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A FRAUDE À EXECUÇÃO E O CANCELAMENTO DO REGISTRO IMOBILIÁRIO

 

Luís Carlos Fagundes Vianna*

Sumário: Prólogo. Princípio da continuidade. O cancelamento da alienação fraudulenta. Conclusão.

 

Prólogo

A fraude é instituto de variadas manifestações e desdobramentos, daí decorrendo múltiplos e inconfundíveis efeitos: no direito civil há a fraude contra credor, que possibilita a anulação do ato; no comercial, a fraude possibilita a desconsideração da pessoa jurídica fazendo incidir a responsabilidade direitamente sobre o sócio; no penal o estelionato e outras fraudes conduzem à aplicação de sanções; no processo, a caracterização da fraude à execução torna ineficaz, perante o exequente, o ato fraudulento.

Estes efeitos, como já dito, não se confundem, pena de distorcerem outros institutos eventualmente interligados. Tal é o que se dá, data máxima vênia aos que esposam entendimento contrário, com a exigência cartorária, na apresentação da carta de arrematação de imóvel alienado pelo executado após a distribuição de execução fiscal (1), de prévio cancelamento do registro de alienação feita em fraude à execução, sob pena de infração ao princípio da continuidade ( já que a carta foi expedida em execução fiscal contra o devedor tributário que alienou o imóvel a terceiro comprador, novo titular da propriedade ).

Este entendimento, fincado no princípio da continuidade, encontra apoio doutrinário e jurisprudencial (2), não sendo demais esclarecer que não se tem a pretensão de buscar novo equacionamento científico para a questão. Não se deve furtar o operador do direito, no entanto, de, ao menos, colacionar algumas reflexões, ainda que isoladas, com vistas a colocar o tema sob ampla discussão. E para tal, nada melhor, in casu, que se proceder a análise do citado princípio, de forma a verificar se tem extensão e sentido a justificar a precitada exigência.

O princípio da continuidade

Quem se aventura a tratar da continuidade, alçada a princípio no registro imobiliário, não pode passar ao largo de sucinto histórico.

Nessa toada, é bem de ver que as linhas mestras do registro imobiliário, aí incluídos os princípios, estão previstas no Código Civil. Assim, entretanto, não ocorre com o princípio da continuidade, já que não há no Código Civil qualquer norma relativa ao encadeamento dos registros.

Foi o Decreto n. 18542/28 que introduziu no ordenamento nacional, através do art. 206, o princípio da continuidade, nos seguintes termos: " Se o imóvel não estiver lançado em nome do outorgante, o oficial exigirá a transcrição do título anterior, qualquer que seja a sua natureza, para manter a continuidade do registro."

A Lei dos Registros Públicos manteve a exigência aludindo ao princípio em diversos dispositivos, devendo-se destacar dois deles: "Art. 195. Se o imóvel não estiver matriculado ou registrado em nome do outorgante, o oficial exigirá a matrícula e o registro do título anterior, qualquer que seja a sua natureza, para manter a continuidade do registro." " Art. 237. Ainda que o imóvel esteja matriculado, não se fará registro que dependa da apresentação de título anterior, a fim de que se preserve a continuidade do registro."

Neste ponto, convém frisar que a transposição do modelo para a realidade requer, em regra, uma visão compreensiva de fatos e valores subjacentes, reveladora, não raro, de certo divórcio entre modelo e realidade. Assim, a compreensão do mencionado princípio passa pela percepção de que o fim por ele visado é o da segurança do registro imobiliário, obstando, desta forma, o surgimento de duplas linhas filiatórias para o mesmo imóvel.

De se considerar, ademais, o fato de que o princípio parece originar-se em relação polar - entre outorgante e outorgado, de eventuais direitos reais - tendo como finalidade evitar manifestações fraudulentas de vontade, que, à evidência, inexistem no apontado ato jurisdicional ( carta de arrematação).

