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Desbiologização da Paternidade
João Batista Villela
RESUMO: 
A paternidade em si  mesma  não é um fato da natureza, mas um fato cultural. Embora a coabitação sexual, de que possa resultar gravidez, seja fonte de responsabilidade civil, a paternidade, enquanto tal, só nasce de uma decisão espontânea. Tanto no registro histórico, como no tendencial, a paternidade reside antes no serviço e no amor que na procriação. As  transformações mais recentes por que passou a família, deixando de ser unidade de caráter  econômico, social e religioso para se afirmar fundamentalmente como grupo de afetividade e companheirismo, imprimiram  considerável reforço ao esvaziamento biológico da paternidade. Na  adoção, pelo seu conteúdo eletivo, tem-se a prefigura da paternidade do futuro, que radica essencialmente na idéia de liberdade.

 
 
1- A Paternidade entre a Natureza e a Cultura
Terá sido a precedência histórica da natureza sobre a cultura que fez da paternidade, desde os tempos mais remotos, um conceito primária quando não prevalentemente biológico.
Dominado de poderosa carga instintiva, rendido ante o mistério da geração, haveria o homem primitivo de reconhecer na vida humana que surgia, pequena e contudo promissora, a mais pessoal e desconcertante expressão do determinismo que lhe povoava o mundo. Tal é, sem grandes riscos de erro, a retrovisão que se pode ganhar daquele fundamental instante em que o homem correlacionou o nascimento de uma vida nova com o desempenho anterior da atividade sexual.
E se a história da cultura é, em larga medida,a história da superação dos determinismos, convém não esquecer que é também, talvez de modo mais profundo e mais extenso, a história das técnicas de com eles se compor. A composição se processa em dois níveis: no da matéria, como quando, por exemplo, o homem, ao invés de se abrigar da chuva ou do sol, utiliza-os para fazer crescer as suas sementes, e no nível do espírito, como quando se estabelecem regras sociais e valores sobre fenômenos da casualidade física.
A paternidade ,como conceito, poderia ter-se formado nessa linha de acomodação, que, partindo do fato biológico, então incontrolável, chegava aos rudimentares predicamentos sociais, jurídicos e religiosos, que lhe garantiram um lugar ao sol no incipiente "thesaurus" da cultura.
A origem radicaria, assim em pura base biológica. Note-se, entretanto, que a paternidade, em si mesma, não é um fato da natureza, mas um fato cultural. Aqui, o fato da natureza é dado por uma relação de causalidade material: a fecundação e seus necessários desdobramentos. É bem verdade que esse fato, enquanto tal, não está subtraído à vontade humana, que decide, afinal, de sua ocorrência ou não. Tanto mais evidente se torna assim, de resto, a linha demarcatória entre o que é fato do homem e o que é fato da natureza. O homem tem o poder de pôr em ação mecanismos da natureza de que decorre o nascimento de uma pessoa . Ou abster-se de fazê-lo. E, diante do nascimento da pessoa, tem de novo o poder de comportar-se em relação a ela por modos vários, que vão desde o seu mais radical acolhimento à sua absoluta rejeição. Insista-se, porém: a linha de fenômenos que vai desde a concepção até o nascimento não tem característica propriamente humana, no rigoroso sentido do termo, isto é, não constitui manifestação de liberdade.
2 - Procriação e Paternidade. Categorias Distintas
Se o direito valora a conduta humana e, portanto, se funda na liberdade, haveria que bem extremar aqui os domínios da causalidade material e da autodeterminação, para o fim de se estabelecer uma justa resposta aos movimentos da vontade . É talvez a falta desse procedimento lógico o que explica, pelo menos em parte, o tributo que a sociedade vem apagando a um insidioso equívoco que se abriga na chamada investigação de paternidade.
A coabitação sexual entre o homem e a mulher, sob determinadas circunstâncias, pode dar origem a um novo ser humano, matéria em si de altíssima relevância. Como a gravidez é um fenômeno feminino e ostensivo, a responsabilidade social da mulher pela procriação sempre esteve razoavelmente acautelada. A do homem, cuja participação não deixava vestígios seguros, apenas estaria, caso o associasse à mulher o vínculo de justas núpcias. Do contrário, tudo ficava na dependência de um intrincado sistema de provas e exceções, que tabus morais e religiosos faziam ainda mais idôneo à proteção da impunidade masculina. O mais iníquo ingrediente desse minado campo de provas era a chamada exceptio plurium concumbentium. Ou seja: a exclusão da responsabilidade ao fundamento de ter a mãe coabitado com outros homens no tempo presumível da concepção. A simples possibilidade de o filho provir de outrem criava para todos a exoneração de qualquer responsabilidade. O non liquet importava assim numa espécie de absolvição prévia, geral e indeterminada: no fundo, uma extensão bem cínica do princípio in dubio pro rco, da qual a grande vítima, vê-se logo, era a prostituta. Paradoxalmente, ali onde havia muitos para responder e onde a necessidade econômica e social devia ser mais aguda, não se tinha como alcançar quem pagasse pelo fato.
