador gaúcho defende que tal modelo
institucional tinha como forma de organização política um patrimonialismo
gerido pela vontade administrativa do príncipe, o qual estava munido de todo um
aparato de funcionários e súditos leais que se apropriavam do Estado e que se
utilizavam deste em benefício próprio, em caráter particularista. Essa elite
que administrava os assuntos reais constituía, de forte inspiração weberiana, o
“estamento burocrático” de que Faoro se vale para explicar como um certo
círculo de notáveis conduzia os assuntos de natureza pública em uma ordem
patrimonial nestas nações[7].
O estamento, que
Faoro remonta a Weber para descrever seus aspectos mais importantes, é uma
forma de ordem social vigente sob a qual se funda a estratificação e que
dissemina relações de poder pela tessitura social, reclamando “a imposição de
uma vontade sobre a conduta alheia” (FAORO, 1977, v. 1, p. 46). Enquanto que
nas classes sociais se tem uma manifesta criação segundo ao rearranjo de grupos
que estão dispostos conforme interesses econômicos determinados por uma
“situação de mercado” (WEBER, 1999, vol. 2, p. 175-86), os estamentos se fundam
na divisão da sociedade conforme a posição social que ocupam, ou seja, a um
status específico. Trata-se de comunidades “fechadas”, de maneira que fazem de
tudo para impedir que outros indivíduos adentrem tal grupo e compartilhem do
poder ali centralizado (ao contrário das classes, que são “comunidades
abertas”, desde que haja um fator econômico preponderante). Calcam-se na
desigualdade social, reclamando para si privilégios materiais e espirituais que
irão assegurar sua posição e sua base de poder no seio da sociedade. Neste
sentido, o estamento é uma camada de indivíduos que se organiza e que é
definido pelas suas relações com o Estado (CAMPANTE, 2003, p. 154). Conforme
Faoro, “os estamentos governam, as classes negociam. Os estamentos são órgãos
do Estado, as classes são categorias sociais (econômicas)” (1977, v. 1, p. 47).
Nesta acepção, estes estamentos organizados se apropriam do Estado, de seus
cargos e funções públicas, impondo-se um regime de uso dessas vantagens
advindas do status ocupado para a utilização da máquina estatal em proveito
próprio, para a satisfação de interesses particulares. Eles são os verdadeiros
“donos do poder”. Dessas considerações remanescem as conseqüências, conforme
nos demonstra Rubens Goyatá Campante:
O instrumento de
poder do estamento é o controle patrimonialista do Estado, traduzido em um
Estado centralizador e administrado em prol da camada político-social que lhe
infunde vida. Imbuído de uma racionalidade pré-moderna, o patrimonialismo é
intrisecamente personalista, tendendo a desprezar a distinção entre a esfera
púbica e privada. Em uma sociedade patrimonialista, em que o particularismo e o
poder pessoal reinam, o favoritismo é o meio por excelência de ascensão social,
e o sistema jurídico, lato sensu, englobando o direito expresso e o direito
aplicado, costuma veicular o poder particular e o privilégio, em detrimento da
universalidade e da igualdade formal-legal. O distanciamento do Estado dos
interesses da nação reflete o distanciamento do estamento dos interesses do
restante da sociedade (2003, p. 155).
No caso
brasileiro, o patrimonialismo que Faoro aponta como fundamento edificativo de
nossas origens institucionais é apresentado como forte papel centralizador[8].
Desde as concessões de cargos até a condução dos assuntos econômicos
(“capitalismo politicamente orientado”), tudo era empresa de incumbência do
Estado, que estava presente em praticamente todas as esferas da vida social.
Faoro argumentava que, até mesmo antes da formação de algumas vilas coloniais,
antes mesmo da afirmação de um patronato rural dominante, de coronéis chefes de
engenho e de líderes regionais, já havia no interior do Brasil todo um sistema
cartorial apto a registrar, controlar e fiscalizar as produções (1977, v. 1, p.
