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A filiação no Novo Código Civil



Inacio de Carvalho Neto*



Propõe-se o presente trabalho a fazer uma breve análise sobre as alterações introduzidas no direito de filiação pelo novo Código Civil, recentemente aprovado no Congresso Nacional. O tema é tratado no subtítulo referente às relações de parentesco.


A primeira importante alteração efetivada pelo novo Código foi a substituição do próprio título do Capítulo II, que antes tratava Da Filiação Legítima, e agora, mais abrangente, trata simplesmente Da Filiação. Tal alteração reflete a determinação constitucional (art. 227, § 6º.) de se afastar qualquer designação discriminatória relativa à filiação. O primeiro dispositivo deste Capítulo (art. 1.596) reproduz justamente o citado texto constitucional.


Acresceu o novo Código mais hipóteses de presunção de concepção[1]. Diz o art. 1.597 que também se presumem concebidos na constância do casamento (presumindo-se, por interpretação, filhos do marido da mãe) os filhos havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido, os filhos havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga, e os filhos havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido[2].


Procura o novo Código dar expresso tratamento ao problema dos conflitos de presunções, matéria omissa no Código de 1916. Ocorre conflito de presunções de paternidade quando um filho tem, presumidamente pela lei, mais de um pai. Isto se dá especialmente nos casos em que a mulher se casa novamente logo após enviuvar, em infração ao impedimento do art. 183, inc. XIV, do Código Beviláqua (art. 1.523, inc. II, do novo Código)[3]. Diz o art. 1.598 do novo Codex que, “salvo prova em contrário, se, antes de decorrido o prazo previsto no inciso II do art. 1.523, a mulher contrair novas núpcias e lhe nascer algum filho, este se presume do primeiro marido, se nascido dentro dos trezentos dias a contar da data do falecimento deste; do segundo, se o nascimento ocorrer após esse período e já decorrido o prazo a que se refere o inciso I do art. 1597”. Note-se que a segunda parte do dispositivo é despicienda, pois aí não se terá mais conflito de presunções; neste caso o filho só pode realmente ter por presumido pai o segundo marido da mãe. A solução da lei em caso de conflito, portanto, é presumir a paternidade do primeiro marido, sempre, com a ressalva da possibilidade de se provar em contrário.


Outra novidade da nova lei é admitir a impotência generandi como causa para ilidir a presunção de paternidade. No sistema antigo, o art. 342 dava a entender que só a impotência coeundi era causa para a contestação de paternidade; agora o art. 1.599 é expresso em permitir a prova da impotência do cônjuge para gerar. A rigor, tal disposição é inútil, porque não repetiu o novo Código as restrições dos arts. 340-342 do Código anterior, pelo que não precisava ele se referir expressamente à impotência generandi como exceção.


Mas a mais importante e mais polêmica novidade está contida no art. 1.601: a imprescritibilidade da ação de contestação de paternidade. No Código ainda em vigor, o art. 178, §§ 2º. e 3º., inc. I, previa o prazo decadencial de 2 ou 3 meses, conforme se achasse presente ou não o marido da mãe. Agora a ação de contestação é tida por imprescritível[4]. A alteração nos parece má, podendo gerar muita insegurança. Um filho poder ter sua paternidade contestada depois de muitos anos de convivência é algo terrificante. João Baptista VILLELA bem retratou o perigo da disposição em uma magnífica peça teatral que fez para o III Congresso Brasileiro de Direito de Família, onde foi muito bem representado pela Doutora Giselda Maria Fernandes Novaes HIRONAKA, trabalho este publicado no site do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM (www.ibdfam.com.br), cuja consulta recomendamos, dada a impossibilidade de se reconstituir aqui, ainda que resumidamente, suas idéias.


No mais, manteve o novo Código as linhas gerais de tratamento da matéria: a insuficiência do adultério (art. 1.600) e da confissão (art. 1.602) para a exclusão da paternidade; a determinação da prova da filiação pela certidão de nascimento (art. 1.603), que só pode ser excluída provando-se erro ou falsidade do registro (art. 1.604), suprindo-se-a por qualquer meio em caso de falta ou defeito do assento de nascimento (art. 1.605); e a atribuição exclusiva ao filho para a ação de prova de filiação (art. 1.606). Somente não se reproduziram o art. 339, que imputava a paternidade ao marido da mãe em alguns casos, ainda que nascesse o filho antes de 180 dias do casamento[5], e os arts. 340 a 342, que limitavam os casos de contestação da paternidade[6].


