Ação reivindicatória e tutela da propriedade

 

Sílvio de Salvo Venosa
Ex-juiz do 1o Tribunal de Alçada Civil de S.Paulo
Sócio de DEMAREST E ALMEIDA ADVOGADOS.

Autor de obra completa sobre Direito Civil, em sete volumes,
pela Editora Atlas. Membro da Academia Paulista de Magistrados

 

 

 Se analisarmos quantitativamente as ações que ocorrem na prática para a proteção da propriedade, não teremos dificuldade de concluir pelo predomínio das ações possessó-rias. Tal situação é facilmente explicável porque a ação possessória socorre o estado de fato que na maioria das vezes exterioriza a real propriedade. Como se trata de estado de fato, sua prova é mais fácil, salta à vista, é perceptível, sem maiores meandros. O rito procedi-mental especial, imprimido aos ataques à posse com menos de ano e dia, autorizando a me-dida liminar em prol do autor, permite que com rapidez e eficácia se assegure um estado de fato conciliador da propriedade, obtendo-se mais prontamente a paz social, razão primeira da adequação social buscada pelo Direito.

   No juízo possessório se controverte o estado da posse enquanto no juízo petitório reside a sede exclusiva de discussão da propriedade e direitos reais de menor magnitude. A regra geral é inadmitir a discussão da questão dominial nas ações possessórias. Se a decisão no pleito possessório não inibe a ação petitória, fundada no domínio, portanto, não será freqüente sua utilização, porque o estado de fato traduzido na sentença possessória na maio-ria das vezes culmina com a composição do conflito de interesses. Surge a utilidade maior das ações reais nas hipóteses de risco calculado do ordenamento, quando a posse é deferida a quem não a merece, porque se protege apenas o estado de fato. Apenas nessa situação, até que a questão seja dirimida no juízo petitório, realça-se que a proteção possessória tem ca-ráter temporário.

   A propriedade, como direito fundamental, resguardado constitucionalmente, deve também, com maior razão, ter meios específicos de tutela no ordenamento.A proteção da propriedade desenvolve-se tanto perante pessoas de direito público como perante pessoas de direito privado. O mandado de segurança é ação utilizada com freqüência para defender situações concretas de ofensa à propriedade praticada por autoridade pública quando inca-bível a possessória. Ausentes os pressupostos do mandado de segurança, aquele que tem seu direito de propriedade ameaçado, atingido ou violado também poderá mover contra o Estado as mesmas ações que tem contra outro qualquer ofensor de seu direito. Em relação à Administração, há todo um arcabouço legislativo para compor e proteger o direito de pro-priedade, dentro dos limites impostos pela lei, matéria que pertence ao estudo do direito público, pois muito de sua proteção decorre da atividade administrativa típica.

   A propriedade como instituto de direito privado, no entanto, encontra seus meios de proteção na intervenção do Poder Judiciário, quando devidamente exercido o direito de ação. Cabe ao decreto judicial emanado da sentença proteger o proprietário. É, portanto, no Poder Judiciário que se exercita e se garante a propriedade contra quem transgride o direito dominial. Nesse sentido, o proprietário atingido no exercício de seu ius utendi, fruendi et abutendi dispõe de vários meios de proteção.Por vezes, será conveniente ao titular do direi-to de propriedade que o controverta exclusivamente no plano contratual ou extracontratual, ou seja, pessoal. Perdida a coisa ou tornada impossível ou inconveniente sua recuperação, a ação indenizatória situa-se fora do plano petitório. É ação pessoal.

   A principal e mais importante ação petitória é a ação de reivindicação. Outras tam-bém servirão para proteger a propriedade, como a confessória e negatória, a ação declarató-ria propriamente dita, além da ação de nunciação de obra nova, de dano infecto e embargos de terceiros que podem ser utilizadas tanto para defesa da posse como da propriedade. To-das essas ações merecem um estudo individualizado. Desse modo, verifica-se que em sede de proteção do domínio há remédios gerais e específicos. O Código Civil e o CPC não se ocuparam expressamente da tutela da propriedade, como fez, por exemplo, o Código argen-tino. Mormente a ação reivindicatória fica relegada à doutrina e à jurisprudência. Essas ações, obedecendo ao procedimento ordinário, têm alcance por vezes maior ou diverso do exclusivamente petitório.

   Ação reivindicatória é a ação petitória por excelência. É direito elementar e funda-mental do proprietário a seqüela; ir buscar a coisa onde se encontra e em poder de quem se encontra. Deflui daí a faculdade de o proprietário recuperar a coisa. Escuda-se no direito de propriedade para reivindicar a coisa do possuidor não proprietário, que a detém indevida-mente. É ação real que compete ao titular do domínio para retomar a coisa do poder de ter-ceiro detentor ou possuidor indevido. "Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha" (antigo, art. 554). Possuir injustamente é ter o bem sem o direito de pos-suir (ius possidendi).

   Geralmente, mas não exclusivamente, na ação reivindicatória estabelece-se conflito entre o direito de propriedade e a aparência, isto é, o estado de fato da posse. Aquele que é proprietário quer retomar a coisa do possuidor ou detentor injusto. Está, portanto, legitima-do para essa ação o proprietário, que deve fazer prova de seu direito, assim como do fato de o terceiro a deter injustamente. Nem sempre a prova de propriedade é absoluta. Em nosso sistema, a presunção do registro imobiliário também não é absoluta. Por outro lado, a posse justa do réu, ainda que temporária, pode obstar a reivindicação.

   A propriedade não se perde pelo não-uso em face do princípio de sua perpetuidade. No entanto, o fato positivo do usucapião pode ser alegado como exceção, como defesa, para obstar a reivindicação. A propriedade de per si não opera prescrição extintiva ou deca-dência de direito, mas é atingida pela prescrição aquisitiva de outrem, a usucapião.

   Por outro lado, o direito material da propriedade tem efeito erga omnes, perante to-dos, o que não pode ser confundido com o efeito da sentença na ação reivindicatória. Este efeito obedece às regras de processo e atinge apenas quem foi parte. Terceiros, em princí-pio, não são atingidos pelo efeito da sentença que reconhece o domínio na reivindicação.

   Na ação reivindicatória julgada procedente, reconhece-se o direito de propriedade com relação ao réu. O elemento declarativo de propriedade está presente em todas as ações reais. Cuida-se de questão prévia no exame da controvérsia. Não provada a propriedade será repelida a pretensão do reivindicante. Se procedente o pedido, por outro lado, o réu será condenado a entregar a coisa. Ao efeito condenatório agrega-se o caráter executório da sentença. Nada impede que o autor cumule o pedido de declaração de sua propriedade com a reivindicação. Nessa hipótese, o efeito da sentença operará também especificamente para o acertamento ou declaração do estado de propriedade.O pedido reivindicatório pode vir também cumulado com o de indenização de perdas e danos. Cabe ao interessado provar o que perdeu, qual foi seu prejuízo, com a detenção indevida da coisa pela outra parte.

   Nem sempre se anota nos julgados um cuidado especial com a ação reivindicatória, em cotejo com as ações possessórias. Nem sempre, também, há um cuidado maior dos ma-nuais jurídicos com esse tema, que é de vital importância, pois posse e propriedade têm a ver diretamente com a paz social. A matéria, como se percebe, pertence ao direito material, mas exige intenso manuseio e conhecimento dos instrumentos processuais.

 

 

Retirado de: http://www.justicavirtual.com.br/artigos/art64.htm

Acessado em: 04 de agosto de 2004