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A fixação do dano moral e a pena

 

 

Fernando Mil Homens Moreira; Atalá Correia *

 

 

"É próprio dos tempos civilizados procurar moldar a sanção de tal forma que venha a ter eficácia satisfativa e não vingativa ou penal, proporcionando-a ao conteúdo da obrigação para que o credor seja, quanto possível, integralmente satisfeito, recebendo tudo que tem direito" (LIEBMAN, Tratado de execução, n.1 p. 15)

SUMÁRIO:1. Introdução. 2. Critérios de fixação do dano moral. 3. Da opinião dos doutrinadores. 4. O conceito de pena. 5. Das justificativas levantadas pela doutrina no intuito de justificar o caráter punitivo. 6. A punição nos danos morais e a Constituição. 7. Da exclusão do caráter penal dos danos morais pela especial destinação da reparação ao lesado. 8. Comparações com o sistema norte-americano. 9. Conclusão.

 

1. INTRODUÇÃO

O objeto do presente estudo é uma analise, ainda que superficial, dos critérios estabelecidos pela doutrina para a fixação de danos morais por arbitramento. Em tal investigação ter-se-á em vista principalmente os princípios constitucionais de direito civil.

Para tanto, parte-se do pressuposto que o dano moral é indenizável. Deixam-se de lado todas as questões que afligiram os juristas nacionais durante décadas até a vinda da Constituição Federal de 1988, que, pela prescrição de seu art. 5º, V e X, CF/88, não deixa mais espaço para tal discussão.

Se parece certo que não há um pretium doloris, também não é menos verdade que alguma compensação deve ser estabelecida. Deixar o agente do ato ilícito sem sanção jurídica sem dúvida é mais injusto e antijurídico do que estabelecer critérios para que se compense o lesado.

Portanto, a chamada indenização por danos morais não indeniza, mas somente compensa. A compensação não repara o sofrimento, apenas o atenua, proporcionando um benefício futuro.

 

2. CRITÉRIOS DE FIXAÇÃO DO DANO MORAL

Pois bem, tão certa quanto a indenizabilidade do dano moral é sua subjetividade. Muitos foram os juristas que tentaram, e tentam, estabelecer um critério justo para que dor e pecúnia sejam reduzidas a um denominador comum. Tal tarefa tem se revelado como uma das mais árduas do direito contemporâneo. Efetivamente, a ninguém é dado saber quanto o próximo sofreu.

No entanto, como dito, não é pela dificuldade de se encontrar um valor para a compensação, que se deixará de fixá-la. Neste diapasão, a doutrina pátria aponta basicamente três métodos para a fixação do quantum devido a título de compensação pelos danos morais causados.

O primeiro é o consensual. Por este critério, as partes podem transigir e chegar a um entendimento comum acerca do montante devido. Parece não apresentar maiores problemas, pois, além de envolver interesses meramente privados, é a forma mais efetiva de pacificação social entre partes iguais.

Se não há consenso, a única solução viável é a submissão dos interesses privados ao juízo de um terceiro. No presente estudo só teremos em mente a submissão à jurisdição estatal. Deixaremos de lado a composição de interesses por juízo arbitral, que a princípio, não está afastada.

Para a solução judicial apresentam-se outros dois métodos de fixação. A compensação tarifada (ou legal) e a por arbitramento judicial. Pela primeira, a lei estabelece margens fixas para a indenização. Para determinado agravo sofrido pela vítima, passa a ser possível uma indenização de valores que variam no intervalo entre "x" e "y". É o exemplo do que ocorre na Lei de Imprensa (Lei nº. 5.250 de 9 de fevereiro de 1967), que estabelece um teto máximo de 200 salários mínimos (vide artigos 51 e 52) (1).

Quando não se encontra uma solução pelos métodos anteriores, resta submeter a fixação do quantum debeatur ao arbitramento judicial. Assim, o juiz através de critérios pré-estabelecidos avalia a extensão do dano moral e obriga o ofensor a repará-lo diretamente. Se isto é impossível, toma lugar a reparação in pecunia, determinando-se qual quantia será suficiente à compensação. Obviamente a tarefa não é das mais fáceis. Uma eventual supervaloração do dano corresponde a um enriquecimento sem causa do lesado. Por outro lado, a fixação de um valor subestimado não compensa o dano moral.

Nossa análise se debruçará sobre esta última espécie de técnica para a arbitragem do quantum que compensará o dano moral.

 

3. DA OPINIÃO DOS DOUTRINADORES

Sem dúvida, as lições do prof. Carlos Alberto Bittar vieram ao encontro dos que ansiavam por certeza num campo de tantas dúvidas. Segundo seu magistério, o ressarcimento por danos morais deve se balizar em dois pontos: a) a intensidade do dano sofrido; b) a peculiar situação econômica do agente e seu dolo.

Em relação ao último critério esclarece o seguinte:

"Recomenda-se, também, em atos ofensivos a aspectos morais, que a fixação do quantum obedeça a critério de sancionamento rigoroso, como meio de desestímulo a novas investidas (como, por exemplo, no âmbito de violações a aspectos da personalidade humana, ou a criações intelectuais, em que o valor da indenização deve ser fixado em níveis que desestimulem a repetição da prática: assim, por exemplo, no uso abusivo de determinada criação - falta de autorização autoral, ou extrapolação contratual - deve a reparação compreender soma que ultrapasse os valores habituais da contratação normal, exatamente como sanção ao ilícito" (2).

Tais critérios encontram fundamento legal a partir da interpretação extensiva do art. 53 da Lei 5.250/67:

"No arbitramento da indenização em reparação do dano moral, o juiz terá em conta, notadamente:

I - a intensidade do sofrimento do ofendido, a gravidade, a natureza e repercussão da ofensa e a posição social e política do ofendido;

II - a intensidade do dolo ou o grau da culpa do responsável, sua situação econômica e sua condenação anterior em ação criminal ou cível fundada em abuso no exercício da liberdade de manifestação do pensamento e informação;

III - a retratação expontânea e cabal, antes da propositura da ação penal ou cível, a publicação ou transmissão da resposta ou pedido de retificação, nos prazos previstos na lei e independentemente de intervenção judicial, e a extensão da reparação por esse meio obtido pelo ofendido."

Sérgio Pinheiro Marçal, do "Pinheiro Neto – Advogados" em artigo publicado no Boletim do 3º RTD, de São Paulo (setembro/97, n.126), afirma que "o que temos visto hoje, é uma rápida mudança de um sistema que amparava a quase irresponsabilidade por danos morais para um sistema que perigosamente vem procurando se aproximar dos padrões norte-americanos dos punitive damages. Essa mudança se deve não às previsões legais feitas pela Constituição Federal e pelo Código de Defesa do Consumidor, mas sim a alguns julgados que vêm tentando consolidar na jurisprudência a chamada ‘teoria do valor do desestímulo."