Foi, entretanto, curiosamente, nos quadros da decadência teórica da exceptio plurium concumbentium que se pôde melhor precisar a natureza das responsabilidades, que se achavam então envolvidas. Uma coisa, com efeito, é a responsabilidade pelo ato da coabitação sexual, de que pode resultar a gravidez. Outra, bem diversa, é a decorrente do estatuto da paternidade.
Nesse particular é altamente significativo o surgimento no direito francês moderno da chamada ação para fins e subsídios 1. Segundo esta construção, nos exatos termos da lei, "todo descendente natural, cuja filiação paterna não esteja legalmente estabelecida, pode reclamar subsídios daquele que manteve relações sexuais com sua mãe durante o período legal da concepção" (Cód. Civ. Fr., art. 342). E se, ao invés de um, forem vários os que mantiveram relações sexuais com a mãe ?
Não há dúvida: todos ou alguns, desde que não excluam a paternidade biológica ou não provem a incontinência sexual da mãe, serão condenados à prestação dos alimentos previstos em lei, encargo, de resto, que se transmite aos herdeiros do devedor e pode ir além da maioridade do requerente. Querem alguns que surge daí, então, uma extravagante possibilidade: diversos pais-varões para uma só pessoa. Situação verdadeiramente desconcertante , se se quiser ver a responsabilidade indenizatória fundada diretamente nos liames biológicos da reprodução ou extrair a apressada inferência de que é o dever alimentar que define a paternidade. Nesta perspectiva se situam os irônicos comentários de MAZEAUD, estando ainda a solução em nível de projeto:
"A jurisprudência tinha criado, em matéria de acidentes, a noção de falta virtual; o projeto quer estabelecer a da paternidade virtual ! Nosso direito conhecia a copropriedade; o projeto pretende estabelecer a copaternidade de fato" 2. Sobre o mesmo tema publicou ERNEST MEZGER o ano passado na Alemanha, seis anos decorridos da promulgação da lei francesa, trabalho cujo título, entre malicioso e fascinado, tirando, quem sabe, para o perplexo, não esconde o impacto da solução: "Das Kind mit den zwei Vätern, eine Erfindung des französischen Kindschaftsrechts von 1972" 3 . ( O filho com dois Pais-Varões, uma descoberta do Direito Francês da Filiação de 1972") .
Exótica que possa parecer à ortodoxia jurídica centrada na verdade biológica, a criação francesa é de elementar compreensão e visa simplesmente a impedir, por uma indevida aplicação da exceptio plurium, que fique ao desamparo o descendente cuja mãe tenha freqüentado sexualmente mais de um homem ao tempo da concepção. A aparente desconexidade da medida resulta de seu enquadramento fora do âmbito da responsabilidade civil, que é a sua "sedes" adequada.
Há entre a investigação de paternidade e a ação para fins de subsídios, como notam DAGOT e SPITERI, "uma profunda diferença". E explicam: "Não se trata aqui de provar a paternidade do réu; trata-se simplesmente de exercitar sua responsabilidade. Mantendo relações com a mãe no momento da concepção , ele assumiu o risco de ser pai. Daí resulta então um certo caráter indenizatório da ação para fins de subsídios. 
É por isso que o art. 342-3 utiliza o termo indenização. Já se criticou essa medida, que, entretanto, se justifica pelo fato de que, na ausência de presunção de paternidade, como na filiação legítima , e na ausência de prova da paternidade, sendo a hipótese a de que vários homens tiveram relações com a mãe no período da concepção, é muito difícil saber quem é verdadeiramente o pai. Convém, pois, vir, por outro caminho em socorro do filho. O tribunal tem, assim, a faculdade de pôr a cargo dos réus uma indenização destinada a assegurar a manutenção e a educação do filho" 4 .
O direito alemão não conhece a possibilidade de dupla paternidade, mas desenvolveu, talvez como nenhum outro, o conceito de uma paternidade exclusivamente patrimonial, ali chamada expressivamente de Zahlvaterschaft ou Giltvaterschaft. Zahlvaterschaft contém em si, agregada à de paternidade, a idéia do verbo zahlen, que significa pagar, e Giltvaterschaft traduz a do verbo gelten, valer, em mesma associação. Portanto: Zahlvaterschaft ou Giltvaterschaft querem dizer uma como que paternidade econômica; uma paternidade só para certos fins ou um estado que vale como paternidade, sem o ser efetivamente . A estes conceitos se opõe a Istvaterschaft, ou seja, a paternidade "tout court": de ist, do verbo essen, ser. Logo: uma paternidade não limitada a tais ou quais fins, mas uma paternidade que simplesmente o é.
