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Contrato:
estrutura milenar de fundação do direito privado
Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka
procuradora federal em São Paulo (SP),
doutora em Direito pela USP, professora doutora de Direito Civil da USP,
diretora da Região Sudeste do Instituto Brasileiro de Direito de Família
(IBDFam)
A segunda metade do século XX, principalmente, foi o tempo
em que mais se falou acerca de uma eventual decadência do contrato, tido sempre
como um dos fundamentais pilares de sustentação do direito privado e da
autonomia da vontade privada.
Sob
o vaticínio da crise das instituições, a crise do contrato igualmente se
desenhou e exprimiu-se debaixo da inegável limitação da autonomia privada,
mormente em face da limitação à liberdade dos atores ou partícipes contratuais,
no que respeita à outrora livre fixação do conteúdo das cláusulas de um
contrato.
Uma
ingerência cada vez mais presente, por parte do Estado, na estruturação desse
conteúdo contratual, tendo em vista a salvaguarda de interesses sociais mais
significativos que a mera intenção e simples pretensão dos contratantes,
constituiu-se, também, em forte razão para a crescente onda de descrédito que
pretendeu tomar conta do destino do contrato enquanto tradicional e clássico
instituto de direito privado.
Confundindo-se,
muitas vezes, liberdade de contratar com liberdade contratual, o
diagnóstico foi sempre muito pessimista, a respeito da sobrevida institucional
do contrato. Mas, como o "sonho de John Lenon", o contrato não
morreu. Nem declinou, nem encolheu, nem perdeu espaço, nem poder.
Rui
de Alarcão (1) escreveu, e com toda a razão, que tal pessimismo foi
claramente desmentido, a significar que o alarde foi exagerado e que a
pós-modernidade prescreve a necessidade de novos modelos de realização do
direito, estando entre eles, certamente, os novos modelos contratuais que
todos os dias se multiplicam, indicando uma fertilidade inesgotável desses
paradigmas e o seu verdadeiro e sempre renovado papel de organizador e
auto-regulamentador dos interesses privados.
Ora
mais publicizado, ora mais socializado, ora mais poroso à intervenção estatal,
ora mais limitado quanto ao seu conteúdo específico, ora mais funcionalizado,
não importa. Todas essas faces são as faces do contrato que se transmuda e
evolui sempre, como a própria transmudação e evolução da pessoa humana e das
relações que estabelece com os demais. A dinâmica própria da vida dos homens e
a realidade jurídica subjacente conseguem explicar e justificar essa
mobilidade, traçando-a naturalmente, conforme convém, e imprimindo o devido
grau de certeza acerca da necessidade e urgência desta releitura contratual. Construção
e crítica se alternaram, [desde o início do anterior século], produzindo
um movimento de edificação de uma teoria [geral do direito privado] tão
sólida quanto volátil. (2)
Esse
movimento é absolutamente saudável, rejuvenescedor e revigorante para as
instituições privadas, mesmo porque, dizendo respeito a relações de natureza
intersubjetiva, quer dizer, dos sujeitos entre si, essas instituições se
renovam com o próprio uso, e o seu eventual desuso é que pode acarretar sua
morte, por inércia. (3)
O
contrato não caiu em desuso nunca e, por isso, permanece vivo; sua força revela
sua indispensabilidade no trato das relações jurídicas e da mantença da
segurança.
Mudam
os fatos, mudam os homens, muda a realidade social, altera-se, por força da
conseqüência, a arquitetura jurídica subjacente. Mas o contrato é sempre o
contrato, afinal. Sob o paradigma simplesmente individualista da burguesia
revolucionária francesa, ou sob o paradigma de consagração dos princípios
contratuais como princípios próprios da ordem natural, ou sob o paradigma
meramente dogmático de conformação do direito com a lei, o contrato muda de
feição e atende aos interesses jurídicos dos contratantes de cada época. Até
que se mostre, a cada época, como insustentável ou deficiente, quando então ele
se remoldura e busca sua readequação, para prosseguir como o que sempre
fundamentalmente foi: um instrumento essencial da organização social.
O
contrato, tal como houvera sido, antes, concebido no Código Francês de 1804,
conferia poder absoluto à vontade individual e à liberdade contratual. Tal
poder podia fazer surgir todos os direitos atribuíveis ao sujeito emissor da
vontade, independentemente da preocupação social gerada a indagar se estaria,
ou não, ferindo o interesse jurídico dos demais. Os tempos eram os da busca
compulsiva da certeza científica, o que deu azo à torrente positivista
esvaziada de conteúdo axiológico e da idéia mais geral e abstrata de justiça.