221 et seq.). Não havia autonomia dos latifundiários para o exercício de suas
atividades sem que os donatários estivessem sob a égide da Coroa. Em seus
dizeres,
Os olhos
vigilantes, desconfiados, cuidavam para que o mundo americano não esquecesse o
cordão umbilical que lhe transmitia a força de trabalho e lhe absorvia a
riqueza. O rei estava atento a seu negócio (FAORO, 1977, v. 1, p. 133).
Destarte, o
empreendimento de Faoro em destacar a importância do caráter centralizador do
patrimonialismo brasileiro reside na diminuição da influência da sociedade
civil como força refreadora dos mandos unívocos do Estado nacional. A figura do
povo brasileiro é retratada constantemente pelo autor como dotada de uma
veemente inatividade na ordem política, uma sociedade “abúlica” (Rubens
Campante), que na esfera pública não consegue se organizar e se contrapor aos
desígnios autoritários da chefia política. Esta ausência do indivíduo
brasileiro na condução da vida política no Brasil revela o anacronismo da
identidade do sujeito político nacional, sempre dependente da atuação estatal
em sua vida privada e extremamente leniente com a reivindicação da probidade e
eficiência no trato com as matérias de ordem coletiva.
No ávido
pensamento deste jurista, o afloramento de uma identidade política nacional
possui estreita ligação com a forma de organização social com a qual um grupo
de indivíduos assume historicamente. Nesta acepção, a exsurgência de liberdades
públicas estão intimamente conexas ao cultivo de liberdades econômicas, sendo
que apenas em uma ordem social organizada em classes é que há a possibilidade
da assunção de tal quadro político. Apenas neste sistema, em que subsiste o
domínio da economia livre de mercados, é que se pode afirmar da consolidação de
um verdadeiro Estado de Direito liberal-democrático, em que, de fato, há a
nítida separação das esferas público e privada. Caso contrário, em uma estrutura
social em que prevalece a posição de estamentos que cooptam os interesses no
ápice de um mecanismo estrutural de Estado, não há uma vida civil livre, não
poderá prevalecer a justiça social e a desigualdade é regra de sobrevivência
dessa elite, forma pela qual a sociedade se assenta e se reproduz. Em tal
contexto, democracia e liberalismo político são meramente simulacros de um
sistema político vigente. Esfera pública e esfera privada são amalgamadas em um
único poder central, emanado ou do governante, ou da camada de indivíduos
detentores do poder político (estamento). Assim asseverava Faoro sobre o
liberalismo brasileiro encarado nesta conjuntura submetida a uma ordem
patrimonial:
O liberalismo que
assim nasce tem alguma coisa de liberal e pouco de democrático. Não se estranhe
esse divórcio que, até Tocqueville, foi um dos grandes dogmas do credo liberal.
O problema do liberalismo era compatibilizar-se com os estamentos, que assumem
papel semi-independente. Forma-se uma modalidade especial de liberalismo, onde
a base não está no povo, no cidadão, mas nos corpos intermediários.[...] O
povo, nessa perspectiva, é um corpo inorgânico a ser protegido ou, se entregue
a si mesmo, a ser temido. [...] As deficiências do liberalismo político estão
na base das fraquezas do liberalismo econômico. Embora, entre nós, um não tenha
saído do outro, com mais desencontros do que encontros, na base da
racionalidade do liberalismo econômico estão os elementos previsíveis e
calculáveis do Estado de direito. Esta irracionalidade formal é o grande
obstáculo de um e de outro para vencer o patrimonialismo (1993. 26-7, grifo do
autor).
