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A Família na Travessia do Milênio

 

 

Rui Geraldo Camargo Viana


 

É tema inçado de aspectos interdisciplinares para os quais nós, professores de Direito Civil, acostumados com a exegese dos textos, sairemos um pouco desta rotina para fazermos uma análise sociológica do que é a família no Direito brasileiro e como ela veio percorrendo esses 500 anos de brasilidade.

Nós podemos dizer que no começo era a mãe, o verbo veio depois, porque a sociedade nasce com a mãe, então a figura da mãe é uma figura proeminente na formação da sociedade e na própria história do homem.

A família tradicional, a família romana antiga é a família dita patriarcal, patriarcal por causa do peso da cultura, da argumentação e da autoridade de Gilberto Freire e Oliveira Viana que, focados na família tradicional do norte e nordeste do Brasil, na família setentrional, praticamente focaram a família patriarcal na sociedade rural brasileira, mas que não refletem a família brasileira como um todo. Estudos mais modernos feitos em São Paulo, por exemplo, mostram que a família do Sul, mormente a família paulista, difere de certa forma dessa família patriarcal que Gilberto Freire e Oliveira Viana tanto enfatizam como moldadas naquele princípio da submissão da mulher e da dominação do marido, que Capistrano de Abreu sintetizava na sua fórmula "Pai dominador, mãe submissa e filhos aterrados", essa era a família tradicional, a família paternalista onde havia a autoridade do pater familias sobre aquela grei toda, que em torno dele se reunia.

Na família romana, havia até um sentido econômico, no sentido de que a família compreendia todos os agregados, que eram aqueles que descendiam de uma mesma estirpe, compreendia aqueles que vinham a se ligar à familia por laços civis, que eram os chamados cognados e, depois toda aquela caudatália circunstancial que vinha se atrelar, como clientela, os escravos e até os bens, pois no conceito de direito romano, a família se constitui personas et pecus, ou seja, o gado também fazia parte, pois a família era um núcleo econômico no sentido de que ela tinha esse aspecto.

Nesse sentido, também era a família tradicional do norte do Brasil, onde havia monocultura, a extensão do latifúndio e a necessidade de trabalho para a monocultura era restrito, ou seja, nas grandes plantações de cana, o trabalho era restrito, era cíclico, havendo o período das colheitas, mas também o período de quiescência, no qual as plantações ficavam em estado de crescimento, isto é, desde o plantio até o estado de corte, tudo isso deixava as pessoas ociosas e dependentes do chefe de família, daquele pater que era o dono da gleba, era o senhor da terra, o senhor rural.

Nós tivemos o baronato no Brasil, o baronato do café em São Paulo, o baronato do cacau e da cana no norte e nordeste, com as típicas famílias tradicionais.

Em São Paulo, como os latifúndios eram menores, é que as famílias iam se fracionando, os filhos atingindo a maioridade, em sua grande parte, não encontrando trabalho em circunstâncias de permanecer nas casas grandes, iam para os centros, formando as cidades, ou seja, a vida se realizava nas cidades, onde o homem respira liberdade, pois está menos concentrado, menos vigiado e tem, então, uma esfera maior de liberdade.

A igreja e o Estado eram afetados pela influência das famílias poderosas. Nós vemos que o Brasil foi montado por meio de privilégios, onde nós vemos as sesmarias, os grandes senhores de terras, os capitães que tinham poder, pois quem tinha terra tinha poder, uma repetição do medievo na Europa, onde os senhores medievais tinham o seu poder concentrado em homens e em bens, pois no poder ele tinha terra e na terra ele tinha o peão, que era o braço do trabalho e o soldado.

Nós, no Brasil, tínhamos a figura do coronel, que tinha terra e tinha o colono, que era também eleitor e, com isto, o coronelismo concentrava o poder político e econômico – essa era a sociedade tradicional. Oliveira Viana mostrava que, entretanto, nas famílias pobres havia uma divergência com a estrutura das famílias ricas, pois as famílias ricas foram aquelas concebidas em torno do economicismo, em torno da propriedade, em torno da riqueza. Se formos estudar, por exemplo, em São Paulo, a família Prado, as genealogias, havia um interesse de manutenção do poder, sobretudo do poder econômico, que se fazia através das uniões familiares, ou seja, através dos casamentos. Dizem, até, que as pessoas de sangue azul são todas um pouco desequilibradas, e que isso é resultado desta consangüinidade, dessa sociedade que era fechada por meio de expedientes casamentários.

