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DOUTRINA DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
Marco Aurélio Bicalho de Abreu Chagas
O Direito Agrário Brasileiro, tendo como lei básica o Estatuto da Terra,
encontra seu embasamento na função social da propriedade, doutrina que tem sua
gênese na sociologia. Essa doutrina da "função social da propriedade"
não tem outro fim senão o de dar sentido mais amplo ao conceito econômico de
propriedade, encarando-a como uma riqueza que se destina à produção de bens que
satisfaçam as necessidades sociais. Para São Tomás de Aquino o conceito de
propriedade privada é visto em três planos distintos na ordem de valores. Em um
primeiro lugar, o homem: em razão de sua natureza específica (animal racional),
tem um direito natural ao apossamento dos bens materiais. Num segundo,
contempla o problema da apropriação dos bens, qual resulta, em última
instância, no direito de propriedade propriamente dito. Por fim, num terceiro
plano, São Tomás de Aquino permite o condicionamento da propriedade ao momento
histórico de cada povo, desde que não se chegue ao extremo de negá-la. As
encíclicas papais, por sua vez, abordando questões sociais, enfocam o problema
sob o prisma tomista. A autencidade cristã do direito de propriedade privada
está reafirmado nas encíclicas "Rerum Novarum", de Lei XIII, e
"Mater et Magistra", de João XXIII, embora não deixasse de se fazer
menção ao condicionamento representado pelo bom uso da propriedade, como se vê,
também, na "Quadragésimo Ano", de Pio XI. "Ao direito de propriedade
privada sobre os bens esatará intrinsecamente inerente uma função social"
(Mater et Magistra). A essa limitação do direito de propriedade, responde
Francisco Vito com o argumento de que esse princípio "longe de enfraquecer
o instituto da propriedade privada, reforça-o porque um regime em que ele
satisfaz à função social, torna-o cada vez menos criticável em nome do
princípio da justiça social." (Francisco Vito, "A Encíclica Mater et
Magistra e a hodierna questão social.", trad. Brasileira, Edições
Paulinas). Pode-se sintetizar tudo na realização do bem comum, entendido como o
bem da comunidade. Quer isso dizer que o Estado ao Ter como seu objetivo
precípuo o bem comum, jamais deverá sacrificar nenhum dos direitos considerados
fundamentais do ser humano. Para Antônio C. Vivanco, a função social da
propriedade representaria nada mais nada menos que o reconhecimento de todo
titular do domínio, de que por ser um membro da comunidade tem direitos e
obrigações com relação aos demais membros, de maneira que se ele pode chegar a
ser titular do domínio, tem a obrigação de cumprir com o direito dos demais
sujeitos, que consiste em não realizar ato algum que possa impedir ou
obstaculizar o bem de ditos sujeitos, ou seja, da comunidade. Ainda para
Vivanco, em sua obra "Teoria del Derecho Agrário" , o direito à coisa
se manifesta concretamente no poder de usá-la e usufruí-la. O dever que importa
ou comporta a obrigação que se tem com os demais sujeitos se traduz na
necessidade de cuidá-la a fim de que não perca sua capacidade produtiva e que
produza frutos em benefício do titular e, indiretamente, para satisfação das
necessidades dos demais sujeitos da comunidade. Assim, para o agrarista
argentino, o direito do titular implica o poder de usar livremente a coisa, porém
por sua vez supõe o dever de utilizá-la de maneira que não se desnaturalize.
Isso em razão de que sua capacidade produtiva interessa por igual a todos os
sujeitos da comunidade e de que os elementos essenciais para a vida humana,
como a alimentação, provêm de elementos agrários como a terra ou os animais.
Para Paulo Torminn Borges, em seu livro, "Institutos Básicos do Direito
Agrário", a função social da terra é conceito que pode ser visto sob
ângulos diferentes: - "Alguns a consideram pelo prisma dos positivistas,
como aconteceu no México, em 1917". - "Tal concepção põe o direito de
propriedade excessivamente sob o arbítrio do Estado, que pode, inclusive,
chegar ao ponto de devorá-lo." - "Melhor responde aos anseios do
homem a concepção cristã, na linguagem tomista". - "De nossa parte,
revelando convicção, entendemos que a legislação agrária brasileira optou por
esta última diretriz, que está na linha de nossa tradição, toda ela embasada no
cristianismo." Concluindo, assevera Torminn Borges que no direito agrário,
quanto ao imóvel rural, sentimos ser o direito de propriedade a faculdade que a
pessoa tem de possuí-lo como próprio, com o dever correlato de utilizá-lo
conforme o exigir o bem-estar da comunidade. Lembra Washington de Barros
Monteiro que entre os romanos, o exercício do direito de propriedade era
subordinado às exigências do bem comum. Ainda Washington de Barros, dando
notícia histórica do direito de propriedade preleciona que: "Parece que a
propriedade, nos primórdios da civilização, começou por ser coletiva,
transformando-se, porém, paulatinamente, em propriedade individual. Trata-se,
contudo, de ponto obscuro na história do direito e sobre o qual ainda não se
disse a última palavra." A "Declaração dos Povos da América"
aprovada na reunião de 1961, em Punta del Este, de que se originou a Aliança
para o Progresso, consagrou a limitação do direito da propriedade da terra,
defendendo a realização de programas de reforma agrária integral tendente à
efetiva transformação, onde for necessária, das estruturas e dos injustos
sistemas de posse e exploração da terra. O conceito de Duguit que se veio
ampliando com o tempo, é de franca limitação ao direito de propriedade: A
propriedade é protegida pelo direito, mas ela não é um direito, é uma coisa.