c) Oliveira
Vianna e o “clã político”
Seguindo nossa
exposição, a terceira vertente teórica que versa sobre a curiosa temática da
difícil relação entre público e privado no Brasil é de Oliveira Vianna. Em sua
célebre obra, Instituições Políticas Brasileiras, Vianna busca investigar o
direito público nacional, desvendando suas mais tênues repercussões na vida
política pátria. Ocorre que, apesar de ser um jurista de profissão, Oliveira
Vianna intenta empregar em sua análise uma metodologia que privilegia o
comportamento social, os aspectos culturais que revestem os problemas de nosso
direito público, ao invés de seguir a tradicional investigação lógico-sistemática
das leis pela ciência do direito clássica. Em seu entender, apenas
investigando-se o papel da cultura na formação de uma sociedade é que é
passível de se entender seus problemas intrínsecos, especialmente os de
natureza política e que, conseqüentemente, relacionam-se diretamente com o
funcionamento do Estado. A partir de tal entendimento, o pensador formula, já
nas páginas iniciais de seu livro, aquelas quais seriam suas premissas básicas
que sustentariam o cerne da obra:
1) Na vida
política de nosso povo, há um direito público elaborado pelas elites e que se
acha concretizado na Constituição. 2) Este direito público, elaborado pelas
elites, está em divergência com o direito público elaborado pelo povo-massa e,
no conflito aberto por esta divergência, é o direito do povo-massa que tem
prevalecido, praticamente. 3) Toda a dramaticidade de nossa história política
está no esforço improfícuo das elites para obrigar o povo-massa a praticar este
direito por elas elaborado, mas que o povo-massa desconhece e a que se recusa a
obedecer (VIANNA, 1982, p. 298-9).
Um dos pontos que
Vianna pretende atacar em seu arcabouço teórico se assenta no fato de que o
direito imposto pelas elites nada tem a ver com aquelas noções de regras e do
justo que são praticadas nas relações sociais do “povo-massa”. Um dos problemas
das nações latino-americanas – e no Brasil se vê especial enfoque – é o forte
impacto que as doutrinas políticas e sistemas de governo do exterior tem
assumido em nosso direito. Conforme Vianna, é muito forte a intenção dos
latinos em importar essas teorias e modelos de organização de poder que nada
têm a ver com nossas tradições culturais, sendo que esse direito e essa
estrutura de dominação imposta, sempre por uma pequena elite, não correspondem
nem de longe àquilo que se pratica no seio dos usos sociais. Entre a vontade
dessa elite em aplicar essas convenções extraterritoriais e o exercício de um
costume local existe um fosso enorme, para o qual converge grande parte de
nossas mazelas políticas e de nossas condutas sociais desordenadas.
Portanto, neste
contexto, Vianna vai estudar como se deu essa peculiar formação política e
social brasileira, que em nada se assemelhou às matizes européias. Ao se
debruçar sobre o nosso processo colonizador, o pensador fluminense verifica que
a fundação da população brasileira basicamente foi gerida pela Metrópole
Portuguesa, uma vontade de Estado, e não a partir da livre agregação do povo.
Sua criação se devia à reunião de grupos de “moradores dispersos”, sendo que estes
eram forçosamente agrupados em vilas, criando microrregiões populacionais sem
um vínculo mais próximo que os unisse, salvo o pesado mando do governador.
Assim, a população brasileira ia sendo engendrada a partir de um contingente
extremamente disperso e desarticulado, sendo que tais características tinham um
ávido apelo à descentralização desses povos para o campo. Vivendo em vilas
pouco habitadas, criadas artificialmente por um poder central e submetidas ao
forte jugo dos arbitrários desígnios do “capitão-mor regente”, a população
brasileira tendeu a se voltar submissivamente para comunidades restritas, quase
sempre circunscritas ao ambiente familiar, fatores que foram propícios para que
estas células humanas se constituíssem como povos extremamente individualistas,
isolados da vida coletiva pujante – como diferentemente ocorreu em algumas
cidades européias, ou de colonização espanhola, em que prevaleceu a propriedade
comunal propícia à coesão societária, por exemplo (VIANNA, 1982, p. 377-90).