A nossa sociedade, aquela detectada por Gilberto Freire e Oliveira Viana, que não é a generalidade da sociedade brasileira, era aquela centrada na autoridade do pater familias e na grande herdade, onde os outros organismos apêndicilares, como a vizinhança, eram todos dependentes do senhor da terra, que era quem detinha o poderio econômico.

Se nós fôssemos estudar o século XVII e XIX, porque nos primeiros séculos, a família é mal formada e mal estruturada, ou seja, são aqueles primeiros degredados. No estudo das nossas famílias, nós vamos vislumbrar que a parte desenvolvida, a parte culta era, na maioria, filhos de clérigos e religiosos.

Os filhos dos senhores do engenho eram tão ignorantes quanto seus escravos, pois nascidos e vivendo nas fazendas, tornavam-se embrutecidos. Eu mesmo que convivi no interior de São Paulo, tinha um conhecido muito amigo, um homem simplório, um sitiante, com quem em eu me dava muito bem e, por vezes, o pai dele, um sujeito muito mais velho, ia visitá-lo e, mesmo preliminarmente, notava-se que era uma pessoa muito mais culta, de um conhecimento muito maior e, certa feita, eu indaguei a este amigo porque o pai dele era tão mais letrado do que ele e, com isso, descobri que o pai dele era um homem da cidade que, posteriormente, mudou-se para o interior, daí ele ter um maior padrão cultural do que os seus filhos, nascidos no interior e em contato com uma vida mais rústica, ficaram notadamente embrutecidos, ou seja, aí ocorreu um fenômeno de perda da cultura, pois o pai que teve educação na cidade, tinha modos mais refinados, um extrato cultural maior do que o de seus filhos. Se se há de supor que os filhos suplantem os pais, houve um processo inverso nessa permanência.

Então, nesse contexto, temos que a elite brasileira nasceu dos bastardos, filhos de clérigos, basta citar Clóvis Beviláqua, do qual todos nós sabemos de sua origem.

Então, a família paulista, a partir de dados muito importantes de recenseamentos e testamentos, eu que já fui juiz de registros públicos, então estive no 1o. Cartório de São Paulo e lá há um repositório de escrituras desde 1.700, registrando aquelas escrituras de aquisições de mulatas de canelas finas que eram muito apreciadas porque eram ligeiras e trabalhavam muito.

Num recenseamento de 1.836 em São Paulo, ainda no século XIX, é possível extrair-se uma série de conceitos para entendermos a família e, eu falo em família paulista para não ficarmos presos na meditação e no sociologismo de Gilberto Freire que, no fundo, com toda a sua competência e maravilhosa estrutura, é notadamente regionalista e portanto, não pode ser tido como genérico.

Por exemplo, nesse censo primeiro, de São Paulo, temos que a família paulista não era tão vasta e extensa como a família patriarcal do Norte/Nordeste. Quanto aos moradores das casas no Estado de São Paulo, constatou-se a média de 1 a 4 habitantes por casa, na sua maioria, ou seja, eram famílias nucleares, não no sentido moderno que se deu, mas no sentido de núcleo, concentrado, formado pelo pai, mãe e filhos. Quanto á família patriarcal, 26% dos domicílios eram baseados na família tradicional, baseada no casamento e, 74% eram de famílias menos extensas e não fundadas no casamento. Então, nós vemos que o casamento não era a tônica na família brasileira, até porque ele não era acessível ás famílias mais pobres, fenômeno que ainda hoje se repete.

Destarte, nós pensamos, apenas, na família, mas em São Paulo havia uma grande parcela de adeptos do celibato. Os paulistas eram muito celibatários na sua maioria, homens solteiros que viviam solitários com seus filhos ilegítimos, tanto que nos testamentos há menção á fraqueza humana, principalmente por parte das mulheres que, em seus testamentos confessavam esses seus pecadilhos, justificados por seus momentos de fraqueza, o que quer nos parecer que os paulistas eram um povo bastante fraco, principalmente no aspecto de resistência moral no relacionamento casamentário.

O casamento era apenas para os mais abonados, pois escravos e agregados não eram muito dados ao casamento. Uma pesquisa interessante, nos mostra também, que de 503 famílias ou pessoas solteiras estudadas, 140 tinham em média, cada uma, 4 filhos naturais, o que mostra a presença das uniões morganáticas e concubinárias, ou seja, mesmo em uma sociedade antiga e conservadora, as uniões extra-casamentárias, daí termos a bastardia evidenciada. Então, vê-se que havia uma tolerância e até uma proteção para com os bastardos.