Louvável a iniciativa do ilustre colega em insurgir-se contra essa distorção da fixação da indenização por danos morais, como querem alguns fazer, no entanto, gostaríamos de aproveitar a iniciativa e tratar o tema com um pouco mais de profundidade.

RUI ESTOCO, comentando o artigo acima, assim posiciona-se

"A busca de indenizações milionárias e a utilização do instituto da responsabilidade civil como fonte de enriquecimento devem ser combatidas e veementemente repelidas.

Mas cabem alguns reparos.

O primeiro está em que a ‘teoria do valor do desestímulo’ não tem apenas o sentido e dimensão que se buscou emprestar-lhe.

Nem mesmo pode ser repudiada se adequadamente aplicada, em associação com outros critérios que o caso concreto exigir.

Também não se identifica à perfeição com os padrões americanos dos punitive damages.

(...)

Ademais a tendência moderna é a aplicação do binômio punição e compensação, ou seja, a incidência da teoria do valor do desestímulo (caráter punitivo da sanção pecuniária) juntamente com a teoria da compensação, visando destinar à vítima uma soma que compense o dano moral sofrido.

(...)

Não se há de repudiar a teoria do valor do desestímulo enquanto critério, pois o propósito de desestimular ou alertar o agente causador do mal com a objetiva imposição de uma sanção pecuniária não significa a exigência de que componha um valor absurdo, despropositado e superior às forças de quem paga; nem deve ultrapassar a própria capacidade de ganhar da vítima e, principalmente, a sua necessidade ou carência material, até porque, se nenhum prejuízo dessa ordem sofreu, o valor apenas irá compensar a dor, o sofrimento, a angústia etc. e não reparar a perda palpável, o ressarcimento dito material." (1)

CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA assim entende:

"Quando se cuida do dano moral, o fulcro do conceito ressarcitório acha-se deslocado para a convergência de duas forças: caráter punitivo, para que o causador do dano, pelo fato da condenação, se veja castigado pela ofensa que praticou; e o caráter compensatório para a vítima, que receberá uma soma que lhe proporcione prazeres como contrapartida do mal sofrido." (2)

Dentre os adeptos da tese, alguns são ainda mais rigorosos quanto ao segundo aspecto de fixação, chegando a afirmar:

"Quanto à medida para garantir que a indenização signifique verdadeira punição para o ofensor, lembramos que, segundo a melhor doutrina, a reparação do dano moral não tem como objetivo apenas compensar o ofendido, mas também punir o ofensor" (SILVA, Américo Luís da. O Dano moral e sua reparação civil. São Paulo: RT, 1999. p. 320) – grifo nosso.

Ainda que sejam de aceitação praticamente unânimes na doutrina e jurisprudência pátria, necessário tecer algumas ponderações sobre tais critérios (compensação + punição). O caráter punitivo ou de desestímulo, não raro, tem sido exacerbado, através da fixação de valores muito altos, para que o réu não reincida na prática do mal causado.

Data maxima venia dos doutos mestres, não podemos concordar com referido entendimento, notadamente no que tange ao caráter punitivo (ou do desestímulo), que não pode prosperar em nosso sistema.

A ostensiva punição do agente não se concilia com o art. 5º, XXXIX, CF/88, cuja dicção não deixa margem a dúvidas: "não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal". Com efeito, ao se atribuir ao juiz poderes para que ele, se valendo do seu prudente arbítrio, estabeleça "compensação punitiva", cria-se pena sem lei prévia cominação legal.

Deve-se ressaltar que a CF não traz qualquer dispositivo que estabeleça que o causador do dano moral deva ser punido, pois o inciso X do artigo 5º, da CF, que trata da reparação do dano moral, assim dispõe: "são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação".

Em verdade, quem causa dano moral está obrigado a compensar o dano, e somente compensar, pois assim dispõe a norma constitucional supra mencionada. Não poderia o causador de dano moral além de compensar o dano cometido, ser punido com um pagamento de indenização de grande e despropositada monta como forma de punição ou desestímulo à nova prática de tal ato.

Ademais, segundo as regras da hermenêutica jurídica, não se pode dar aplicação extensiva em matéria de pena, (caráter punitivo ou de desestímulo da indenização). Isso porque o artigo retro citado prevê somente a obrigação de reparar o dano, portanto não se poderia pretender aplicar uma pena com fundamento em tais dispositivos legais.

Frise-se, antes de mais nada, que, não se questiona aqui a compensação e a efetiva reparação do dano moral em si, nem a questão da amplitude que deve ser dada à tutela do bem moral, apenas contesta-se o caráter punitivo que querem aplicar à compensação por danos morais.

No entanto, para uma perfeita compreensão da questão aqui levantada faz-se necessária uma prévia análise da natureza jurídica da pena. O caráter punitivo da compensação por danos morais faz com que ela seja propriamente uma pena? Vejamos.

 

4. O CONCEITO DE PENA.

Para Damásio Evangelista de Jesus, "pena é a sanção aflitiva imposta pelo Estado, mediante ação penal, ao autor de uma infração (penal), como retribuição de seu ato ilícito, consistente na diminuição de um bem jurídico, e cujo fim é evitar novos delitos" (3)

De tal conceito, exsurgem as seguintes características fundamentais: a) trata-se de sanção jurídica a ato ilícito; e b) finalidades retributiva e preventiva.

Efetivamente, na ciência do direito, ao se estudar normas jurídicas, tem-se em mente sempre uma estrutura básica. A norma jurídica sempre prevê determinadas hipóteses (fattispecie ou tabtstand), a ela atribuindo certas conseqüências que devem ser (se "A" é, "B" deve ser). Se a hipótese normativa é desejada por motivos de política do direito, sua conseqüência é um estímulo, um subsídio ou um auxílio estatal institucionalizado. Por outro lado, se não desejada, diz-se que a hipótese é de ato ilícito, porque contrária ao ordenamento jurídico. Sua conseqüência é, então, uma sanção (coerção institucionalizada).

Ao termo "sanção" se dá no presente estudo uma denotação de dever-ser. Sanção não é, portanto, sinônimo de pena ou de castigo, como muitas vezes ocorre no uso popular da língua. Sanção é a conseqüência jurídica atribuída a um ato ilícito.

Assim, à prática de um ato ilícito do qual em nexo de causalidade resulte dano ao patrimônio ou à direito não patrimonial de terceiro, sempre é atribuída uma conseqüência jurídica mínima. Em verdade, tal forma consubstancia-se no princípio jurídico do nemen laedere. Se houve lesão a bens de terceiros, a lei atribui, com fundamento na culpa ou no risco, o dever de indenizar as perdas e danos (danos emergentes e lucros cessantes) ou de compensar os danos morais. Compensação, indenização e pena são, desta forma, espécies de sanções jurídicas.