Assim o autor retratava tal traço em tons categóricos:
[...] o brasileiro
é fundamentalmente individualista; mais mesmo, muito mais do que outros
povos latino-americanos. Estes tiveram, no início, uma certa educação
comunitária de trabalho e de economia. [...] Nós não. No Brasil, só o indivíduo
vale e, o que é pior, vale sem precisar da sociedade – da comunidade. Estude-se
a história da nossa formação social e econômica e ver-se-á como tudo concorre
para dispersar o homem, isolar o homem, desenvolver, no homem, o indivíduo. O
homem socializado, o homem solidarista, o homem dependente de grupo ou
colaborando com o grupo não teve, aqui, clima para surgir, nem temperatura
para desenvolver-se: - “De onde nasce que nenhum homem nesta terra é repúblico,
nem vela ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular [...]” (1982,
p. 392, grifos do autor).
Veja-se, portanto,
como em Vianna a questão do patrimonialismo toma rumos próprios que revelam e
acentuam essa presença marcante do individualismo em nossa sociedade, cujas
conseqüências irão repercutir na dificuldade de diferenciação do público e do
privado quando a ação do indivíduo é politicamente orientada. Nesta acepção, os
únicos impulsos que gerenciam o espírito desse “homem disperso” repousam em sua
vontade individual, em sua predominante visão privatista do mundo. Esse
universo restrito e extremamente arraigado em laços tradicionais constituía, na
acepção de Oliveira Vianna, um verdadeiro “clã” (o “clã feudal” para o
povo-massa, dominado, e, de um outro lado, o “clã parental” composto pela elite
aristocrática senhorial, dominante) que, projetado para sua dimensão pública,
adotava caracteres de verdadeiros “clãs políticos”, pequenos grupos de
indivíduos que diretamente influíam nas decisões práticas da vida política
local segundo critérios baseados em sua conveniência particular. Em uma análise
histórica, a partir do momento em que algumas cadeiras institucionais eram
obtidas a partir do voto (que de início era censitário, é bem verdade,
expandido-se progressivamente, até o “sufrágio universal” da Constituição de
1824), esses clãs políticos agora se transformam em “clãs eleitorais”, no qual
a busca pelo poder de Estado os compele a agregação (“solidarização”) para
possibilitarem cooptar os votos necessários ao jogo político. Na visão de
Vianna, o “clã eleitoral” foi a gênese de nossos partidos políticos, os quais
inicialmente se dividiram em “Liberais” e “Conservadores” e depois se
reproduziram em escala nacional para o alcance de amplas parcelas demográfica e
territorial. Nesta visão, o autor nos esclarece:
O agrupamento
local que conseguia ter ao seu lado o Governador dominava o município todo,
passando a dispor de todos os meios de aliciamento, que o Centro – pelo
seu preposto, o Governador – dispunha: polícia civil; polícia militar; guarda
nacional; títulos de nobreza; nomeação para postos de administração locais
(delegados, subdelegados, comandantes, inspetores, fiscais, etc.). [...] Parece
que o processo de agremiação e sincretismo dos nossos clãs se iniciou sobre
este critério nativista. Eram expressões puramente bairristas e pessoais, não
havendo nelas nenhum conteúdo de interesse público ou ideológico. [...] Os
partidos locais, como se vê, surgiam por meros motivos pessoais: – eram sempre
as ambições, as vaidades e as preocupações de prestígio de família que decidiam
da formação destas agremiações. Todos eles tinham um objetivo único: – procurar
para si o apoio do Governador. Este era o centro de força na Província e,
conseqüentemente, nas localidades... (VIANNA, 1982, p.504 a 512, grifos do
autor).
