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Dos Atos Jurídicos Praticados por Menores Púberes e Impúberes

 

Ariana Camata Bastos,

 advogada em São Paulo - capital - e professora

 

Resumo: O presente artigo analisa o sistema de nulidades do Código Civil, no que concerne aos atos jurídicos praticados por menores púberes ou impúberes. Traz noções sobre personalidade e capacidade, discorrendo, sob a ótica jurídica, o fato da aceitação social da validade de muitos negócios jurídicos praticados por incapazes e da impossibilidade real em se obter suas anulações. Busca a solução no Direito Comparado.

 

 

 

1. Introdução

 

                        O assunto que ora se propõe, embora interessante e de alta relevância prática, não tem despertado a atenção de muitos, ou porque o acham por demais simplista, ou porque encará-lo de frente pode levar à conclusão de que uma parte do sistema das nulidades de nosso Código Civil precisa ser reformada.

                       

                        O Código Civil prescreve a nulidade ou anulabilidade da prática de atos jurídicos por menores incapazes. Não há ressalvas legais, tampouco doutrinárias. O vício atingirá todo e qualquer ato.

 

                        Entretanto, é fácil verificar que, todos os dias, esses mesmos menores incapazes são titulares de relações jurídicas sem a devida representação ou assistência. São aquelas relações que envolvem atos corriqueiros, até mesmo inevitáveis, da vida cotidiana. Quem questionaria a falta de capacidade, se um menor se apresentasse diante um balcão de uma padaria para comprar um doce? Exigir-se-ia, para a prática desse contrato de compra e venda, a presença de seu representante ou assistente?

 

                        Com efeito, parece que há uma aceitação por parte da sociedade leiga e até mesmo dos juristas, em se validar tais atos, uma vez que não são discutidos nos fóruns, tampouco na doutrina. O presente trabalho é despretencioso, tendo por finalidade tão-somente chamar a atenção para essa disparidade entre a lei e a realidade.

 

                       

2. Personalidade e capacidade

 

                        A conceituação doutrinária sobre personalidade e capacidade é tema que não enseja grandes debates.

 

                        Personalidade é a aptidão genérica para adquirir direitos e contrair obrigações . A definição é derivada do art. 2º do nosso Código Civil. O início da personalidade civil do homem é seu nascimento com vida, a teor do art. 4º do mesmo diploma legal.

 

                        Uma vez afirmado e aceito que todo homem é titular de direitos e obrigações desde o seu nascimento com vida, a lei adotou critérios para estabelecer em que condições pode o homem exercer pessoalmente a titularidade de uma relação jurídica. Temos então, a divisão dos homens em absolutamente incapazes, relativamente incapazes e capazes.

 

                        O Código Civil, em seu art. 5º, relaciona os absolutamente incapazes, a saber: menores de 16 (dezesseis) anos, loucos de todo o gênero, os surdos-mudos que não puderem exprimir sua vontade; os ausentes, declarados tais por ato do juiz.

 

                        Os relativamente incapazes, elencados no art. 6º do Código Civil são: os maiores de 16 (dezesseis) anos e menores de 21 (vinte e um) anos, os pródigos e os silvícolas.

 

                        Os Códigos Civis Português e Italiano, por exemplo, são menos severos, colocando como termo inicial para a maioridade a idade de 18 (dezoito) anos.

 

                        Com a divisão, teve o legislador a intenção de proteger os incapazes (sejam eles absolutos ou relativos), preservando seus interesses, em virtude que lhes falta a completa maturidade para discernir e praticar os atos de sua melhor conveniência. Essa maturidade completa e capacidade integral para o exercício de atos jurídicos somente é adquirida aos vinte e um anos, segundo o critério objetivo adotado pelo legislador - art. 9º do Código Civil. Afora os casos de emancipação ditados pelo mesmo artigo. O critério objetivo da idade para dividir as capacidades é conveniente, já que seria extremamente desgastante  e inviável a realização de exames médicos ou psicológicos em cada indivíduo para se determinar se este já atingiu o grau de discernimento compatível com a prática pessoal dos atos civis.

                                              

                        Fala-se então em capacidade de gozo e em capacidade de exercício, sendo esta a que habilita o indivíduo  a exercer pessoalmente os atos da vida civil, e aquela a capacidade dos absolutamente ou relativamente incapazes que, embora titulares de direitos e obrigações, não podem exercê-los pessoalmente, necessitando de representação ou assistência.

 

 

3. Da prática de atos jurídicos por menores incapazes: regime legal

 

                        Interessa-nos, no presente estudo, o tema da incapacidade tendo em vista o critério de idade. Por esse critério, os menores incapazes são impúberes (absolutamente incapazes) ou púberes (relativamente incapazes). Já vimos que os incapazes não podem exercer pessoalmente os atos da vida civil. Resta portanto discorrer sobre a forma pela qual exercerão esses atos, pois não se pode negar que, tendo personalidade, são titulares de direitos e obrigação.