O que diferencia a pena das demais sanções são suas finalidades peculiares (4). A pena é aplicada com a orientação teleológica clara. Não é um fim em si mesma.

Entre os penalistas há a menção a duas finalidades principais. A primeira seria a função retributiva. Por ela a pena é o combate do mal com o mal. Prega-se que o infrator deve expiar suas faltas pelo sofrimento de um mal equivalente àquele que causou a terceiro.

Já pela finalidade preventiva pode ser subdividida em duas outras mais específicas. A primeira, de prevenção especial, faz com que o agente não volte a cometer outros delitos (corrige o corrigível, intimida o intimidável e neutraliza o incorrigível ou o inintimidável (5)). A segunda, de prevenção geral, faz com que a coletividade evite a prática delituosa. (6) Para atender a estas duas finalidades (retributiva e preventiva) é essencial, portanto, que a pena varie de acordo com o dolo, a culpa e culpabilidade do agente.

Como se pode perceber na indenização por danos materiais, não há qualquer finalidade desta espécie. Não há como encontrar nesta sanção civil qualquer caráter penal. O fim da sanção civil de indenização é meramente o de sanar o dano. Aquele que causa um dano só está obrigado a reestabelecer as coisas a seu status quo ante e, na impossibilidade, a ressarcir exatamente os prejuízos causados. Quem perde o livro de um colega, por exemplo, deve comprar-lhe outro igual ou indenizar-lhe o valor corresponde ao bem.

A lei civil não faz com que o agente indenize mais que o efetivo prejuízo. Se o ordenamento jurídico estabelecesse um plus indenizatório, o faria na intenção de que o agente não voltasse a delinqüir, quer pela retribuição, quer pela prevenção.

Como fica claro, o caráter punitivo que se tem atribuído a reparação dos danos morais dá ao instituto a mesma natureza da pena. A compensação, pelo que entende a doutrina, tanto quanto a pena criminal, deve variar na medida da culpabilidade do agente, tendo como finalidade a retribuição e a prevenção. Inescusável, portanto, a não submissão ao princípio constitucional da legalidade.

Com a prevalência do caráter punitivo da reparação dos danos morais, fere-se, ainda, o princípio do non bis in idem. O agente que provoca lesão corporal grave, por exemplo, responderá criminalmente por sua ação, estando sujeito a pena restritiva de liberdade e multa (art. XX, Código Penal). Além disto indenizará os danos materiais e será punido novamente quando da compensação dos danos morais.

Além disto, cumpre mencionar que a punição infligida através da compensação dos danos morais passa aos herdeiros do ofensor, o que é inadmissível no direito contemporâneo.

A endossar a opinião aqui sustentada é a lição de Andrea Von Tuhr:

"La ley sólo entiende por daño el daño patrimonial, pero no los "daños morales", o sean los quebrantos y dolores físicos o de ordem moral que se le producen al hombre cuando ilícitamente se atenta contra su persona o se invade la esfera de sus personales interesses. A diferencia del daño patrimonial que, bien sea mediante reposición en especie o pago em dinero, puede indemnizarse plenamente, restaurando el patrimonio en el estado que presentaría de no haber ocurrido el suceso dañoso. Los quebrantos morales no son susceptibles de reparación mediante recursos jurídicos. Lo que sí cabe, en cierto modo, es compensarlos, o por mejor decir, contrapersalos, asignando al ofendido uma cantidad de dinero a costa del culpable. La ley ordena este precedimiento en una serie numerosa de casos, bajo el nombre muy adecuado de "satisfacción". El lesionado tiene de este modo un lucro patrimonial, que puede destinar a procurarse las satisfacciones ideales o materiales que estime oportunas. Esto, y la conciencia de que los medios para lograrlo salen del culpable, contribuirá a compensar quebranto que le haya producido la agresión y a acallar esse sentimiento de venganza innato em el hombre, por moderno y civilizado que éste sea.

"Mas la "satisfaccion" a que aludimos no tiene caráter de pena para el culpable, aunque se traduzca, al igual que la multa, em um menoscabo de su patrimonio. Su finalidad no es acarrear este pérdida al culpable, sino procurar un lucro al lesionado. Por eso, em su aspecto pasivo, estas obligaciones pasan a los herderos, exactamente igual que la que versan sobre una indemnización" (VON TUHR, Andrea. Tratado de las obligaciones. Trad. W. Roces. Tomo I. 1ª ed. Madrid, Reus, 1934. p. 88/89).

 

5. DAS JUSTIFICATIVAS LEVANTADAS PELA DOUTRINA NO INTUITO DE JUSTIFICAR O CARÁTER PUNITIVO.

Vejamos quais justificativas tem sido levantadas pela doutrina e jurisprudência para a aceitação daquilo que parece ser clara punição sem prévia lei.

Em sucinto resumo poderíamos elencar as seguintes justificativas:

a)a punição decorre do neminem laedere;

b)a punição é intrínseca ao dano moral, que é constitucionalmente previsto;

c)não há pena porque esta implica em multa em favor do Estado, enquanto que a compensação favorece o lesado;

Analisaremos a seguir estes fundamentos levantados:

 

6. A PUNIÇÃO NOS DANOS MORAIS E A CONSTITUIÇÃO.

Como primeiro exemplo, tomemos a lição de Yussef Cahali que, ao tratar do tema, assim fundamenta sua posição quanto ao caráter punitivo da indenização por danos morais: "parece mais acertado dizer-se que o mecanismo protetivo da norma geral do ressarcimento neminem laedere identifica-se pela sua natureza mista: sancionatória e reparadora, ao mesmo tempo." (3)

No entanto, não se pode admitir que na expressão, contida no inciso X, do artigo 5º, da CF, ("são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação"), correspondente ao neminem laedere, esteja inserido um outro sentido que não o meramente reparatório e compensatório do dano.

O caráter de valor de desestímulo, como alguns querem dar à indenização por danos morais, é uma excepcionalidade justamente por não estar contida expressamente na norma.