Consigne-se, por outro lado, que os princípios não configuram disposições rígidas, inflexíveis, inexoravelmente aplicáveis quando bordejam os fatos. Ao contrário, os princípios de direito constituem-se em verdades fundantes, proposições basilares e informadoras dos sistemas jurídicos que possibilitam um encaixe plástico ao fato para o qual se busca a melhor regulação jurídica.

Destaque-se, para além, que a visão de conjunto, própria da sistematização, possibilita um melhor dimensionamento das partes de forma a ampliar os "ganhos" do conjunto, ainda que à custa de eventual "perda" sofrida em alguma das partes.

Valendo-se da comparação entre os fenômenos jurídicos poder-se-ia ilustrar a afirmação ressaltando que o aumento de tributo por medida provisória não viola o princípio da legalidade tributária, como já decidiu o e. STF na Adin n. 1441-2/DF – medida liminar. De igual forma, o princípio da publicidade, que informa os atos administrativos, cede o passo quando se trata de situações envolvendo a Segurança Nacional ou a vida privada das pessoas. Também o princípio da instância, já na seara registral, não inviabiliza o cancelamento de ofício da matrícula do imóvel, em certas circunstâncias.

Como se pôde observar, os exemplos citados não solapam os princípios jurídicos, antes, evidenciam o bom senso, a prudência e inteligência que devem presidir a aplicação dos mesmos.

O cancelamento do registro da alienação fraudulenta

Na esteira do raciocínio até aqui desenvolvido, importa, para mais, acentuar que a solução alvitrada para o caso em comento ( exigência de prévio cancelamento da alienação para o registro da arrematação ) não parece a melhor. É que a precitada alienação, embora fraudulenta, não é nula, mas, tão – somente, ineficaz para o credor. Neste mesmo sentido, assentou a 4ª Turma do e. Superior Tribunal de Justiça no REsp. n. 3.771- GO, de 16.10.90, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo, RJSTJ, 3(20)/282: "Na fraude de execução, o ato não é nulo, inválido, mas sim ineficaz em relação ao credor."

Ademais, a citada alienação, não obstante a ineficácia em relação ao credor, reclama, como todo ato de transferência de domínio, os efeitos normais decorrentes do registro imobiliário, quais sejam, publicidade, segurança e eficácia.

Este entendimento – de registro da arrematação sem prévia anulação da alienação fraudulenta – encontra apoio em Araken de Assis in Manual do processo de execução, Editora RT, 1998, p. 355, quando afirma: "Feita a alienação do objeto do pronunciamento declaratório da fraude, competirá ao juiz da execução mandar registrar o título ( carta de arrematação ou de adjudicação ), independentemente do cancelamento do registro fraudulento, que é somente ineficaz."

Conclusão

Com estes argumentos, chega-se às seguintes conclusões: (a) dizer que um princípio informa um sistema, não significa que ele deva, necessariamente, ser aplicado em todas as situações em que os fatos são por ele bafejados; (b) soa razoável, dado que de nulidade não se trata, afirmar a subsistência do registro de alienação de imóvel em fraude à execução.

Se isto é certo, não é menos certo que pode ser registrada a carta de arrematação de imóvel alienado após a distribuição de execução fiscal contra o alienante, sem o prévio cancelamento da alienação em fraude à execução.

 

Notas:

(1) A teor do art. 185 do Código Tributário Nacional "Presume-se fraudulenta a alienação ou oneração de bens ou rendas, ou o seu começo, por sujeito passivo em débito para com a Fazenda Pública por crédito tributário regularmente inscrito como dívida ativa em fase de execução.

(2) Veja-se, a propósito, os seguintes acórdãos: AC 162029, 8ª Câmara do 2º TAC/SP; AI 501479, 3ª Câmara do 1º TAC/SP.

*Procurador Federal / PPS em São José do Rio Preto-SP

 

 

retirado de: http://www.apriori.com.br/artigos