Em que pese ao título do citado trabalho de MEZGER, a solução do direito francês na verdade não é nova. FLATTET recorda que certos direitos cantonais, antes que entrasse em vigor no ano 1912 o Código Civil Suíço, de âmbito federal, estabeleciam a responsabilidade solidária de todos os homens que houvessem coabitado com a mãe à época da concepção 5
E HANS FEHR, em alentado estudo sobre a posição jurídica da mulher e dos filhos nos direitos comunais, faz, por outro lado, esta curiosa verificação: enquanto, de uma parte, não foi possível identificar, diretamente, qualquer responsabilidade alimentar por parte da mãe em relação ao filho bastardo, fontes suíças e austríacas constrangiam energicamente o pai, que não era absolutamente considerado sequer seu parente, à obrigação de sustentá-lo. Recorda FEHR que, "segundo os Estatutos de Malans e de Bergün, o pai do bastardo devia contribuir com dois terços e a mãe com um terço para a sua manutenção.
O Código de Obwalden determina que o pai deva educar seus filhos ilegítimos como um outro pai educaria os legítimos".
Tão manifestamente fora dos quadros da verdadeira paternidade a matéria se colocava que, em se tratando de atos delituais, pelo chamado Código de Rheingau reapondia notoriamente o lado da mãe, a qual era parente, e não o do pai, este, em rigor, juridicamente um estranho no direito daquelas fontes: Was ein bastard verbricht, das gelden die magen der mutter und nicht des vaters" 6
Como explicar, há bons séculos passados , essa responsabilidade econômica do pai biológico, expressamente excluído de qualquer vínculo de parentesco com o filho que não descendesse de justas núpcias ? Não estão aí claramente delimitadas a responsabilidade civil pela geração _ resolúvel em prestações de natureza econômica _ e a responsabilidade social, decorrente do status de pai ?
A independência entre a linha jurídica e a biológica em matéria de paternidade deixa-se também surpreender pela abordagem inversa. São inúmeras as situações previstas em lei, nas quais a paternidade é atribuída a quem bem pode não ser o pai biológico ou a quem manifestamente não o é. Recorde-se a presunção de legitimidade da prole nascida de mulher casada, admitida nos arts. 339 e sequintes do Código Civil Brasileiro. Aqui a lei não favorece em nada a verdade biológica.
Quer, antes, o favor da legitimidade, em cujo benefício sacrifica a apuração da primeira. Recorde-se o instituto universal da tutela, que, embora não constituindo propriamente uma espécie de paternidade, participa estruturalmente de seu caráter. E recordem-se, sobretudo, os institutos da adoção e da legitimação adotiva, cuja evolução mais recente, tomamos em seu conjunto, está fortemenrte marcada pelos propósitos de crescente assimilação com a paternidade de origem biológica: progressiva redução da idade mínima para adotar; favorecimento da adoção por casais; redução da idade mínima para ser adotado, a que se liga, em natural desdobramento, a sugestão de se admitir o assentimento pré-natal à adoção 7, completa extinção do parentesco anterior do adotado e sua integral inserção jurídica na nova família, cujos vínculos parentais passa a assumir, tal como ocorre na República Federal da Alemanha, a partir de 1977 8.Tudo isso talvez se pudesse resumir na tendência, historicamente verificável, em se levar às últimas consequências a velha máxima adoptio naturam imitatur .
3 - O Quid da Paternidade
Qual seria, pois, esse quid específico que faz de alguém um pai, independentemente da geração biológica ?
Se se prestar atenta escuta às pulsações mais profundas da longa tradição cultural da humanidade, não será difícil identificar uma persistente intuição que associa a paternidade antes com o serviço que com a procriação. Ou seja: ser pai ou ser mãe não está tanto no fato de gerar quanto na circunstância de amar e servir.
Veja-se a célebre sentença de SALOMÃO. Que fez o sábio magistrado para dirimir o conflito das duas mulheres, que se dizendo, cada uma, ser a mãe, pretendiam a guarda da criança ?
Não recorreu a qualquer critério de natureza biológica. Nada que, sequer de longe, recordasse os sofisticados exames serológicos ou as complexas perícias antropogenéticas, que um juiz tem hoje à disposição. Simplesmente pôs à prova o amor à criança por parte das querelantes. Sua capacidade de renúncia em favor do filho. O dom de si mesmas. Não buscou o lúcido filho de DAVI assentar a verdade biológica., senão , antes surpreender a capacidade afetiva. Ou seja: fundou-se em nada menos do que naquilo que, em linguagem de hoje, se identifica na Alemanha por Kindeswohl e na América do Norte por the best interest of the child
 

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