Não
havia como prosperar indefinidamente, uma visão assim fanática e tão apertada
em seus próprios limites. Por isso, opôs-se o tempo de revisão do velho espírito
revolucionário, dentro dos melhores limites da democracia e da justiça, dos
rumores de superação dos ideais napoleônicos, para enfrentar a substituição de
normas simplesmente supletórias por normas superiormente imperativas, na
regulação dos contratos, de modo a se restringir a liberdade contratual (não a
liberdade de contratar), pela adição de normas de ordem pública.
Limitando-se a liberdade contratual, buscou-se impedir a opressão do fraco pelo
forte, do tolo pelo esperto, do pobre pelo rico.
A
intervenção legislativa do Estado assim levada a cabo fez florescer um tempo
novo, onde os malefícios do liberalismo jurídico foram mitigados pela proteção
social que se estendeu ao economicamente mais fraco. As formas contratuais nas
quais os direitos competiam todos a uma só das partes e as obrigações só à
outra parte, foram repelidas severamente pelo que se convencionou chamar dirigismo
contratual. (4)
Enfim,
o que se deu neste interregno de passagem, desde a vitória burguesa até o
paradigma da pós-modernidade, foi a sujeição da vontade dos contratantes ao
interesse público, como se por atuação de um verdadeiro freio que moderasse a
liberdade contratual, tudo em nome do interesse coletivo e em atenção às
exigências do bem comum. O modelo atual pede e espera uma abertura maior do
sistema outrora tão fechado a valorações externas e, para tanto, procura
injetar-se de bases principiológicas novas ou, no máximo, renovadas.
Segundo
o meu sentir, mais importa, hoje, identificar e reconhecer os princípios que
regem a conformação contratual atual, que continuar em debate acerca da
presença ou da ausência dos novos tipos na composição positiva do direito
atual, mesmo porque o fato de estarem consagrados, ou não, pelo beneplácito do
legislador contemporâneo, em sede codicista, não parece ser exatamente o viés
de maior importância.
O
novo Código Civil acolheu, em acréscimo ao modelo novecentista de Código Civil,
os mesmos modelos contratuais até aqui atípicos, que já eram previsíveis
desde a década de 70, quando o trabalho da Comissão nomeada pelo Governo
Federal, em 1969, sob a presidência de Sua Excelência o Professor Miguel Reale,
ganhou o status de Projeto de Lei (Projeto 634/75), quais sejam, o
contrato de transporte, o contrato de comissão, o contrato de agência e
distribuição, o contrato de corretagem, além do contrato preliminar e do
contrato estimatório. Nada de novo ou surpreendente, enfim. Nada que a
atipicidade contratual já não nos tivesse desenhado, à exaustão.
Nesse
passo, levanto pedido de licença para registrar, desde logo, a inconveniência e
o desacerto de se prosseguir, doutrinaria e dogmaticamente, com aquela posição
que sempre deu, como sinônimas as expressões inominado e atípico.
(5) Sob nenhuma hipótese desconsidero tal crítica, eis que a atipicidade de um
contrato não se traduz pelo fato de ter ele, ou não, um nomem juris, mas
sim pelo fato de não estar devidamente regulamentado em lei.
Reconhece-se
com freqüência cada vez mais acentuada que contratos há que têm nome e nem por
isso são nominados-típicos já que, para que assim fossem considerados,
estariam a exigir a presença de um regramento legislativo específico. Fico com
a melhor e dominante doutrina para admitir que é preferível se referir, nestes
casos, a contratos típicos e a contratos atípicos, em lugar de nominados
e inominados.
Assim,
é contrato típico aquele que a lei regulamenta, estabelecendo regras
específicas de tratamento e lhe concedendo um nomem juris. Aliás, penso
que a denominação decorre da regulamentação, e não vice-versa, como poderia
parecer se o adjetivo preferido fosse nominado.
A
seu turno, portanto, contrato atípico é aquele não disciplinado pelo
ordenamento jurídico, embora lícito, pelo fato de restar sujeito às normas
gerais do contrato e pelo fato de não contrariar a lei, nem os bons costumes,
nem os princípios gerais de direito. Pouco importa se tem ou não um nome,
porque este não é a característica da sua essência conceitual; seu traço característico
próprio é o fato de não estar sujeito a uma disciplina própria.
Isso
considerado, ainda que com a brevidade da premência do tempo, retomo o que
mencionava antes, acerca de ter o novo Código Civil acolhido em seu bojo, e
tipificado, portanto, modelos contratuais já em constância tradicional e antiga
de uso, no mundo do direito, quais sejam e como já referido, o contrato de
comissão, o contrato de transporte, o contrato de agência e distribuição, o
contrato de corretagem.