Segundo ensina Maximiliano, as regras de hermenêutica quando se tratar de excepcionalidade em matéria punitiva assim devem ser interpretadas:

"Consideram-se excepcionais, quer estejam insertas em repositórios de Direito Comum, quer se achem no Direito Especial, as disposições : a) de caráter punitivo, quando se não referem a delitos, porém cominam multa; indenização (...); q) enfim, introduzem exceções, de qualquer natureza, a regras gerais, ou a um preceito da mesma lei, a favor, ou em prejuízo, de indivíduos ou classes da comunidade. (4)

E continua o hermeneuta:

"A rubrica – Leis Penais, aposta, a este capítulo, compreende todas as normas que impõem penalidades; e não somente as que alvejam os delinqüentes e se enquadram em Códigos criminais. Assim é que se aplicam as mesmas regras de exegese para os regulamentos policiais, as posturas municipais e as leis de finanças, quanto às disposições cominadoras de multas e outras medidas repressivas de descuidos culposos, imprudências ou abusos, bem como em relação às castigadoras dos retardatários no cumprimento das prescrições legais. Os preceitos mencionados regem, também, disposições de Direito Privado, de caráter punitivo: as relativas à indignidade do sucessor, por exemplo, e diversas concernentes à falência. Toda norma imperativa ou proibitiva e de ordem pública admite só a interpretação estrita. (grifado e destacado)

Sabiamente o Codex Juris Canonici, no c.19; estabeleceu: Leges quœ pœnam statuunt, aut liberum jurium exercitium, coarctant, aut exceptionem a lege continent, stricttœ subsunt interpretationi: "as leis que estatuem pena, ou coartam o livre exercício de direitos, ou contêm exceção a preceito geral, estão sujeitas a exegese estrita. (5)

Além disto, é premente que se dê a maior eficácia possível a todas as normas constitucionais. Assim, se uma norma pode ser interpretada de duas formas, sendo que uma delas fere uma outra norma enquanto outra não fere, sempre se dará preferência à primeira interpretação. A tal método exegético dá-se o nome de interpretação conforme a Constituição.

O caso em discussão exige exatamente esta interpretação conforme. Da expressão "danos morais" extraem-se dois sentidos: um prevê a punição e o outro não. Ocorre que o primeiro, como visto, fere outro princípio constitucional. Já a interpretação que não atribui nenhum caráter punitivo está em acordo com todas as demais normas constitucionais, não devendo ser preterida em benefício do sentido anterior.

Nada obstante, conferir caráter punitivo à compensação por danos morais com base na Constituição Federal é ler onde não está escrito. É, outrossim, propugnar pela punição com base somente em nossa Carta Magna, prescindindo da Lei, que tem o fim precípuo de estabelecer os limites para a pretensão punitiva estatal.

O brilhante ensinamento do constitucionalista Luís Roberto Barroso é conclusivo sobre esta questão:

"Em seus clássicos Comentários, escreveu Joseph Story que as palavras de uma Constituição devem ser tomadas em sua acepção natural e óbvia, evitando-se o indevido alargamento ou restrição de seu significado.

A doutrina, de forma um tanto casuística, procura catalogar as hipóteses de interpretação restritiva e extensiva. Há certo consenso de que se interpretam restritivamente as normas que instituem as regras gerais, as que estabelecem benefícios, as punitivas em geral e as de natureza fiscal.

A busca de um método jurídico de objetividade tão plena quanto possível, e bem assim da neutralidade do intérprete, foi objeto de um dos mais célebres escritos do direito constitucional norte-americano: Em busca de princípios neutros de direito constitucional, do Professor da Universidade de Columbia Herbert Wechsler, publicado em 1959. O trabalho se inseriu no contexto de uma ampla crítica conservadora às decisões proferidas pela Suprema Corte sob a presidência de Earl Warren (1953-1969), dentre as quais se destacou a revolucionária decisão de integração racial proferida em Brown vs. Board of Education. Em sua condenação do ativismo judicial, o autor procura traçar uma linha distintiva entre a atuação do Judiciário e a dos outros dois Poderes. Em uma das mais inspiradas páginas do credo liberal-conservador, escreveu Wechsler:

‘O que caracteriza as decisões judiciais, em contraste com os atos dos outros Poderes, é a necessidade de que sejam fundadas em princípios coerentes e constantes, e não em atos de mera vontade ou sentimento pessoal. Discordo assim, com veemência, daqueles que, aberta ou encobertamente, sujeitam a interpretação da Constituição e das leis um ‘teste de virtude’, para verificar se o resultado imediato limita ou promove seus próprios valores e crenças.

Quem julga com os olhos no resultado imediato, e em função das próprias simpatias ou preconceitos, regride ao governo dos homens, e não das leis. Se alguém toma decisões levando em conta o fato de que a parte envolvida é um sindicalista ou um contribuinte, um negro ou um separatista, uma empresa ou um comunista, terá de admitir que pessoas de outras crenças ou simpatias possam, diante dos mesmos fatos, julgar diferentemente. Nenhum problema é mais profundo em nosso constitucionalismo do que este tipo de avaliação e de julgamento ad hoc’.

O primeiro fundamento da teoria de Wechsler é o de que as decisões constitucionais devem ser motivadas. Cabe aos tribunais expor os autênticos fundamentos de seus julgados e desenvolver claramente cada fase do raciocínio que conduziu ao resultado produzido. Essas decisões, e sua fundamentação, devem obedecer a princípios, isto é, a critérios que podem ser formulados e postos à prova em um exercício de dialética, e que não obedecem somente a um desígnio da vontade. Por fim, esses princípios devem ser neutros, de modo que as decisões tenham lastro em análises e razões que desde logo transcendam ao resultado imediato que se alcança. Pode-se dizer que alguém se utiliza de princípios neutros se estiver disposto a segui-los em outras situações em que eles sejam aplicáveis, desde que com isso não se chegue a um resultado absurdo.

As idéias de Wechsler têm razoável apelo ao espírito e é possível afirmar que elas são desejavelmente aplicáveis em boa parte da atividade de interpretação judicial, inclusive constitucional. Elas não deixam de ser um tempero necessário a uma perspectiva diametralmente oposta das decisões fundadas exclusivamente nos resultados. Nenhum juiz, lembra Enrique Alonso García, orgulha-se de não ser capaz de reconduzir suas decisões a determinados princípios gerais. Embora possam ocorrer hipóteses em que o juiz primeiro escolhe o resultado e somente após procura fundamentá-lo, a necessidade de decisões lastreadas em princípios reduz os excessos das decisões puramente result oriented..

Desde que o Iluminismo consagrou o primado da razão, com o abandono de dogmas e de preconceitos, o mundo construído pela ciência aspira à objetividade. As conclusões divulgadas por um membro da comunidade científica devem poder ser verificadas e comprovadas pelos demais. A racionalidade do conhecimento procura despojá-lo das crenças e emoções subjetivas, puramente voluntaristas, para torná-lo impessoal; na medida do possível. A medida do possível variará imensamente, e em poucas áreas enfrentará dificuldades como no direito. (6)

 

7. DA EXCLUSÃO DO CARÁTER PENAL DOS DANOS MORAIS PELA ESPECIAL DESTINAÇÃO DA REPARAÇÃO AO LESADO.

Podemos, aqui, novamente mencionar a posição de Américo Luiz Martins da Silva para quem há uma sutil diferença entre multa pecuniária (pena) e reparação do dano moral. A primeira é devida ao Estado, enquanto a segunda é devida ao lesado (7).