Outro dado de relevo, é que não havia também na família paulista aquela imposição do patriarcado, pois no Nordeste era mais comum que o pater mantive-se suas várias concubinas e condorsas num mesmo lar, pois o pater nordestino era mais autoritário e a mulher era mais submissa; em São Paulo, as concubinas viviam em lares separados, mas era comum a proteção dos filhos extra-matrimoniais, o que se vê muito nas disposições testamentárias quando não haviam os filhos legítimos, pois quando os havia, tinham-se restrições. Quando não haviam filhos legítimos, havia até o acolhimento em casa, postura que algumas mulheres adotavam para se fazerem de santas e mostrarem que haviam perdoado os desvios e pecados de seus maridos.

Outra pesquisa nos mostra a incidência dessa fragilidade humana é que em 1.449 chefes de família pesquisados, as famílias não eram tão numerosas como as famílias do Norte/Nordeste, pois as pesquisas apontavam 46,4% das famílias sem filhos, 15,7% com 01 filho e praticamente, apenas 10% com mais de 05 filhos. Então, vemos que a família paulista não tinha o perfil de uma família patriarcal numerosa, era uma família concentrada e de característica nuclear.

No mesmo recenseamento, nós vamos ver que em São Paulo, os casamentos não eram tão precoces, pois praticamente não havia casamento de menores de 14 anos, talvez devido até a condição econômica que os acabava retardando, pois aqui não havia essa dependência total ao pai, e para se casar e manter seu novo estatuto, era necessário que se tivesse alguma condição econômica, o que não era comum para um garoto de 14 ou 16 anos.

Nos testamentos, nós vislumbramos também o estereótipo de uma família alongada com as deixas para os afilhados, para os beneficiados e para alguns escravos que, sendo cauteloso, o testador os alforriava apenas para depois de sua morte, porque queria ser atendido até o fim de seus dias.

A família paulista não tinha também um grande n.º de escravos como as famílias do Norte/Nordeste, pois 64% das famílias não tinham escravos e 80% não tinham os agregados que era aquela clientela que era comum nas famílias tradicionais. Essa clientela era formada de algum trabalhador desgarrado, um trabalhador eventual que acaba ficando, as próprias amas de leite, as amas secas etc.

Nessa mesma estatística paulista, temos que 10% tinham 01 escravo, 32% tinham até 10 escravos e, apenas 1 abonado aparecia no censo com 50 escravos. Disso se tem que em São Paulo, a atividade escrava não era tão grande, não pela bondade ou por obra dos fervorosos escravagistas paulistas, mas pelo custo dos escravos, além do que havia a presença dos agregados que ajudavam nas tarefas.

O casamento, então, vê-se que era reservado apenas para os mais abastados, ou seja, a posição sócio-econômica reservava os casamentos apenas para a elite branca, Tem-se, ainda que, como os casamentos eram levados pelo nível sócio-econômico, as possibilidades de casamento eram muito fechadas, pois tinha que ser expedido pedido para Roma para que lá se verificasse se não estava presente algum impedimento que frustasse o matrimônio ou que ofendesse o plano de Deus. Somente ao depois foi editada uma bula que conferia poderes para o Arcebispado da Bahia dar essas autorizações para facilitar, pois isso dificultava muito os casamentos e criava muitas mancebias.

As moças então, ficavam na nossa estrutura, presas a autoridade paterna. Se pegarmos o direito brasileiro à época das ordenações filipinas, veremos que era justa causa para deserdação das filhas que elas deitassem com homem fora do lar paterno, porque isso era uma ofensa ao pater. Porém, para os rapazes, havia uma maior tolerância. A Lei tratava discrimininadamente, pois por exemplo, o Código Criminal do Império, punia o adultério não com aquela voracidade das ordenações que mandavam apedrejar as mulheres e outras penas originárias dos tempos bíblicos, mas punia o adultério severamente. Já para os homens serem punidos, precisava-se da prova material de que ele estivesse em concubinagem franca com a mulher, pois relações passageiras, pequenos desvios e alguns pecadilhos eram tolerados.