De
fora da nova Lei Civil permaneceram tipos mais contemporâneos, é certo, mas nem
por isso exatamente novos, como o contrato de leasing e o contrato de
franquia.
O
que o novo Código mesmo perdeu, como feliz oportunidade a ser considerada nesta
ambiência mais definida dos modelos contratuais – como bem esclarece Junqueira
de Azevedo – foi a oportunidade de estabelecer regras específicas para as
modalidades coligadas de contratos, tão em evidência nos dias atuais, e
que absolutamente não se confundem com os contratos mistos.
Se
os contratos mistos são aqueles que resultam da combinação de elementos
de diferentes contratos, formando uma espécie contratual não esquematizada em
lei e se desta combinação de elementos de diferentes contratos, resulta
uma unicidade que é o que, afinal, claramente os caracteriza, não há
razão para se confundir os contratos mistos – assim definidos – com os contratos
coligados, uma vez que, nestes, não se combinam elementos de vários
contratos, simplesmente, mas o que se dá é a combinação de contratos
completos. Por isso, nos contratos coligados há uma pluralidade de
contratos, e a combinação deles não resulta, como nos contratos mistos, numa
unicidade.
Contudo,
e como adverte Orlando Gomes, o mecanismo da coligação muito se assemelha ao do
contrato misto, e, por isso mesmo, teria sido oportuno que o novo Código
houvesse traçado as regras próprias de tratamento e tutela de tais contratos,
impedindo a repetição da confusão nefasta entre eles e os contratos mistos.
Contrato
coligado assim estampado, e segundo registra Maria Helena Diniz (6), é,
então, o que apresenta celebração conjunta de duas ou mais relações
contratuais, formando nova espécie de contrato não contemplado em lei. Na
coligação, as figuras contratuais unir-se-ão em torno de relação negocial
própria, sem perderem, contudo, sua autonomia, visto que se regem pelas normas
alusivas ao seu tipo.
Por
isso, são os seguintes os elementos constitutivos fundamentais dos contratos
coligados: a) a celebração conjunta de dois ou mais contratos; b) a manutenção
da autonomia de cada uma das modalidades que integra a modalidade nova; c) a
dependência recíproca ou apenas unilateral dos contratos amalgamados; d) a
ausência de unicidade entre os contratos jungidos; e) a sua regência jurídica
pelas normas típicas alusivas a cada um dos contratos que se coligam.
Tive
ocasião de iniciar um de meus estudos na área contratual, e sobre exatamente os
contratos coligados, dizendo que ‘sempre se mostrou confusa ou vacilante a
doutrina, no sentido de bem situar no complexo quadro classificatório dos
contratos, aqueles denominados simples e aqueles denominados mistos, aqueles
denominados típicos e aqueles denominados atípicos e, por fim, aqueles
denominados coligados, diferentes dos mistos, mas aparentados com os
múltiplos’. Em conclusão, pautei minhas reflexões sobre o benefício que haveria
se a normativa contratual especificasse bem essa composição de tipos
contratuais inteiros que se amalgamam, mas cuja regência se daria tipo a tipo,
considerando a disfunção havida, em cada um dos contratos de per si.
Bem,
o Código de 2002 não abriu espaço para essa regulamentação.
De
qualquer forma, tudo quanto mais se coloca em pauta de discussão, nesse
encontro de hoje, e segundo a seleção de assuntos que fiz, por julgar mais
convenientes à alta consideração de vossas excelências, se referirá, daqui por
diante, aos aspectos mais fundantes de toda a estrutura principiológica dos
contratos, na nova visão que lhes determina o Código Civil de Miguel Reale.
Junqueira
de Azevedo, em famosa palestra que proferiu no Seminário "O novo Código
Civil – o que muda na vida do cidadão", em 04 de junho deste ano de 2002,
junto à Ouvidoria Parlamentar da Câmara dos Deputados, em Brasília, reconhece
outros princípios contratuais, na legislação nova, que não estiveram
explicitamente considerados pelo legislador do século passado, entre eles e
principalmente, o princípio da boa-fé objetiva e o princípio da
função social do contrato. Ele refere que esta nova organização
principiológica da Lei de 2002 não exclui os princípios clássicos do direito
contratual, quer dizer, o princípio da liberdade de contratar, o princípio
segundo o qual o contrato faz lei entre as partes (pacta sunt
servanda) (7) e o princípio da relatividade dos efeitos
contratuais (res inter alios acta allis nec nocet prodest nec) (8).
Ao contrário, a nova tábua de princípios convive, completa e remoça a tábua
tradicional, sem sufocá-la ou excluí-la. Apenas convivem. O novo agrupamento
principiológico revela, enfim, a feição contemporânea do contrato e seu traço
de adaptação e coerência com a pessoa mais ética desta pós-modernidade, centro
de todo o interesse epistemológico do direito atual.