Hans Kelsen, em sua Teoria Pura do Direito, sustenta a mesma opinião:

"Neste caso existe uma certa semelhança entre pena patrimonial e execução. Ambas são execução forçada de um patrimônio. Distinguem-se uma da outra pelo fato de o valor patrimonial compulsoriamente subtraído ir, no caso da pena patrimonial, que normalmente consiste em dinheiro, para um fundo público (caixa estadual ou municipal), enquanto que, no caso da execução, tal valor é atribuído ao lesado para indenização do prejuízo material ou moral, no que se revela um fim determinando pela ordem jurídica que, no caso da pena, não existe" (KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 122).

Tais autores realmente realçam um ponto importante da questão. Todavia, a especial destinação da reparação por danos morais não retira o caráter de pena que a ela tem sido atribuído. Na busca da natureza de um instituto, no caso a pena, não se pode partir das conseqüências dele advindas, mas somente de seus pressupostos e características imanentes. Falta, assim, a tal diferenciação método científico.

Como se isto não bastasse, a história do direito é pródiga em exemplos de penas privadas. Efetivamente, o caráter público da pena é nota característica do Estado Moderno. Esta asserção é endossada por Pasquale Voci (8) que afirma: "nell’ambito della pena, intesa nel più largo senso, comprendente la pena pubblica e la privata. Che, nell’ambito della pena privata, la condanna sia – almeno nel diritto storico – necessariamente pecuniaria e venga pronunciata a favore dell’offenso, non ha grande importanza, e lo mostrerò tra poco".

E ainda:

"In effetti, nel periodo primitivo lo Stato è ancor troppo debole per assumersi il compito della repressione di tutti i reati, e lascia che, per alcuni, organo della repressione sia la gente offesa: ciò importa che ad essa sia fovuta la pena, così com’era essa che si soddisfaceva sul corpo del reo. Ne periodo storico, lo Stato – divenuto il dominatrore e il distruttore delle gentes – non assume sempre com suo l’interesse alla punizione del reo: e allora si limita, per mezzo del processo, a sorvegliare la via per cui si giunge all’irrogazione della pena, mentre, nell’ambito del diritto sostanziale, recepisce la consuetudine fissante il tasso di composizione. Ne segue che la pena, conforme a questa sua struttura privatistica, ha comune con il risarcimento l’atribuzione di una somma al danneggiato attore.

 

8. COMPARAÇÕES COM O SISTEMA NORTE-AMERICANO.

Outra reflexão que se faz necessária é, venia concessa, de que o caráter de desestímulo da indenização por danos morais do sistema normativo brasileiro não seria similar aos punitive damages do sistema norte-americano.

De lege ferenda, mesmo entendendo que sua aplicação no Brasil não seria possível, pelo menos com o atual sistema normativo, mas que por ser algo já há muito tempo utilizado lá, e ainda incipiente cá, entendemos que uma comparação é merecida, a fim de que lições possam ser tiradas e aprimoramentos sejam feitos em nosso sistema, para tanto vejamos como entendem os norte-americanos.

O instituto do punitive damages (ou exemplary damages) existente no sistema legal norte-americano, consiste em impor uma indenização alta para punir e dissuadir o transgressor da lei, conforme as palavras do Juiz Stevens da Suprema Corte dos Estados Unidos, na fundamentação de sua decisão por ocasião do julgamento do caso BMW x Gore (7), em que decidiu que o referido instituto viola o princípio do due process of law (presente na 14ª Emenda da Constituição americana e em nossa Constituição, no inciso LIV, do art. 5º):

"Punitive damages may properly be imposed to further a State''s legitimate interests in punishing unlawful conduct and deterring its repetition." (Indenização punitiva pode ser corretamente aplicada para promover o legítimo interesse do Estado em punir condutas ilegais e em prevenir sua repetição – versão livre dos autores).

Ora, qual é a diferença entre a indenização com caráter de desestímulo, como querem alguns aplicar no Brasil, e o instituto dos punitive damages dos EUA?

E o Juiz Stevens continua sua fundamentação, demonstrando as razões de seu posicionamento:

Em nosso sistema federal, os Estados necessariamente têm a considerável flexibilidade em determinar o nível dos punitive damages que será permitido em diferentes classes de casos e em todo o caso particular. A maioria dos Estados que autorizam os exemplary damages fornecem ao júri latitude similar, requerendo somente que a indenização concedida seja razoavelmente necessária para vingar os interesses legítimos do Estado em punir e dissuadir. Somente quando uma concessão puder razoavelmente ser categorizada como excessiva em relação a estes interesses, entrará na zona da arbitrariedade que viola a cláusula do devido processo legal da décima quarta emenda. Por essa razão, a investigação federal de excessividade começa adequadamente, com a identificação se a concessão de uma indenização servirá aos propósitos dos interesses estatais. Nós focalizamos consequentemente nossa atenção primeiro no alcance dos legítimos interesses do Alabama em punir a BMW e em deter uma futura má conduta. (– versão livre dos autores (9) )

O Juiz Stevens pondera alguns indícios de razoabilidade ou não da concessão de uma indenização por danos morais:

a) Grau de censurabilidade da conduta:

Talvez o indício mais importante da razoabilidade da indenização por punitive damages seja o grau de censurabilidade da conduta do réu. Como a corte indicou quase 150 anos atrás, os exemplary damages impostos a um réu devem refletir "a enormidade de sua ofensa." Este princípio reflete o ponto de vista aceito de que alguns erros são mais censuráveis do que outros. Assim, nós dissemos que "os crimes não violentos são menos sérios do que os crimes marcados pela violência ou pela ameaça de violência." Similarmente, a "trapaça e o engano", são mais repreensíveis do que a negligência. A Suprema Corte de West Virgínia e os juízes desta Corte colocaram a ênfase especial no princípio que os punitive damages não podem ser "brutalmente desproporcionais à severidade da ofensa." Certamente, para Juiz Kennedy, a malícia intencional do réu foi o elemento decisivo em um "caso parecido e difícil". Certamente, a evidência de que um réu tivera repetidamente a conduta proibida ao saber ou ao suspeitar que era ilegal, forneceria a sustentação relevante para o argumento que seria preciso um remédio forte para curar o réu do desrespeito à lei – versão livre dos autores (10).