Como se pode bem
notar, todo o caminho traçado em Instituições Políticas Brasileiras
conduz o leitor ao inevitável entendimento da dificuldade do brasileiro em
atuar na esfera pública, sendo que, durante toda sua história, foi eficazmente
condicionado a pensar conforme sua visão de mundo privatizada e individualista,
fruto de uma longa tradição de forte presença do núcleo familiar na nossa vida
pública. Nessa perspectiva, o “clã político” ou “clã eleitoral” são as categorias
de agregação social que mais revelam esse comportamento bairrista, desprovido
de qualquer sentimento mais refinado de solidariedade ou de preservação de
valores coletivos que apenas se recrudescem na esfera pública. Ao atuar em um
contexto público, em que se defrontam interesses de toda uma comunidade no seu
mais amplo aspecto, esses clãs naturalmente se voltavam para a preservação de
suas vantagens próprias, evidenciando, destarte, o trato da coisa pública
submetida ao regime de desígnios privado desses microgrupos. Assim nos
esclarece o comentador Ricardo Silva,
Para Oliveira
Vianna, a realidade não percebida por todos os “idealistas utópicos” que
povoaram a história do Brasil independente é que o “espírito de clã” contaminou
os partidos políticos em sua origem. A “solidariedade clânica” foi o verdadeiro
fator organizativo de nossos partidos políticos, no momento de criação dos
partidos de base nacional por exigência da Constituição de 1824.
Simultaneamente à criação dos partidos liberal e conservador, instituiu-se o
sufrágio universal, e com isso reuniram-se as condições para a metamorfose do
clã feudal em clã eleitoral, nos primórdios do Brasil independente (2002, p.
8).
E a solução dada
por Oliveira Vianna para essa incapacidade dos grupos políticos de se
articularem e de intentarem uma saída para as mazelas nacionais pela via da
preservação do público sobre o privado é apenas encontrada quando da existência
de um Estado forte, centralizador, autoritário. Apenas um mecanismo de
centralização de decisões políticas submetidas ao forte império da estrita
obediência à autoridade seria capaz de reunir esses grupos sociais dispersos e
fazer prevalecer o primado do público sobre o privado no cenário nacional[9].
Justificar-se-ia tal modelo autoritário pois em grande medida é compatível com
história política brasileira – de contínua valorização e submissão ao poder
central do Estado –, sendo este o veículo encontrado para a transformação de
uma realidade institucional marcada pela forte presença do descaso com a coisa
pública, pouca coesão social e uma prática parental de exercício de governo.
Esta forma de Estado, que seria transitória – arquétipo teórico denominado por
Wanderley Guilherme dos Santos de “autoritarismo instrumental” – seria o único
caminho a ser traçado para que no Brasil fossem implantados os postulados do
liberalismo político, defendido por Vianna em seus escritos. Antonio Paim,
citando Wanderley G. dos Santos, esclarece essa forma de pensamento assumida
por Oliveira Vianna:
O sistema republicano
[...] não alterou o padrão básico das relações sociais e econômicas. A
sociedade brasileira ainda era basicamente oligárquica, familística e
autoritária. A intervenção do Estado não representava, portanto, uma ameaça
para os "cidadãos", mas sim sua única esperança, se é que havia
alguma, de proteção contra os oligarcas. Qualquer medida de descentralização,
enquanto a sociedade continuasse a ser o que era, deixaria o poder cair nas
mãos dos oligarcas, e a autoridade seria exercida mais para proteger os
interesses privados dos oligarcas, do que para promover o bem público. Em
conseqüência, o liberalismo político conduziria, na realidade, à oligarquização
do sistema e à utilização dos recursos públicos para propósitos privados. O
liberalismo político seria impossível na ausência de uma sociedade liberal e a
edificação de uma sociedade liberal requer um Estado suficientemente forte para
romper os elos da sociedade familística. O autoritarismo seria assim
instrumental para criar as condições sociais que tornariam o liberalismo
político viável. (1982, p. 27-8).
3.
Considerações finais
A temática do
patrimonialismo, extraída de fundamento originário do pensamento político de
Max Weber, no Brasil assumiu inúmeras formas e não se restringiu ao pensamento
de Sergio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro e Oliveira Vianna. Depois desses
autores, hoje considerados clássicos tanto pela importância no estudo original
dos problemas políticos brasileiros quanto pela consolidação de correntes de
pensamento no debate teórico nacional, diversos outros se debruçaram sobre a
análise da formação do Estado Brasileiro, invocando ou combatendo, sobretudo, a
forte presença de um patrimonialismo na gestão da coisa pública em nosso país.