O
contrato levado a efeito entre os atores contratuais contemporâneos, pois,
passa a ser um contrato que exige mais do comprometimento ético e político de
cada um desses partícipes, de modo a expandir projeção para muito além das
fronteiras do mero sinalagma.
Ora,
acerca desse novo contrato, então – instituto eternamente presente na
triangulação básica do Direito Civil, ao lado da propriedade e da família –
seria desejável referir, prioritariamente, às denominadas cláusulas gerais, que
constituem uma técnica legislativa característica da segunda metade deste
século, época na qual o modo de legislar casuisticamente, tão caro ao movimento
codificatório do século passado – que queria a lei clara, uniforme e precisa
[...] – foi radicalmente transformado, por forma a assumir a lei
características de concreção e individualidade que, até então, eram peculiares
aos negócios privados. (9)
‘A
mais célebre das cláusulas gerais é exatamente a da boa-fé objetiva nos
contratos. Mesmo levando-se em consideração o extenso rol de vantagens e de
desvantagens que a presença de cláusulas gerais pode gerar num sistema de
direito, provavelmente a cláusula da boa-fé objetiva, nos contratos, seja mais
útil que deficiente, uma vez que, por boa-fé, tout court, se entende que
é um fato (que é psicológico) e uma virtude (que é moral)’.
‘Por
força desta simbiose – fato e virtude – a boa fé, numa visualização muito mais
subjetiva, se apresenta como a conformidade dos atos e das palavras com a
vida interior, ao mesmo tempo que se revela como o amor ou o respeito à
verdade. Contudo, observe-se, através da formidável lição de André
Comte-Sponville, que a boa-fé não pode valer como certeza, sequer como verdade,
já que ela exclui a mentira, não o erro’. (10)
O
homem de boa-fé tanto diz o que acredita, mesmo que esteja enganado, como
acredita no que diz. É por isso que a boa-fé é uma fé, no duplo sentido do
termo. Vale dizer, é uma crença ao mesmo tempo que é uma fidelidade. É crença
fiel, e fidelidade no que se crê. É também o que se chama de sinceridade, ou
veracidade, ou franqueza, é o contrário da mentira, da hipocrisia, da
duplicidade, em suma, de todas as formas, privadas ou públicas, da má-fé. (11)
‘Esta
é a interessante visão da boa-fé pela sua angulação subjetiva; contudo,
enquanto princípio informador da validade e eficácia contratual, a
principiologia deve orientar-se pelo viés objetivo do conceito de
boa-fé, pois visa garantir a estabilidade e a segurança dos negócios jurídicos,
tutelando a justa expectativa do contraente que acredita e espera que a outra
parte aja em conformidade com o avençado, cumprindo as obrigações assumidas.
Trata-se de um parâmetro de caráter genérico, objetivo, em consonância com as
tendências do direito contratual contemporâneo, e que significa bem mais que
simplesmente a alegação da ausência de má-fé, ou da ausência da intenção de
prejudicar, mas que significa, antes, uma verdadeira ostentação de lealdade
contratual, comportamento comum ao homem médio, o padrão jurídico standard’.
‘Em
todas as fases contratuais deve estar presente o princípio vigilante do
aperfeiçoamento do contrato, não apenas em seu patamar de existência, senão
também em seus planos de validade e de eficácia. Quer dizer: a boa-fé deve se
consagrar nas negociações que antecedem a conclusão do negócio, na sua
execução, na produção continuada de seus efeitos, na sua conclusão e na sua
interpretação. Deve prolongar-se até mesmo para depois de concluído o negócio
contratual, se necessário’.
Trata-se,
portanto, da boa-fé objetiva entranhada no comportamento dos contratantes,
capaz de exigir, deles, uma postura que sobrepassa a singela idéia de ser o
contrato apenas uma auto-regulamentação de interesses contrapostos, um
instrumento de composição de interesses privados antagônicos. O comportamento
delineado pelo atributo da boa-fé objetiva é um comportamento tal que faz
transcender a noção de colaboração entre os que contratam, antes de mais nada.
E que os faz, por isso, mais leais, reciprocamente, mais informados, mais
cuidadosos e mais solidários na persecução da finalidade contratual comum.