Artigo publicado no Mundo Jurídico (www.mundojuridico.adv.br) em junho de 2002


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[1] A presunção de concepção é um aspecto da presunção de paternidade, a conhecida presunção pater is est. O Código de 1916, no art. 317, presumia a paternidade dos filhos concebidos na constância do casamento. Mas, sendo a concepção de data desconhecida, o art. 338 também a presume. Ocorre que a Lei nº. 8.560/92 revogou o art. 337, por se referir ele à filiação legítima, expressão proscrita pelo art. 227, § 6º., da Constituição Federal. Tal revogação deixou o sistema capenga. O art. 338 fala em presunção de concepção, mas não diz (e nem outro qualquer dispositivo o diz) o que fazer com tal presunção. A nova lei, sem muito cuidado, simplesmente repetiu tal sistema, que permanece, assim, carente de maiores esclarecimentos.


[2] Os incisos III a V foram acrescidos na Câmara dos Deputados. O texto do projeto original repetia o art. 338 do Código Civil de 1.916. No texto consolidado pelo Senado constava apenas o inciso III referindo-se simplesmente aos filhos havidos por inseminação artificial, desde que tenha prévia autorização do marido.


[3] No Código de 1916 o tema era tratado como impedimento meramente proibitivo, sendo agora chamado de causa suspensiva do casamento, e tem por objetivo justamente evitar o conflito de presunções de paternidade. Proibindo o casamento nos 10 meses seguintes à viuvez ou à anulação do casamento, visa a lei a impedir que se crie uma nova presunção de paternidade antes do fim da vigência da primeira. Note-se, contudo, que o objetivo do legislador nem sempre é alcançado: tratando-se de impedimento meramente proibitivo, só pode ser argüido por um dos parentes designados no art. 190 (no novo Código, art. 1.524); nem mesmo o Oficial do Registro Civil ou o Juiz celebrante podem fazê-lo. É fácil se perceber que, freqüentemente, realizar-se-á um casamento com infração ao impedimento, podendo surgir o conflito de presunções se a mulher der à luz algum filho após 180 dias do segundo casamento, mas antes de completados 300 dias da dissolução do primeiro.


[4] A imprescritibilidade foi acrescida na Câmara dos Deputados; não constava do projeto original e do texto consolidado pelo Senado. O fundamento para a disposição foi um paralelismo com o art. 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº. 8.069/90), que prevê a imprescritibilidade da ação de investigação de paternidade, comparação esta que nos parece inadmissível.


[5] Disposição semelhante constava do art. 1.603 do texto consolidado pelo Senado, sendo suprimido pelo Sr. Relator na Câmara dos Deputados, sob o questionável argumento “de não mais coadunar-se o dispositivo com a atual evolução do Direito de família, a substituir a verdade ficta pela verdade real, amparado pelo acesso aos modernos meios de produção de prova” (Relatório preliminar encaminhado ao Senado, p. 20).


[6] A matéria constava, um pouco menos restrita, nos arts. 1.605 e 1.606 do texto consolidado pelo Senado, e foi suprimida na Câmara, por entender o Relator se acharem “prejudicados, pelos mesmos fundamentos que determinam a supressão do artigo precedente. Ambos os dispositivos apresentam-se limitativos à obtenção da verdade real sobre a paternidade, o que não mais se harmoniza com os avanços científicos capazes da determinação da paternidade com rigor” (Relatório preliminar encaminhado ao Senado, p. 24).



*Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Unipar. Mestre em Direito Civil pela Universidade Estadual de Maringá. Doutorando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo-USP. Professor de Direito de Família e das Sucessões da Unifoz, da Unipar, da Escola do Ministério Público e da Escola da Magistratura do Paraná. Promotor de Justiça no Paraná. Autor dos livros Separação e divórcio: teoria e prática, ed. Juruá, 3. edição; Aplicação da pena, ed. Forense (2. edição no prelo); Responsabilidade do Estado por atos de seus agentes, ed. Atlas; Ação declaratória de constitucionalidade, ed. Juruá; Abuso do direito, ed. Juruá; Reparação civil no direito de família, ed. Juruá (no prelo); Novo Código Civil comparado e comentado (7 volumes), ed. Juruá (no prelo), e de diversos artigos publicados em diversas revistas jurídicas



Disponível em: http://www.mundojuridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp?codigo=275

Acesso no dia: 21.11.05