 

                        Diz o art. 84 do Código Civil que, a prática de atos jurídicos por menores será feita mediante a representação (pelos pais, tutores ou curadores) em se tratando de incapacidade absoluta; e mediante assistência (pelas pessoas designadas pela lei) se for caso de incapacidade relativa.

 

                        Diante do art. 82, vemos que um dos requisitos para a validade do ato jurídico é a capacidade do agente. Portanto, faltando a capacidade de exercício, o praticante do ato deverá estar devidamente representado ou assistido.

 

                        Isso é assim, porque o ordenamento jurídico  não empresta validade à  vontade do menor, já que lhe falta total, ou parcialmente, o discernimento necessário para contratar de acordo com sua conveniência. Protege-se o próprio menor contra sua falta de maturidade.

 

                        Vedado está aos menores, que exerçam pessoalmente a autonomia privada, através de negócios jurídicos. Para definir autonomia privada, citamos textos de autorizados autores, a seguir:

 

“A  autonomia privada ou liberdade negocial traduz-se no poder reconhecido pela ordem jurídica ao homem, prévia e necessariamente qualificado como sujeito jurídico, de juridicizar a sua actividade (designadamente, a sua actividade económica), realizando livremente negócios jurídicos e determinando os respectivos efeitos.”

 

 

“Com la expressión << autonomia privada >> he designado el poder atribuido por la ley a los individuos de crear nomas jurídicas en determinados campos a ellos reservados.”

 

 

                        Para o saudoso doutrinador italiano Luigi Ferri, o negócio jurídico é fonte de norma jurídica, e a autonomia privada seria, então, poder normativo. O exercício da autonomia privada pressupõe autonomia da vontade. Para o jurista Sílvio Rodrigues , consiste a autonomia da vontade “na prerrogativa conferida aos indivíduos de criarem relações na órbita do direito, desde que se submetam às regras impostas pela lei e que seus fins coincidam com o interesse geral, ou não o contradigam.”

 

                        Pressuposto para que o homem possa praticar atos jurídicos e fazer atuar sua vontade autônoma, necessário que a lei confira efeitos à expressão dessa vontade, o que não ocorre com os incapazes.

 

                        Por essa razão, o legislador encerra a questão eivando de nulidade (absoluta) o ato  jurídico praticado por menor impúbere e de anulabilidade quando a prática ocorrer por menor púbere (Código Civil, arts. 145, I, e 147, I).                                    

 

A doutrina tradicional enxerga no ato nulo um ato insuscetível de ser ratificado, e que não produz efeitos na órbita jurídica. A nulidade seria ainda imprescritível. Já o ato anulável é passível de ratificação e produz efeitos, os quais, mediante provocação das partes, poderão ser anulados, restituindo-se as partes ao status quo ante. Outra diferença seriam os efeitos retroativos da declaração da nulidade (ex tunc), enquanto a declaração da anulabilidade geraria somente efeitos ex nunc.

 

Esse portanto, é o tratamento legal, conferido pelo nosso Código e pouco contestado pelos doutrinadores, a respeito da nulidade ou anulabilidade dos atos praticados pelos menores incapazes.

 

 

4. O cotidiano dos atos jurídicos praticados por incapazes

 

                        A par da solução legal ora declinada, cabe perquirir se ela se adequa ao cotidiano da vida dos incapazes. Simplista a legislação pátria dizendo serem nulos os atos praticados por absolutamente incapazes e anuláveis os praticados por relativamente incapazes. Parece-nos que essa solução não é acolhida pela realidade, necessitando de algumas reavaliações.

 

                        Se pretendêssemos realmente que fossem anulados todos os negócios jurídicos praticados por incapazes estaríamos criando um verdadeiro caos nas relações jurídicas mais simples, e até mesmo pânico em alguns setores de atividades, principalmente o comércio, que têm no menor, não raramente, a outra parte da relação jurídica.

 

                         Quão simples nos parece que um menor possa sozinho, independentemente de representação  ou assistência, tomar um ônibus de circular, ir ao cinema, lanchonetes, sorveterias, adquirir roupas, doces, livros... O cobrador do ônibus (e a própria empresa), bem como o comerciante jamais tiveram a preocupação de exigir que o menor estivesse acompanhado de seu representante para o exercício desses simples atos da vida civil. E se pensasse em exigi-lo, deixaria de vender grande parte de seus produtos. Não se encontram nos fóruns ou tribunais, causas ajuizadas por comerciantes, empresas de transporte, dentre outros, pretendendo anular os atos que praticou com menores.