‘Da
consagração da boa-fé objetiva, nas relações contratuais – como pretendi
demonsntrar – decorrem principalmente os deveres de informação, de
colaboração e de cuidado, somatória que realiza a insofismável
verdade que, em sede contratual, se lida com algo bem maior que o simples
sinalagma, mas se lida com pressupostos imprescindíveis e socialmente
recomendáveis, como a fidelidade, a honestidade, a lealdade,
o zelo e a colaboração. Enfim, está presente, também na ambiência
contratual, o sentido ético, a tendência socializante e a garantia de dignidade
que são, por assim dizer, as marcas ou os marcos deste direito que perpassando
os séculos, se apresenta renovado, aos primórdios do milênio novo.’ (12)
O
art. 422 do novo Código estampa, precisamente, esse novo princípio, ao dizer
que os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato,
como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé. Mas estará
seguramente melhor referido, o aludido princípio, se for aprovada a proposta de
alteração do novo Código Civil, de autoria do Deputado Ricardo Fiúza, o próprio
relator do Código em sua fase final de tramitação, a qual, por meio do Projeto
6960/2002 (no momento aguardando parecer, na Câmara), sugere que o mencionado
art. 422 passe a ter a seguinte redação: Os contratantes são obrigados a
guardar, assim nas negociações preliminares e conclusão do contrato, como em
sua execução e fase pós-contratual, os princípios de probidade e boa-fé e tudo
mais que resulte da natureza do contrato, da lei, dos usos e das exigências da
razão e da equidade.
A
justificativa textual, apresentada no Projeto 6960/2002, menciona que a
necessidade de se imprimir ao art. 422 esta nova redação, se dá pelo fato de a
atual redação apresentar, conforme aponta o Desembargador JONES FIGUEIREDO
ALVES, insuficiências e deficiências, na questão objetiva da boa-fé nos
contratos. As principais insuficiências convergem às limitações fixadas
(período da conclusão do contrato até a sua execução), não valorando a necessidade
de aplicações da boa-fé às fases pré-contratual e pós-contratual, com a devida
extensão do regramento. (13)
Esta
modificação de redação, ampliando significativamente os horizontes da regra da
boa-fé objetiva nos contratos, é resultado, enfim, de um grande incômodo
sentido pela comunidade jurídica brasileira, ao tempo da promulgação do Código,
no que dizia respeito ao fato de não estar o dispositivo em comento, conforme a
sua redação original, conectado com os momentos anteriores à formação do
contrato – a fase pré-contratual – e nem mesmo os momentos posteriores à sua
execução – a fase pós-contratual. Em ambas as fases deve estar presente,
igualmente, o comportamento qualificado pela lealdade ou honestidade,
considerando-se os interesses alheios, por força da celebração futura e
execução posterior de um negócio jurídico.
Códigos
alienígenas já consagram tais posturas mais ampliadas, como por exemplo, o
Código Italiano que prescreve o dever daquele pré-contratante que perdendo o
interesse no prosseguimento das tratativas preambulares e não mais desejando
concluir o negócio, deva comunicar esta nova situação ao seu co-adjuvante
pré-contratual, exatamente para liberá-lo do engessamento que é produzido pela
obrigatoriedade da proposta negocial, permitindo que possa, ele, iniciar nova
negociação conforme bem entenda, com o menor prejuízo possível pela
interrupção.
Da
mesma maneira, a exigência de comportamento coerente com a boa-fé objetiva deve
estar presente, também, nas hipóteses em que o contrato já se encontre
terminado, pelo eventual cumprimento das obrigações dele resultantes. Haverá
hipóteses em que tal conduta assim pautada deverá obrigatoriamente estar
presente, sempre sob a perspectiva de minoração de prejuízos e incômodos ao
outro contratante. A esse respeito, Junqueira de Azevedo, naquela palestra na
Ouvidoria Parlamentar, já antes referida, mencionou o seguinte exemplo: na
Alemanha, uma pessoa vendeu um terreno e disse ao comprador que, de lá, ele
poderia ver o vale; assim, a situação topográfica do terreno se constituiria em
uma vantagem do imóvel. Para justificar tal vantagem, o vendedor disse que o
imóvel em frente a seu terreno, do outro lado da rua, não poderia receber
edificações elevadas, pois haveria determinado limite para a construção. A
pessoa comprou o terreno e construiu uma casa, que, segundo a jurisprudência
alemã, valia seis vezes o valor do terreno. O comprador estava muito satisfeito
com essa situação, até que o mesmo vendedor comprou o terreno em frente, foi à
Prefeitura, obteve licença para a mudança do projeto de zoneamento — de acordo
com o nome que utilizamos — e construiu naquele local um edifício alto. Havia
acabado a transação de compra e venda, caso em que, muitas vezes, o comprador
nunca mais vê o vendedor. Porém, depois de terminado o contrato, ou seja,
depois que vendeu, e o outro pagou, o vendedor comprou o imóvel em frente e,
ele mesmo, prejudicou o antigo comprador. O fato caracteriza evidente falta de
boa-fé.