Marya Silvia de
Carvalho Franco, com seu livro “Homens Livres na Ordem Escravocrata”; José
Murilo de Carvalho, em sua tese de doutoramento “A Construção da Ordem: A Elite
Política Imperial”; Fernando Uricochea, em sua obra intitulada “O Minotauro
Imperial”; Antonio Paim com “A Querela do Estatismo”; Simon Schwartzman em “As
Bases do Autoritarismo Brasileiro”; o renomado sociólogo Florestan Fernandes,
com seu “A Revolução Burguesa no Brasil”; Jessé de Souza em “A Modernização
Seletiva: Uma Reinterpretação do Dilema Brasileiro”; todos estes célebres
pensadores dentre vários outros, quer em grande medida, quer de forma
tangencial, estabeleceram em seus trabalhos um diálogo com a tríade Buarque de
Holanda, Faoro e Vianna, seja desenvolvendo as idéias por estes autores inicialmente
abordadas, seja para refutá-los em grande medida[10].
A tradição do
patrimonialismo brasileiro, que, a partir do estudo da natureza social do
brasileiro típico, ou ainda no estudo do funcionamento de nossa instituições
políticas, demonstra como a dicotomia clássica de público e privada em nossa
tradição não apresenta uma separação muito distinta dessas esferas, havendo em
nossa formação histórica e cultural traços que estigmatizam no homem público
nacional a prática não demarcatória de tais âmbitos de atuação.
A herança legada
do patrimonialismo em nossa formação é trazida por toda uma corrente
doutrinária que entende diversas práticas desenvolvidas em nosso Estado – e na
América latina, em geral – são produtos de uma situação histórica adquirida das
antigas estruturas coloniais implantadas na região, sendo posteriormente
reproduzidas ao longo dos tempos, cujas conseqüências se mostram mais evidentes
pela forma de burocracia ineficiente e autoritária assumida por nossas
instituições políticas hodiernamente.
A única
constatação que resta desta tradição se deve a assertiva de que onde o
patrimonialismo impera, naqueles âmbitos institucionais em que o indivíduo age
“privatizando a coisa pública”, não distinguindo a separação necessária entre a
esfera individual e a pertencente a toda uma coletividade, nunca há a
realização em sua completude dos desígnios de ordem coletiva aos quais o Estado
se presta em essência a proteger. Nesses casos, sempre prevalece o sistema de
clientela, muito mais do que na existência de partidos, que propõem valores e
visões do mundo. Nesta ordem conjuntural, a acomodação e a corrupção tornam-se
práticas comuns, não florescendo no seio da sociedade política valores
republicanos, além de repelir definitivamente qualquer resquício de cidadania
que possa subsistir da clivagem sociedade civil e Estado. Não há aí nem esfera
pública, tampouco espaço privado, pois ambos já teriam perdido sua essência,
imiscuídos em um amálgama de difícil reparação e de contínua reprodução de
interesses, os quais, certamente, não são de incumbência de uma sociedade
política institucionalizada na figura do Estado atender.
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[1] Essas formas de dominação, cabe ressaltar,
são denominadas por Weber como sendo “tipos-ideais”, ou seja, um recurso
metodológico que o cientista utiliza toda vez que necessitar de compreender um
fenômeno formado por um conjunto histórico ou uma seqüência de acontecimentos,
os quais não podem ser encontrados na realidade – em seu “estado puro” –, mas
que se situam apenas no plano da abstração teórica (ARON, 1999, p. 465). Nada
mais é do que um recurso científico-metodológico que se vale o pesquisador para
compreender uma realidade ou um fenômeno dado, preservando-se os pressupostos
de neutralidade axiológica e objetividade científica .Trata-se, como afirma
Julien Freund, de uma “ucronia”, i.e., aquilo que não se situa nem se pode
situar em nenhum tempo (2000, p. 57). Com tal fórmula, diz-nos Florestan
Fernandes, visa o estudioso do comportamento humano social, artificialmente,
controlar a obtenção de dados e sua interpretação (1959, p. 96-7). Segundo o
próprio Weber, [...] “obtém-se um tipo ideal mediante a acentuação unilateral
de um ou vários pontos de vista, e mediante o encadeamento de grande
quantidade de fenômenos isoladamente dados, difusos e discretos, que se
podem dar em maior ou menor número ou mesmo faltar por completo, e que se
ordenam segundo os pontos de vista unilateralmente acentuados, a fim de se
formar um quadro homogêneo de pensamento” (1991, p. 106, grifos do
autor).