b) Proporção entre a indenização por danos materiais e a por danos morais

O segundo e, talvez o mais geralmente citado, indício de uma indenização desarrazoada ou excessiva por punitive damages seja sua proporção ao dano material causado ao autor. Veja TXO, 509 E.U., em 459; Haslip, 499 E.U., em 23. O princípio de que os exemplary damages devem manter "um relacionamento razoável " com os danos materiais tem um longo pedigree. Estudiosos identificaram um número de antigos statutes ingleses que autorizavam a concessão de indenizações múltiplas para males particulares. Uns 65 enactments diferentes durante o período entre 1275 e 1753 calculando em dobro, triplo, ou quadruplo a indenização - por punitive damages. Nossas decisões em Haslip e em TXO endossaram o proposição que uma comparação entre a indenização por danos materiais e a punitiva é significativa. Naturalmente, nós rejeitamos consistentemente a noção que a linha constitucional seja marcada por uma fórmula matemática simples, mesmo uma que compare os danos materiais e potenciais à indenização punitiva. Certamente, indenizações baixas por danos materiais podem corretamente suportar uma relação mais elevada do que indenizações altas por danos materiais, se, por exemplo, um ato particularmente intolerável resultar somente em um pequeno dano econômico.

Uma proporção mais elevada pode também ser justificada nos casos em que a lesão seja difícil de detectar ou o valor monetário do dano não econômico seja difícil de determinar. É apropriado, consequentemente, reiterar nossa rejeição a uma aproximação categórica. Mais uma vez, nós retornamos ao que dissemos em Haslip: `Nós não necessitamos, e certamente não podemos, traçar uma linha matemática perfeita entre o constitucionalmente aceitável e o constitucionalmente inaceitável que coubesse a cada caso. Nós podemos dizer, entretanto, que uma preocupação geral com a razoabilidade entre corretamente no cálculo constitucional.’ Na maioria dos casos, a proporção será entre um espectro constitucionalmente aceitável, e a remittitur (faculdade que cabe ao juiz de diminuir o valor de uma indenização excessivamente concedida pelo júri) não será justificada nesta proporção. Quando a proporção for a impressiva 500 para 1, entretanto, a indenização deverá certamente "levantar uma sobrancelha de suspeita judicial" – versão livre dos autores (11).

c) Sanções para ilícitos semelhantes

A comparação da indenização por punitive damages e as penalidades civis ou criminais que poderiam ser impostas para o ilícito compatível, fornece um terceiro indício de excessividade. Como Juiz O''Connor corretamente observou, uma corte de revisão determinada a verificar se uma indenização por punitive damages é excessiva, deveria "conceder acatamento ‘substancial’ aos julgamentos legislativos a respeito das sanções apropriados para a conduta em questão.

Em Haslip, 499 E.U., 23, a Corte considerou que embora a indenização exemplar – exemplary damages – fosse " muito mais excessiva que a multa que poderia ser aplicada" a prisão também era autorizada no contexto criminal. Neste caso a sanção econômica de U$2 milhões imposta à BMW é substancialmente maior do que a multa estatutária prevista para similar ofensa no Alabama e em outras partes.

A sanção imposta neste caso não pode ser baseada na fundamentação de que era necessário deter o ilícito futuro, sem considerar se com remédios menos drásticos poder-se-ia esperar conseguir esse objetivo.

O fato que uma penalidade multimilionária iniciou uma mudança na atitude, não esclarece a pergunta se uma medida menos drástica protegeria adequadamente os interesses dos consumidores do Alabama. Na ausência de antecedentes de desrespeito às exigências estatutárias conhecidas, não há nenhuma base para supor que, um sanção mais modesta não seria suficiente para motivar o pleno respeito à exigência de divulgação, imposta neste caso pela corte suprema do Alabama. – versão livre dos autores (12).

Do que se conclui que, se o intuito fosse punir o ofensor, ainda que sem previsão legal, qualquer condenação excessiva (como caráter de desestímulo) só poderia ser devida ao Estado, e não ao particular ofendido, pois só o Estado é legitimado para aplicar pena, portanto qualquer condenação pecuniária que pretendesse desestimular a reincidência da prática de danos morais só poderia ser devida ao próprio Estado.

E conclui o magistrado norte-americano:

Além disso, nós naturalmente aceitamos o ponto de vista da corte do Alabama de que o interesse do Estado em proteger seus cidadãos das práticas intoleráveis de comércio, justifica uma sanção adicional além à reparação dos danos materiais. Nós não podemos, entretanto, aceitar a conclusão da Corte Suprema do Alabama de que a conduta da BMW era suficientemente intolerável para justificar um sanção que fosse equivalente a uma penalidade criminal severa. (...)

O julgamento é invertido, e o caso adiado para procedimentos adicionais não incompatíveis com esta decisão. – versão livre dos autores (13).

Em vista disso, diante das várias razões acima, entendemos que o modo como se quer aplicar aqui o instituto dos punitive damages, presente no sistema norte-americano, é desregrado e incompatível com as atuais normas brasileiras, podendo levar a consequências desastrosas para o sistema jurídico.

O perigoso caminho do caráter punitivo do dano moral poderá levar a duas consequências de plano verificáveis, (i) a banalização do instituto do dano moral e; (ii) com o aumento da freqüência de indenizações altas, as empresas começarão a tomar providências para o caso de uma possível condenação, seja através da contratação de seguros como ocorre nos EUA ou, seja através de provisionamento no faturamento; cujos custos com toda convicção serão repassados aos consumidores.

A título de exemplo do que ocorre no EUA, em que o instituto dos punitive damages já vem sendo criticado em virtude de casos absurdos, vale citar dois casos famosos ocorridos por lá:

1) Stella Liebeck v. McDonalds

Neste caso, que ficou nacionalmente famoso, Stella Liebeck, uma mulher idosa, derramou café após ter colocado o copo entre suas pernas e tentar retirar a tampa plástica enquanto dirigia. Sofreu queimaduras de terceiro-grau em seus pés, virilha e nádegas. Sustentou que seus ferimentos deram-se por falha do McDonalds, porque serviram o café mais quente do que outros lugares. Um júri concedeu à Stella Liebeck U$2,9 milhões.

2) Diana Du Bois v. Edifício 53 East 75th Street

A autora residia em um apartamento alugado no quarto andar de um edifício em que sete unidades estavam sendo reformadas. A autora alegou que o réu (proprietário) fez com que tivesse a aflição emocional por ser incapaz de viver normalmente em sua própria casa. O réu argumentou que os problemas, tais como o ruído e a poeira, eram conseqüências inevitáveis da construção em outros apartamentos no edifício, que estavam sendo reformados. O réu ofereceu U$50.000 e a devolução do apartamento. A autora pediu ao júri U$930.000. O júri concedeu U$700.000, dos quais U$200.000 eram compensatórios e U$500.000 como punição ao réu.