Um
exemplo assim – fato verdadeiro ocorrido na Alemanha, mas que certamente pode
ocorrer, e ocorre, em nosso país, e todo momento – estava mesmo a revelar a
urgência de se alterar o contexto do art. 422 do novo Código. Deve-se aguardar,
portanto, a aprovação da nova redação, conforme o Projeto de Lei mencionado, de
nº 6960/2002. A regra, enfim, que corresponda, no colo positivo da lei, ao
princípio da boa-fé objetiva não deve ser tida simplesmente como uma fonte de
interpretação do contrato, mas deve ser tida, isso sim, pois é o que ela é, uma
fonte de preenchimento de lacunas de cláusulas contratuais. Nem sempre é
possível dizer, nas cláusulas dos contratos, toda a extensão das pretensões ali
regulamentadas pelos contratantes. Aliás, pretender fazê-lo seria utópico, pois
que se dá uma evidente impossibilidade natural e até física de se intentar
esgotar as possibilidades, pela projeção já prevista em cláusulas. Ninguém pode
fazê-lo. Mas a boa-fé objetiva, enquanto princípio fundador do direito
contratual da atualidade, pode preencher a omissão. Provavelmente a nova
redação sugerida pode conferir ao art. 422 um tal e desejável alcance.
Com
relação ao princípio da função social do contrato, finalmente, encanta-me
sempre mencioná-lo, assim como sempre me encanta pensar a função social da
propriedade.
Este
princípio vem consagrado – desde 1975, ano em que o Projeto 634 foi encaminhado
à Presidência da República, para ser apreciado como o novo Código Civil
Brasileiro – no atual art. 421 do novo Código. Em que pese o seu alto teor
axiológico, e a alegria por verificar o legislador brasileiro reconhecendo a
nova conotação social das relações privadas, é inegável, conforme apontam, com
precisão, Junqueira de Azevedo e Álvaro Villaça Azevedo, que o dispositivo tem importantes
defeitos que analisaremos a seguir, e que poderão igualmente ser corrigidos se
a sugestão de alteração contida no Projeto 6960/2002 for acolhida e aprovada,
passando a ser a nova normativa brasileira acerca desse princípio agora sob
exame, o da função social do contrato.
Mas
antes, e apenas para não perder a oportunidade de tecer algumas considerações
de caráter mais geral sobre essa limitação de ordem social imposta à esfera
contratual, seria talvez útil considerar que a profunda repercussão social que
o fenômeno da funcionalidade condicionadora – e, por isso, limitadora – do uso
da propriedade foi que levou os pensadores e cientistas do direito a
compreender – e Duguit já havia feito essa previsão bem antes – que o atributo
da função social não se encontra afeto apenas à propriedade, mas senão também
ao contrato.
Orlando
Gomes, o saudoso jurista de vanguarda, havia dito, logo nas primeiras
considerações de seu clássico Transformações gerais do Direito das
Obrigações, que orienta-se modernamente o Direito das Obrigações no
sentido de realizar melhor equilíbrio social, imbuídos seus preceitos não
somente da preocupação moral de impedir a exploração do fraco pelo forte, senão
também, de sobrepor o interesse coletivo, em que se inclui a harmonia social. Para
tanto, ele ponderava que se tratava, então, de submeter a ambiência contratual
a um regime no qual a autonomia da vontade [estivesse] severamente
restringida, o que acarretaria, seguramente – e sempre conforme a previsão
de Orlando Gomes – enorme restrição de ocorrência de injúria contratual,
a ponto de cercá-la de modo provavelmente absoluto.
A
limitação contratual derivada da funcionalidade social se instalaria no âmago
do conteúdo contratual – e não exatamente, como é o meu sentir, no prenúncio da
liberdade de contratar, domínio ainda perene da autonomia privada – de sorte a
restringir a ingerência da vontade dos contratantes em áreas de salvaguarda
social, de alcance inegavelmente mais dilatado.
Para
compreender esse assunto, conviria apresentar a importante distinção entre dois
aspectos da liberdade individual nos contratos, ainda hoje confundidos,
inclusive pelo legislador brasileiro de 2002, conforme procurarei demonstrar,
na seqüência. São dois lados de uma mesma moeda, por assim dizer, mas cada qual
deles deve ser considerado de per si, em prol da verdadeira dimensão
contratual, hoje. Refiro-me à distinção absoluta entre o que se convenciona
denominar liberdade de contratar e liberdade contratual.
