A
Estatização do Afeto*
Mestre em Direito Processual Civil pela PUC-RS;
Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
Sob a
justificativa de estabelecer padrões de moralidade e regulamentar a ordem
social, o Estado solenizou os vínculos afetivos, transformando a família em uma
instituição matrimonializada. As relações denominadas espúrias, adulterinas ou
concubinárias nenhum direito possuíam. Os filhos havidos fora do casamento
sempre foram alvo de enorme gama de pechas de conteúdo pejorativo e
discriminatório. Seu destino era a invisibilidade, pois não podiam buscar o
reconhecimento da própria identidade.
O Estado,
com sua onipotência, não se limita a chancelar o casamento e atribuir
responsabilidades ao casal. Interfere na sua vida íntima, impondo deveres e
assegurando direitos, como fidelidade recíproca, vida em comum e mútua
assistência. A vontade dos nubentes pouco vale. É levada em conta só no momento
da solenização do casamento, não possuindo nenhuma relevância após ser
proferida a palavra “sim”. Diante da quantidade cláusulas, condições e regras
impostas, possível concluir que o casamento não passa de mero “contrato de
adesão”.
Essa
ingerência, nitidamente descabida, é juridicamente ineficaz, pois o
descumprimento de qualquer dos deveres não gera a possibilidade de buscar seu
adimplemento por decisão judicial. Ou seja, estabelecidos para vigorar durante
a vida em comum, são úteis para justificar o pedido de separação, outorgando
legitimidade à busca da separação, na medida em que permitem imputar ao
infrator a culpa pelo fim do amor. Mas, na vigência da sociedade conjugal, o
inadimplemento desses deveres por um ou ambos os cônjuges em nada afeta a
existência, a validade ou a eficácia do casamento.
Celebrado
o casamento, tem-se por constituída a família, a qual se transforma na base da
sociedade, passando a merecer a especial atenção do Estado que, talvez por
isso, se insurge contra sua dissolução.
Em um
primeiro momento, o casamento era indissolúvel. A Lei do Divórcio passou a
chamar o desquite de separação, situação sui generis que faz cessar os
ônus matrimoniais e que, no entanto, por não dissolver o vínculo do casamento,
impede o separado de novamente se casar. Persiste insuficiente, ainda hoje, a
vontade dos cônjuges, para encerrar um casamento, mesmo quando este haja
começado por sua exclusiva vontade. Ainda que haja consenso das partes, mister
que estejam casados há mais de dois anos para obter a separação. Somente depois
do decurso de mais um ano é que podem transformar a separação em divórcio.
Igualmente o divórcio só pode ser buscado se já estiver o par separado de fato
há mais de dois anos.
Curioso
que, após o decurso do prazo de um ano do fim da vida em comum, o Estado se
desinteressa de identificar e punir o responsável pela separação. Antes de
decorrido esse prazo, somente o cônjuge “inocente” pode buscar a separação,
devendo atribuir a culpa ao réu e prová-la, requisito que o Judiciário, em boa
hora, auscultando a melhor doutrina, vem desprezando.
Não só em
relação ao casamento ocorre a interferência estatal na vida afetiva das
pessoas. Os vínculos de convivência formados sem o selo da oficialidade
ingressaram no mundo jurídico por obra da jurisprudência, sob o nome de
concubinato. Tais estruturas familiares findaram por ser aceitas pela própria
sociedade civil, que impôs à Constituição de 88 dar abrigo no conceito de
entidade familiar à união que chamou de estável. A legislação
infraconstitucional que sobreveio para regular essa nova espécie de família acabou
praticamente copiando o modelo oficial do casamento. Estabeleceu requisitos
para o seu reconhecimento. Impôs deveres e criou direitos. Assegura alimentos,
estabelece o regime de bens, insere o convivente na ordem de vocação
hereditária, institui usufruto e concede direito real de habitação. Aqui,
também, pouco resta da vontade do par e o dirigismo estatal transforma a união
estável em um “casamento por decurso de prazo”.
No momento
histórico em que o formato hierárquico da família cedeu à sua democratização,
não mais existem razões que justifiquem essa excessiva e indevida ingerência do
Estado na vida das pessoas.
A esfera
privada das relações conjugais tende cada vez mais a repudiar a interferência
do poder público, não se podendo deixar de concluir que está ocorrendo uma
verdadeira estatização do afeto.
Artigo retirado do site
www.mundojuridico.adv.br
* Edição
especial da Revista Jurídica Del Rey, em parceria com o Instituto Brasileiro de
Direito de Família/IBDFAM, nº 08, maio/2002, p. 17