 

9. CONCLUSÃO.

A compensação por danos morais não pode ter como fim causar mal (retribuição) e tampouco prevenir outros ilícitos. Sua finalidade exclusiva deve ser a exata medida da compensação do dano, proporcionando-se bem que atenue o sofrimento experimentado. Nisto não há qualquer punição. A interpretação não pode ser diversa, em que pese o argumento da mais gabaritada doutrina. Punir pelo arbitramento judicial é conferir poderes ao judiciário sem autorização legal. É ferir direitos e garantias individuais; é a própria negação do Estado Democrático de Direito.

Gostaríamos aqui, de firmar nossa posição como bem o fez nosso ilustre mestre, o Professor José Ignácio Botelho de Mesquita, para quem "nem é preciso ir tão longe, pois é intuitivo que, em matéria civil, não cabe ao juiz, por sentença, criar multas, que antes não existiam, ou aumentar as que já existissem". (8)

Por fim, por serem lapidares as palavras (9) do Juiz Breyer da Suprema Corte dos Estados Unidos no mesmo recurso ante citado, entendemos que sua conclusão é irretocável, razão pela qual transcreveremos abaixo suas palavras:

Esta preocupação constitucional, presente na Magna Carta, surge da injustiça de privar os cidadãos da vida, da liberdade, ou da propriedade, com a aplicação, não da lei e de devidos processos legais, mas da coerção arbitrária. Requerendo a aplicação da lei, ao invés de um capricho do julgador, tem-se mais do que simplesmente fazer que os cidadãos observem as medidas que podem sujeitá-los à punição; ajuda também assegurar o tratamento uniforme das pessoas, que é a essência da própria lei. – versão livre dos próprios autores (14).

 

BIBLIOGRAFIA

GOMES, Orlando. Obrigações. 9ª ed. Rio de Janeiro. Forense. 1994

SILVA, Américo Luis da. O Dano moral e sua reparação civil. São Paulo: RT, 1999.

JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal. vol. I. São Paulo: Saraiva, 1995.

VON TUHR, Andrea. Tratado de las obligaciones. Trad. W. Roces. Tomo I. 1ª ed. Madrid, Reus, 1934.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

VOCI, Pasquale. Risarcimento e Pena Privata nel Dirito Romano Classico. R. Università di Roma. Milão: Dott. A. Giuffrè, 1939.

AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Dano moral - Lei de imprensa e interpretação conforme a Constituição. in Direito ao Avesso, vol 4. (Esta é uma publicação do Grupo de Direito Privado)

BITTAR, Carlos Alberto. Responsabilidade Civil - Teoria & Prática. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990.

SCHECARIA, Sérgio Salomão et ali. Pena e Constituição. São Paulo: RT, 1995

 

Notas Bibliograficas

1 STOCO, Rui. RESPONSABILIDADE CIVIL E SUA INTERPRETAÇÃO JURISPRUDENCIAL, 4ª ed., revista, atualizada e ampliada, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1999, pp. 761-762.

2 RESPONSABILIDADE CIVIL, Ed. Forense, Rio, 3.º ed., 1992, n. 45, p. 55.

3 CAHALI, Yussef. INDENIZAÇÃO SEGUNDO A GRAVIDADE DA CULPA, Revista da Escola Paulista da Magistratura, Ano l, n. 1, setembro-dezembro/96, p. 26.

4 (5). Pœnalia non sunt extendenda. Interpretatione legum pœnce molliendœ sunt potius quam asperandœ (Digesto, liv, 48, tit.19. – De pœnis, frag. 42) – Não se aplique extensivamente o que é concernente a punição. Na interpretação das leis sejam as penas antes abrandadas, ao invés de agravadas". cfr. MAXIMILIANO, Carlos. HERMENÊUTICA E APLICAÇÃO DO DIREITO. Rio de Janeiro, Forense, 11ª ed. 1991, pp. 225.

5 Cfr. Caldara, op. cit, nº 195; Francesco Degni – L’Interpretazione della Legge, 1909, p. 23; nota 2, e p 38, nºs 13e 20; Mário Rotondi, monografia in Nuovo Digesto Italiano, 1937-1940; verbo "Legge" (Interpretazione della), nº 4. apud MAXIMILIANO, Carlos. op. cit, p. 328.

6 BARROSO, Luís Roberto. INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: FUNDAMENTOS DE UMA DOGMÁTICA CONSTITUCIONAL TRANSFORMADORA. São Paulo, Saraiva, 1996, pp.252-255.

7 BMW of North America, Inc. v. Gore, 517 U.S. 559 (1996), Suprema Corte do Estados Unidos da América. Opinion of Justice Stevens.

8 BOTELHO DE MESQUITA, José Ignácio. O DANO MORAL NA LEI DE IMPRENSA, O ESTADO DE SÃO PAULO, 12.9.97.

9 BMW of North America, Inc. v. Gore, 517 U.S. 559 (1996), Suprema Corte do Estados Unidos da América. Opinion of Justice Breyer.

 

Notas

1 Para uma crítica a este método vide AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Dano moral - Lei de imprensa e interpretação conforme a Constituição. in Direito ao Avesso, vol 4. (Esta é uma publicação do Grupo de Direito Privado)

2 BITTAR, Carlos Alberto. Responsabilidade Civil - Teoria & Prática. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990. p. 77/78.

3 JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal. vol. I. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 457

4 Hans Kelsen é de opinião diametralmente oposta: "A custo será possível determinar o conceito de pena pelo seu fim. Com efeito, o fim da pena não resulta – ou não resulta imediatamente – do conteúdo da ordem jurídica. A interpretação segundo a qual a pena é dirigida, é uma interpretação que também é possível em face de ordenamentos jurídico-penais cujo aparecimento não foi determinado pela idéia de prevenção, mas o foi tão simplesmente pelo princípio de que se deve retribuir o mal com o mal. As penas de morte e de prisão permanecem as mesmas, quer se vise ou não, ao estatuí-las, um fim de prevenção. Sob este aspecto não existe qualquer diferença essencial entre pena e execução (civil), pois também esta pode – sendo, como é, sentida como um mal pelo indivíduo que atinge – ter um efeito preventivo, de tal forma que o fim de indenização se pode combinar, aqui, com o fim de prevenção" (KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1991).

5 ROXIN, Claus. Problemas Fundamentais de Direito Penal. p. 20 apud SCHECARIA, Sérgio Salomão et ali. Pena e Constituição. São Paulo: RT, 1995. p. 100.