A
liberdade de contratar ainda é aquela mesma liberdade facultada a todas
as pessoas de realizarem suas avenças, sem qualquer consideração sobre eventual
restrição de conteúdo do contrato em foco, limitação essa que seja decorrente
de uma determinada norma de ordem pública. Em outras palavras, a liberdade
de contratar revela, exclusivamente, a liberdade que cada um tem de
realizar contratos, ou de não os realizar, de acordo com a sua exclusiva
vontade e necessidade. Por isso, é naturalmente ilimitada, uma tal liberdade.
Mas,
diferentemente, põe-se a liberdade contratual, a qual, no dizer de
Álvaro Villaça Azevedo, é considerada como a possibilidade de livre disposição
de interesses, pelas partes, no negócio. (14) Enfoca o conteúdo, ele mesmo,
dos contratos, quer dizer, a sua consistência interna, traduzida pelas
cláusulas que compõem o negócio. Este é o aspecto mais crítico da formação do
contrato, uma vez que esta liberdade pode vir limitada por normas de ordem
pública que digam qual o percurso cogente de determinadas cláusulas
contratuais. Por isso, a liberdade há de condicionar-se emoldurando-se na
lei, para ser liberdade condicionada, não ser liberdade-escravidão, instrumento
dos que atuam de má-fé, em detrimento da própria sociedade, como mencionou,
bem antes, Álvaro Villaça Azevedo.
Essa
idéia dos limites impostos à liberdade contratual resulta do próprio fenômeno
da publicização do Direito Privado, por meio, então, da interferência estatal
nas relações havidas entre particulares, em atenção às exigências do bem comum
e do interesse coletivo, num último passo. Não é difícil, portanto e como se
vê, conceber que também o contrato, assim como a propriedade, possui uma função
social que lhe é inerente, que o limita essencialmente, e que não pode, de modo
nenhum, deixar de ser observada.
A
função social – então, e enquanto princípio contratual – veio instalada, no
bojo da novel legislação civil, em seu art. 421 que prescreve, em sua atual e
original redação que a liberdade de contratar será exercida em razão e nos
limites da função social do contrato. É fácil reconhecer, talvez, onde se
assentam os dois enormes problemas desse dispositivo que precisa mesmo ser
urgentemente modificado, para alcançar a perfeição de redação que permita se
revela, em sua total consagração o referido princípio da função social.
Vejamos,
então, e para finalizar:
Bem
adverte Junqueira de Azevedo que a função social do contrato é um limite
para a liberdade contratual, e efetivamente é. Não um limite à liberdade de
contratar, como consideramos antes. E no que estaria fundada a liberdade de
contratar, é a pergunta intrigante de Junqueira Azevedo, que respondeu a
S.Exa., o Professor Miguel Reale e a S. Exa., o Deputado Ricardo Fiúza, naquele
encontro na Ouvidoria Parlamentar, ao qual já me referi, antes, que no seu modo
de ver – e lhe parece ser esse o pensamento implícito na Constituição
Brasileira – baseia-se na dignidade da pessoa humana. No entanto – ele
prossegue – esse artigo tem um viés trágico, porque determina textualmente
que a liberdade de contratar será exercida em razão da função
social.
Ora.
Nem se trata de liberdade de contratar, nem deverá ser exercida em
razão da função social do contrato.
Na
verdade, trata-se de liberdade contratual, aquela pertinente à limitação
do Conteúdo do contrato, por força de norma de ordem pública, e não de liberdade
de contratar, esta sim fundada na dignidade da pessoa humana e resultante
da alta expressão da autonomia privada e, bem por isso, ilimitada.
Além
disso, a liberdade contratual poderá encontrar, na função social que é
inerente ao contrato, uma limitação à sua extensão meramente volitiva, uma vez
que nem sempre os contratantes poderão, sem estes freios, fixar livremente as
cláusulas de seu contrato.
E
quando isso se der, quer dizer, quando certas cláusulas estiverem cogentemente
registradas no contrato conforme a determinação de norma de ordem pública, se
compreenderá, então, que a função social exerceu o seu verdadeiro papel,
conforme convém. Exerceu o papel limitador da vontade dos contratantes,
restringindo-lhes a liberdade contratual, e não qualquer outro papel que
fosse delineado por um viés de fundamentação ou de razão de ser da
própria restrição cometida.
Em
desacerto, portanto, o mesmo art. 421, em dois momentos subseqüentes de sua
composição legislativa, quando descreve que a ‘liberdade de contratar’
será exercida ‘em razão’ e no limite da função social do contrato.
Insisto: a função social de que se cuida aqui, é função limitadora à fixação
absolutamente livre do conteúdo contratual, mas não é fundamento para
justificar ou sustentar a restrição imposta em certos casos.