Com a bula papal de 26 de janeiro de 1790, nós temos então a abreviação de tempo e facilitação do casamento, onde as castas de famílias casamentárias começam a serem privilegiadas, enquanto os pobres continuavam na mesma. Isso se podia ver no interior de São Paulo, onde se percebia que na época da colheita havia um juntamento e, o rapaz, depois da colheita, tem um pecúliozinho e, então, o pai da moça deixava a porta entreaberta e ele rapta a noiva. Isso ocorre para evitar os gastos com o casamento, aquele churrasco, aquele baile que se teria que fazer. Isso eu vislumbrei recentemente quando estive lá no sertão de Rio Preto, no interior de São Paulo, no período da colheita, setembro/outubro, aquela praxe infernal, aqueles pedidos de suprimento de consentimento para casamento daquelas moças já engravidadas que preferiam fugir e depois se casarem. Mas isso era para evitar os ônus e encargos sociais do casamento.

Alfredo Eres, estudando a sociedade de São Paulo, mostra que os casamentos consangüíneos chegavam, na época de 1.700 a 1.800, a 23,3% no seiscentismo e, chegou a 47,8% no setecentismo, então vê-se que isso significa a união dos patrimônios. Por exemplo, o caso da Veridiana Prado quando casou com Martinho Prado, foi aquela união conveniente, pois ela era sua cunhada e casar com a cunhada tem uma dupla vantagem, pois, primeiramente, você economiza uma sogra e a segunda é que se conserva o patrimônio, pois já se está ligado com aquela família. Então, vê-se que a família tradicional era ligada por laços econômicos e não por laços de amor.

Quem está assistindo a essa novela Terra Nostra, vê que o homem mantinha suas amantes, mas que isso não tinha importância, ou seja, tudo isso era tolerado, pois necessitava-se conservar a união dos patrimônios. Já as famílias menos abastadas ligavam-se por laços de amor, daí a mancebia ser originada de laços de carinho, ou seja, como diria nosso poeta "Que seja eterno enquanto dure...".

A carta de D. Francisco Manoel de Mello, dirigida a um amigo explicando-lhe como se fazia um casamento conveniente, é muito curiosa, pois diz que "uma das coisas que mais podem proporcionar a felicidade dos casados é a proporção do casamento. A desigualdade no sangue, na idade, na fazenda, causa contradição, causa discórdia, perde-se a paz e a vida é um inferno. Para satisfação dos pais, convém a proporção do sangue. Para o proveito dos filhos, a proporção da fazenda. Para o gosto dos casados, a da idade. Se bem que essa última assertiva não era de todo válida, pois os velhos daquela época, tal como hoje acontece, adoravam casar com uma mocinha nova, dizendo que isto tem um efeito rejuvenescedor.

As ordenações puniam os casamentos entre pessoas desiguais. Era preciso uma autorização da justiça para que esses matrimônios pudessem se realizar, ou seja, era uma interferência do Estado a fim de conservar os patrimônios. Ainda hoje, nós vemos essa preocupação das famílias nobres em conservar seus patrimônios e poder com expedientes casamentários, daí a dificuldade que alguns príncipes encontram ao quererem casar-se com plebéias.

Tudo isso para mostrar que as mulheres viviam num estado de dependência e que, de pouco em pouco, foram se libertando até chegar hoje na produção independente, aquilo que Oswald de Andrade chama de "O matriarcado de pindorama", em que as mulheres vão se libertando e criam as famílias morganáticas, que são as famílias compostas dos filhos e um só dos pais.

Raquel de Queiróz, com sua verve muito capacitada, dizia que a mulher ganhou status de importância social, assumindo um lugar seu e "deixando de ser apenas madame Silva para ser fulana de tal, ela própria, sem a sombra social do marido". Era o que já acontecia em São Paulo com o bandeirismo, pois a mulher era quem assumia a chefia do lar, não era aquela mulher que ficava no lar bordando, cozinhando e cuidando das mucamas. Não era, assim, a mulher ideal, pois eu costumava dizer que mulher ideal é aquela que só saber dizer três coisas: "Xô, xô galinha, prá dentro criança e sim senhor". Mas Raquel de Queiróz disse: Cá entre nós, se sempre a mulher, desde a mãe Eva, não sabia manobrar para direcionar o casal, que se dirá agora que entramos com partes iguais na sociedade conjugal?" Assim, então, Raquel de Queiróz mostra que a mulher está numa fase de libertação.

 

 

Fonte:http://www.apriori.com.br/artigos/a_familia_na_travesia_do_milenio.shtml