6 A questão das finalidades da pena é extremamente controversa entre os penalistas. Além das mencionadas correntes (retributiva e preventiva), há, ainda, teorias mistas que procuram fundir as duas finalidades. Já em menor número pode-se encontrar aqueles que negam qualquer finalidade à punição (para maiores detalhes sobre o tema vide SCHECARIA, Sérgio Salomão. op. cit. ).

7 SILVA, Américo Luis da. O Dano moral e sua reparação civil. São Paulo: RT, 1999. p. 320.

8 VOCI, Pasquale. Risarcimento e Pena Privata nel Dirito Romano Classico. R. Università di Roma. Milão: Dott. A. Giuffrè, 1939. p. 11 – A opinião do autor é muito interessante. A pena seria caracterizada por sua função e estrutura. À toda aplicação de pena corresponde uma respectiva ação penal. A rei persecutio só tem escopo de restabelecer o patrimônio do lesado quanto o ilícito haja subtraído, sendo que seu fim é diretamente patrimonial; a poenae persecutio tem o escopo de punir o réu, ainda que pecuniariamente, sendo que seu fim é atingido através do patrimônio.

9 "In our federal system, States necessarily have considerable flexibility in determining the level of punitive damages that they will allow in different classes of cases and in any particular case. Most States that authorize exemplary damages afford the jury similar latitude, requiring only that the damages awarded be reasonably necessary to vindicate the State''s legitimate interests in punishment and deterrence. (...) Only when an award can fairly be categorized as ‘grossly excessive’ in relation to these interests does it enter the zone of arbitrariness that violates the Due Process Clause of the Fourteenth Amendment. (...) For that reason, the federal excessiveness inquiry appropriately begins with an identification of the state interests that a punitive award is designed to serve. We therefore focus our attention first on the scope of Alabama''s legitimate interests in punishing BMW and deterring it from future misconduct."

10 "Perhaps the most important indicium of the reasonableness of a punitive damages award is the degree of reprehensibility of the defendant''s conduct. As the Court stated nearly 150 years ago, exemplary damages imposed on a defendant should reflect "the enormity of his offense." This principle reflects the accepted view that some wrongs are more blameworthy than others. Thus, we have said that "nonviolent crimes are less serious than crimes marked by violence or the threat of violence." Similarly, "trickery and deceit", at are more reprehensible than negligence. In both the West Virginia Supreme Court and the Justices of this Court placed special emphasis on the principle that punitive damages may not be "grossly out of proportion to the severity of the offense." Indeed, for Justice Kennedy, the defendant''s intentional malice was the decisive element in a "close and difficult case" (...)

Certainly, evidence that a defendant has repeatedly engaged in prohibited conduct while knowing or suspecting that it was unlawful would provide relevant support for an argument that strong medicine is required to cure the defendant''s disrespect for the law."

11 "The second and perhaps most commonly cited indicium of an unreasonable or excessive punitive damages award is its ratio to the actual harm inflicted on the plaintiff. See TXO, 509 U. S., at 459; Haslip, 499 U. S., at 23. The principle that exemplary damages must bear a "reasonable relationship" to compensatory damages has a long pedigree. Scholars have identified a number of early English statutes authorizing the award of multiple damages for particular wrongs. Some 65 different enactments during the period between 1275 and 1753 provided for double, treble, or quadruple damages. Our decisions in both Haslip and TXO endorsed the proposition that a comparison between the compensatory award and the punitive award is significant.

Of course, we have consistently rejected the notion that the constitutional line is marked by a simple mathematical formula, even one that compares actual and potential damages to the punitive award. Indeed, low awards of compensatory damages may properly support a higher ratio than high compensatory awards, if, for example, a particularly egregious act has resulted in only a small amount of economic damages. A higher ratio may also be justified in cases in which the injury is hard to detect or the monetary value of noneconomic harm might have been difficult to determine. It is appropriate, therefore, to reiterate our rejection of a categorical approach. Once again, "we return to what we said... in Haslip: `We need not, and indeed we cannot, draw a mathematical bright line between the constitutionally acceptable and the constitutionally unacceptable that would fit every case. We can say, however, that [a] general concer[n] of reasonableness... properly enter[s] into the constitutional calculus.'' In most cases, the ratio will be within a constitutionally acceptable range, and remittitur will not be justified on this basis. When the ratio is a breathtaking 500 to 1, however, the award must surely "raise a suspicious judicial eyebrow."

12"Comparing the punitive damages award and the civil or criminal penalties that could be imposed for comparable misconduct provides a third indicium of excessiveness. As Justice O''Connor has correctly observed, a reviewing court engaged in determining whether an award of punitive damages is excessive should "accord `substantial deference'' to legislative judgments concerning appropriate sanctions for the conduct at issue.

In Haslip, 499 U. S., at 23, the Court noted that although the exemplary award was "much in excess of the fine that could be imposed," imprisonment was also authorized in the criminal context. In this case the $2 million economic sanction imposed on BMW is substantially greater than the statutory fines available in Alabama and elsewhere for similar malfeasance.

The sanction imposed in this case cannot be justified on the ground that it was necessary to deter future misconduct without considering whether less drastic remedies could be expected to achieve that goal. The fact that a multimillion dollar penalty prompted a change in policy sheds no light on the question whether a lesser deterrent would have adequately protected the interests of Alabama consumers. In the absence of a history of noncompliance with known statutory requirements, there is no basis for assuming that a more modest sanction would not have been sufficient to motivate full compliance with the disclosure requirement imposed by the Alabama Supreme Court in this case."

13 "Moreover, we of course accept the Alabama courts'' view that the state interest in protecting its citizens from deceptive trade practices justifies a sanction in addition to the recovery of compensatory damages. We cannot, however, accept the conclusion of the Alabama Supreme Court that BMW''s conduct was sufficiently egregious to justify a punitive sanction that is tantamount to a severe criminal penalty. (...)

(...)

The judgement is reversed, and the case remanded for further proceedings not inconsistent with this opinion."

14 "This constitutional concern, itself harkening back to the Magna Carta, arises out of the basic unfairness of depriving citizens of life, liberty, or property, through the application, not of law and legal processes, but of arbitrary coercion. Requiring the application of law, rather than a decisionmaker''s caprice, does more than simply provide citizens notice of what actions may subject them to punishment; it also helps to assure the uniform general treatment of similarly situated persons that is the essence of law itself.

 

 

* Advogado em Ribeirão Preto/SP, Pós-Graduado com Especialização em Processo Civil pela Università degli Studi di Milano, em Milão/Itália, tendo como orientador o Titular (Catedrático) da Cadeira de Processo Civil, o Prof. Dr. Giuseppe Tarzia.
* Advogado em São Paulo/SP e mestrando em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco - Universidade de São Paulo.

 

 

Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5891>. Acesso em: 18 jul. 2006.