O
Projeto nº 6960/2002, atento a estas discussões – que não são recentes, mas que
se encontram ressuscitadas, hoje, especialmente pela presença constitucional do
mega-princípio da dignidade da pessoa humana e pela vasta tábua axiológica dada
aos brasileiros e à sociedade brasileira como um todo – ostenta significativa
alteração nesse art. 421, acolhendo, principalmente, a lição pontual e valorosa
daqueles dois professores titulares de Direito Civil da Faculdade de Direito de
onde venho para hoje, honradamente, estar aqui com V.Exas, digníssimos
desembargadores e juízes do Estado de Minas Gerais. São eles – e já os referi
antes – Antonio Junqueira de Azevedo e Álvaro Villaça Azevedo.
Se
aprovado, enfim, o mencionado art. 421, em exame, passará ele a ter a seguinte
e muito mais precisa redação, permitindo ao juiz, se for o caso, o exame a
posteriori de eventuais nulidades contratuais decorrentes do desatendimento
desse princípio, e não apenas o exame a priori, como ocorre à face do
sistema geral das nulidades negociais: "A liberdade contratual será
exercida nos limites da função social do contrato".
A
justificativa apresentada pelo deputado Ricardo Fiúza, para a alteração dúplice
do presente artigo 421, corre exatamente nesta mesma vertente à qual me refiro
e diz, textualmente, o seguinte: "A alteração proposta,
atendendo a sugestão dos professores ÁLVARO VILLAÇA AZEVEDO e ANTÔNIO JUNQUEIRA
AZEVEDO, objetiva inicialmente substituir a expressão ‘liberdade de contratar’
por ‘liberdade contratual’. Liberdade de contratar a pessoa tem, desde
que capaz de realizar o contrato. Já a liberdade contratual é a de poder
livremente discutir as cláusulas do contrato. Também procedeu-se à supressão da
expressão ‘em razão’. A liberdade contratual está limitada pela função social
do contrato, mas não é a sua razão de ser.
Senhores,
estas eram, então, as considerações que com grande prazer separei para vir lhes
trazer, nesta noite, e por conta da abertura da 5ª edição deste ciclo de
estudos que o Tribunal de Justiça de Minas Gerais e a Escola Judicial Edésio
Fernandes têm, com muito sucesso, feito realizar.
NOTAS
1. Rui
de Alarcão, Contrato, Democracia e Direito, in Revista Brasileira
de Direito Comparado, nº 20, 1º semestre de 2001, Rio de Janeiro, 2001, ps.
03-12.
2. André
Lipp Pinto Basto Lupi, O Direito Privado Burguês, in www.eticadireito.hpg.ig.com.br/artigos-page.htm
3. Interessante
e paradoxal, por exemplo, é o momento rico em que a sociedade jurídica pode
assistir ao ressuscitamento de um certo instituto privado, como o que vimos
observando ocorrer justamente agora, com a proximidade da vigência do novo
Código Civil Brasileiro que traz, em seu bojo, o instituto da superfície,
prestigiado pelos romanos, mas em desuso há muito, entre nós, ausente por isso
da legislação brasileira anterior.
4. Conforme
o capítulo denominado "A função social do contrato", de lavra
da autora deste estudo, no livro Direito Civil – Estudos, Editora Del
Rey, Belo Horizonte, 2000.
5. Já
me referi a essa inconveniência em estudo que resultou no capítulo denominado "Contratos
atípicos e contratos coligados: características fundamentais e
dessemelhanças", no livro de minha autoria, supra rferido, Direito
Civil – Estudos.
6. "Tratado
Teórico e Prático dos Contratos", vol. I, São Paulo, Saraiva, 1993.
7. "Os
pactos devem ser observados".
8. "O
que é feito entre certas pessoas nem prejudica nem aproveita aos outros".
9. Judith
Martins-Costa, O Direito Privado como um sistema em construção: as cláusulas
gerais no Projeto do Código Civil Brasileiro (www.jus.com.br).
10. André
Comte-Sponville, Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, Martins Fontes,
1999, citado por Régis Fichtner Pereira, "A responsabilidade civil
pré-contratual", Renovar, 2001.
11. Idem,
ibidem.
12. Estas
considerações que se encontram entre aspas simples, às ps. 07 e 08 desta
transcrição, são as mesmas – com breves alterações ou supressões – que já
haviam sido expendidas em anterior palestra acerca das Tendências do Direito
Civil no século XXI, proferida em 21.09.2001, no Seminário Internacional de
Direito Civil, promovido pelo NAP – Núcleo Acadêmico de Pesquisa da Faculdade
Mineira de Direito da PUC/MG
13. Verbete liberdade
contratual, Enciclopédia Saraiva do Direito 49/370-371, São Paulo: Saraiva,
1977.
Retirado de: www.jus.com.br