[2] Weber afirma no decorrer do desenvolvimento
de tal conceito: “Falaremos de Estado patrimonial quando o príncipe organiza
seu poder político sobre áreas extrapatrimoniais e súditos políticos – poder
que não é discricionário nem mantido pela coerção física – exatamente como
exerce seu poder patriarcal” (1999, v. 2, p. 239). E logo em seguida arremata
seu raciocínio com a afirmação: “A maioria de todos os grandes impérios
continentais teve forte caráter patrimonial até o início e mesmo depois dos
tempos modernos” (1999, v. 2, p. 240).
[3] Weber descrever a característica
historicamente vislumbrada do fenômeno da “distribuição das terras senhoriais”,
sendo este o núcleo embrionário da transformação de um patriarcalismo
originário em patrimonialismo puro. Vide Weber (1999, v. 2, p. 233 et seq.).
[4] Sobre a influência do pensamento weberiano
no Brasil, consultar a obra de Vamireh Chacon, “História das Idéias
Sociológicas no Brasil” (1977, p. 117-28).
[5] Tal visão é também compartilhada por Simon
Schwartzman em seu artigo intitulado “A atualidade de Raymundo Faoro” (2003, p.
207).
[6] Posição que é contrária ao pensamento de
inúmeros autores nacionais, dentre os mais importantes, Oliveira Vianna, que
apontam evidentes traços feudais na organização da sociedade brasileira. Faoro
rejeita expressamente essas acepções, tanto da existência do feudalismo em
Portugal quanto no Brasil. Para tal apreensão, vide, em “Os Donos do Poder”, os
capítulos I, parte 3, e IV, parte 6, de seu primeiro tomo.
[7] “Burocrático”, no termo empregado por Faoro,
indica em sua essência não o sistema administrativo típico da dominação
racional-legal, onde se tem competências fixas, baseadas em critérios legais e
impessoais de ordem, mas como estrutura de organização dos “funcionários”
administrativos patrimoniais. Weber e Faoro se referem à preocupação desse
estamento em se valer do cargo “burocrático” como um veículo para a
diferenciação social.
[8] O que destoa em parte da concepção original
de Weber que concebe o patrimonialismo como descentralizado, ante
principalmente a divisão do poder do senhor territorial entre seus súditos
leais e consangüíneos. Nesta visão, o pensamento de Faoro não identificou o
patrimonialismo brasileiro de forma “pura”, como Weber inicialmente idealizou
tal fórmula de pensamento, mas reduziu-lhe a uma forma mista, referente à
centralização que se vislumbra no patriarcalismo, sultanismo ou mesmo no
feudalismo presentes nos tipos-ideais weberianos.
[9] Dois livros que demonstram bem essa passagem
são Vieira (1976) e Queiroz (1975).
[10] Este pensamento corrobora o entendimento de
Rubens Goyatá Campante (2003).
*Mestrando em
Direito do Estado pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de
Brasília (Unb). Mestrando em Ciência Política pelo Instituo de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
SILVEIRA, Daniel Barile da .Patrimonialismo e a formação do Estado brasileiro: uma releitura do pensamento de Sergio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro e Oliveira Vianna. Disponível em: < http://sociologiajur.vilabol.uol.com.br/tadanielsilveira3.htm>. Acesso em: 28 set 2006.