 

                        Esqueceu-se o legislador de emprestar validade a tais atos? Será que pretendeu mesmo que atos tão simples fossem anulados? A falta de discernimento do menor é tão grave a esse ponto?

 

                        O Código Civil Português, adotou expressamente, em seu artigo 127, um sistema de excepções à incapacidade dos menores, emprestando validade aos atos praticados pelos maiores de dezesseis anos relativos à administração e disposição  de bens adquiridos por seu trabalho, aos negócios jurídicos próprios da vida corrente do menor concernentes às despesas e disposições de pequena importância, e àqueles negócios relativos à profissão, arte ou ofício, autorizados ao menor .

 

                        Assim também poderia ter agido o legislador pátrio, assegurando a validade de pequenos atos praticados pelos menores, necessários à sua vida cotidiana. Ressalte-se porém, que na falta de norma similar, é a própria sociedade que já vem emprestando força a esses negócios jurídicos, permitindo, na prática, que o menor firme simples contratos, sem perquirir acerca de sua capacidade ou sobre o sistema de nulidades vigente.

 

                                              

5. Conclusão

 

                        Pela breve e superficial exposição, podemos concluir que o sistema de nulidades, pelos menos no que concerne aos atos simples e corriqueiros praticados por menores, não encontrou na sociedade uma correta adaptação, faltando-lhe a devida eficácia.

 

                        O professor Luiz Antonio Nunes , define com clareza eficácia da seguinte forma:

 

“Eficácia é, pois, a relação entre a ocorrência concreta, real, fatual no mundo do ser e o que está prescrito pelo norma jurídica (e que está no mundo do “dever-ser”).”

 

 

Mais adiante afirma:

 

“Havendo cumprimento da prestação, fala-se que a norma é eficaz. Porém, havendo descumprimento, ela também o será, porquanto outro aspecto da norma (outra imputação) entra em funcionamento: a sanção.

Logo, eficácia tem a relação com a ocorrência concreta do prescrito pela norma jurídica no duplo aspecto da prestação e sanção.”

 

 

                        A norma jurídica prescreve que os menores incapazes somente poderão exercer os atos da vida civil se estiverem representados ou assistidos. Como sanção, impõe a nulidade ou anulabilidade do ato, conforme se trate de menor impúbere ou púbere. Logo, tal norma será tida como eficaz se for efetivamente cumprida ou, em não o sendo, se for aplicada a correspondente sanção.

 

                        Forçoso concluir que, ante os diversos negócios jurídicos firmados pessoalmente por menores em total desrespeito à norma que impõe a representação ou assistência, tal norma é ineficaz a partir do momento em que não se aplica a respectiva sanção, qual seja a de considerar o ato nulo ou anulável.

 

                        Duas soluções se apresentam: 1º. que a sociedade se mobilizasse, impedindo que menores contratassem pessoalmente ou levando aos fóruns todo e qualquer caso em que estes fossem partes de relações jurídicas sem a presença de seus representantes ou assistentes; 2º. que o legislador, tomando como modelo o direito comparado, acrescentasse exceções à norma jurídica em apreço.

 

                        A primeira solução se demonstra perigosa, pois desestabilizaria o comércio e uma série de outras atividades que têm no menor uma grande expressão, além de coloborar para a insegurança das relações jurídicas simples, impondo sérias dificuldades à vida corrente.

 

                         A segunda solução apresenta-se mais coerente e contribuiria para que a norma, enfim, possa ser tida como eficaz.

 

Por ora, enquanto a legislação pátria não faça expressamente as exceções, a norma em questão deve ser considerada parcialmente ineficaz, tendo em vista que a sociedade tem aceito pacificamente como válida a prática de negócios jurídicos por menores incapazes, desde que se relacionem com sua vida corrente e impliquem em atos de pequena disposição. Isso para a segurança das relações jurídicas, já que seria impossível que o menor estivesse durante todo o tempo acompanhado por seu representante ou assistente.

 

Por sorte que tais casos não façam volume em nosso fóruns pois os juízes, aplicadores da lei, não teriam outra saída a não ser declarar a nulidade (ou anulabidade de tais atos). Nem poderiam invocar os costumes, pois, sem questionar se estes podem ou não revogar a lei, os mesmos somente seria aplicáveis em caso de lacuna da mesma e ainda se não houvesse casos análogos julgados.

 

                        Não seria demais que o legislador repensasse o assunto para adotar uma posição adequada, delimitando com maior clareza qual a margem de liberdade conferida aos menores para agirem em nome próprio. 

 

Disponível em <http://www.trlex.com.br/resenha/ariana/menores.doc>