Uma realidade econômica e não uma realidade jurídica. (Traté de Droit Const.)
No entender de J. Motta Maia, a subordinação do direito de propriedade à
utilidade pública verifica-se em acelerada progressão por vários pretextos,
seja pela necessidade de ordem social, seja por necessidades militares,
construção de edifícios públicos, para garantir o exercício de certas
profissões e outros. Foi na Declaração dos Direitos do Homem, com a Revolução
Francesa, que surgiu o princípio da desapropriação por utilidade pública,
inserta na Constituição de 1791 e no Código de Napoleão." A Declaração
Universal dos Direitos do Homem, conquista jurídica da vitória das potências
democráticas contra os países de regime autoritário, nazista ou fascista,
aprovada a 10 de dezembro de 1948, por iniciativa da ONU, estabelece em seu
artigo XVII: 1 - Toda a pessoa tem direito à propriedade, individual e
coletivamente. 2 - Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade. A
desapropriação por interesse social resulta, é bem de ver, do conceito de
função social da propriedade, inserta em constituições modernas, depois da
segunda guerra mundial, a mais assinalada delas, a Constituição de Weimar
(Alemanha) de 1.919. Essa função social da propriedade já fora assinalada por
Augusto Comte, antes mesmo dos juristas franceses que melhor sustentaram essa
teoria, ao condenar os abusos do sistema capitalista de propriedade e ao mesmo
tempo as doutrinas socialistas consideradas ppor ele como utopias ou
extravagâncias." (Augusto Comte in "Systeme de Politique
Positive" 1851/1854 - Paris). A função social da terra foi admiravelmente
definida por Leon Duguit, ao sustentar que a propriedade não é um direito mas
uma função social. O proprietário ou possuidor da riqueza é vinculado a uma
função ou dever social. Enquanto ele, detentor da propriedade, cumpre essa
missão, seus atos devem ser protegidos. Não o cumprindo ou cumprindo mal ou de
forma imperfeita; se não a cultiva ou deixa que sua propriedade se arruine,
torna legítima a intervenção do poder público para compeli-lo ao cumprimento de
sua função social de proprietário, consiste em assegurar a utilização da
riqueza conforme o seu destino. (in "Las Transformaciones generales del Derecho Privado desde el
Condigo de Napoleón", trad. Castelhana, Edit, Francisco Beltrán,
Buenos Aires). "...a função social da terra comporta duas concepções
opostas sob a invocação do mesm objetivo: a concepção democrática que defende a
reforma agrária pelos meios pacíficos; e a concepção marxista ou
marxista-leninista que, em nome do mesmo princípio, propugna pela expropriação
pura e simples. Sob tal ponto de vista, vale registrar que as diversas
concepções ditam igual número de soluções para a posse da terra: a solução
democrática, ou a mais acolhida para os países ocidentais, que considera a
função social da propriedade privada, conquanto sujeita à limitações que
estabelece com o objetivo de preservar o direito de propriedade, em oposição às
concepções socialistas; a solução marxista que considera a terra propriedade do
Estado, e que inspirou a reforma russa e a do Código Agrário da China, em 1950,
chamada marxista-liberal, porque assegura a propriedade da terra pelos
camponeses. Parece ser esta também a solução adotada pela Iugoslávia. A reforma
egípcia é um meio termo entre as duas concepções, predominando nesta, certas
concessões ao direitoi individual."
Do exposto, conclui-se que a doutrina da função social da propriedade da
terra, motivadora do "Estatuto da Terra" inspirou-se, basicamente, na
concepção tomista (doutrina de São Tomás de Aquino), nitidamente democrática,
visando o bem comum, sem sacrifício dos direitos fundamentais do homem.