Os montantes recolhidos ao fundo de interesses difusos podem ser utilizados para a restauração e preservação de bens protegidos pelo tombamento. Os advindos de indenizações por danos ao patrimônio cultural, preferencialmente, devem ser utilizados para a tutela do meio ambiente cultural.
Sumário: 1. Introdução; 2. Tombamento e o dever de preservar os bens tombados; 3. Utilização de Verbas das Esferas Federativas que efetuaram o tombamento; 4. Fundo de Defesa de Direitos Difusos; 5. Tributação; 6. Outras fontes de recursos; 7. Considerações Finais; Bibliografia.
1. Introdução
Inúmeros são os imóveis, públicos e particulares, tombados que amarguram com o abandono de seus proprietários, por falta de recursos, e aguardam o necessário restauro, objetivando a manutenção e a perpetuidade de seus valores culturais para a sociedade atual e as futuras gerações.
Uma notícia alarmante do jornal “O Estado de São Paulo”[1], publicada em janeiro de 2009, revela a situação experimentada pela Capital Paulista:
“Um levantamento realizado pelo jornal O Estado de S. Paulo mostra que 40% dos 1.813 imóveis tombados ou em processo de tombamento de toda a capital estão abandonados, destruídos ou totalmente desconfigurados. No centro, por exemplo, 429 dos 1.272 imóveis históricos da região fazem parte dessa estatística. E isso está longe de ser o pior caso de São Paulo - na zona norte, 79% do patrimônio está abandonado ou destruído, enquanto na zona leste esse índice chega a 94%.”
A Constituição Federal define, em seu artigo 216, que “Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I- as formas de expressão; II – os modos de criar, fazer e viver; III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.”
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Ainda, a Lei Maior, no §1º do artigo 216, determina que: “O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.”
A legislação ordinária impõe aos proprietários de bens tombados o dever de restaurar e conservar o objeto protegido, podendo sofrer sanções administrativas pelo descumprimento.
Contudo, caso o proprietário não tenha recursos financeiros para restaurar e conservar o bem pode solicitar à Administração que realize as obras necessárias à preservação o patrimônio cultural.
Entretanto, em razão das diversas atribuições do Poder Público e do elevado número de solicitações, estas obras, por vezes, não são contempladas com recursos orçamentários suficientes para a adequada preservação.
Demais disso, o ordenamento não prevê contrapartida do proprietário beneficiado com as reformas levadas a efeito pela Administração Pública, podendo se tornar um empecilho à efetiva preservação do bem cultural, porque o Poder Público pode temer que a recuperação de imóveis tombados de propriedade de particular, acarrete em mero benefício pessoal para o proprietário, dependendo da utilização que este conferir ao bem, sem gerar qualquer benesse à sociedade.
Neste diapasão, analisaremos as principais medidas que podem ser adotadas pela Administração Pública na busca da efetiva recuperação e preservação destes bens protegidos e alguns instrumentos que possibilitam angariar recursos para realizar as obras necessárias de recuperação e preservação destes bens protegidos, quando os proprietários carecem de recursos financeiros.
2. Tombamento e o dever de preservar os bens tombados
O Professor Paulo Affonso Leme Machado[2] conceitua o tombamento como:
“O tombamento é uma forma de implementar a função social da propriedade, protegendo e conservando o patrimônio privado ou público, através da ação dos poderes públicos, tendo em vista seus aspectos históricos, artísticos, naturais, paisagísticos e outros relacionados à cultura, para a fruição das presentes e futuras gerações.”
Por seu turno a Professora Maria Sylvia Zanella di Pietro[3] define que:
“O tombamento é forma de intervenção do Estado na propriedade privada, que tem por objetivo a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional, assim considerado, pela legislação ordinária, ‘o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico’ (art. 1º do Decreto-lei nº 25, de 30-11-37, que organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional).”
O Professor Carlos Frederico Marés de Souza Filho[4] assim o define:
“O tombamento é o ato administrativo da autoridade competente que declara ou reconhece valor histórico, artístico, paisagístico, arqueológico, bibliográfico, cultural ou científico de bens que, por isso, passam a ser preservados.”
Uma vez reconhecido ou declarado o valor cultural lato sensu do bem, há de se reconhecer o nascimento de um novo direito da coletividade, que se sobrepõe ao direito individual preexistente, impondo deveres ao proprietário do bem de preservar o valor cultural reconhecido para as presentes e futuras gerações,nessa senda, elucida o Professor Carlos Frederico Marés de Souza Filho[5]:
“Todos os bens, materialmente considerados, sejam ambientais ou não, são públicos ou privados. Os ambientais, porém, independente de serem públicos ou privados, revestem-se de um interesse que os faz terem um caráter público diferente. A diferença está em que, seja a propriedade pública ou particular, os direitos sobre estes bens são exercidos com limitações e restrições, tendo em vista o interesse público, coletivo, nela existente. O interesse público é, neste caso, o reconhecimento coletivo de que o bem cultural deve ser preservado.”
Os bens ao serem tombados passam a ser regidos por um regime jurídico diferenciado, tendo em vista que se reconhece um valor imaterial de caráter cultural imanente, cuja titularidade é da coletividade, embora não retire a natureza privada ou pública do bem, apesar de impor restrições ao proprietário. Assim preconiza o Professor Carlos Frederico Marés de Souza Filho[6]:
“O bem como que se divide em um lado material, físico, que pode ser aproveitado pelo exercício de um direito individual, e outro, imaterial, que é apropriado por toda a coletividade, de forma difusa, que passa a ter direitos ou mínimo interesse sobre ela. Como estas partes ou lados são inseparáveis, os direitos ou interesses coletivos sobre uma delas necessariamente se comunicam à outra.”
Devemos observar que os atuais proprietários são fieis depositários do valor cultural consubstanciado no bem tombado, cujas restrições impostas ao direito de propriedade têm por principal propósito evitar que as futuras gerações sejam tolhidas do seu direito de desfrutar da benesse ou da memória inscrita no bem material.
É premente impedir que a sociedade futura tenha que se contentar com registros históricos dascriações efetivadas pelo homem ou pela natureza, perdidas em razão da voracidade do desenvolvimento ou pelo abandono dos antepassados.
Ademais, a atual sociedade, com capacidade de se autodestruir – considerada uma sociedade de risco[7] –, em elevada aceleração e com gula por lucros extremos – e socialização dos riscos (e prejuízos) – tende a causar danos irreversíveis a todos os aspectos do meio ambiente, incluindo o cultural.
Lembremos que a máxima ética atual, na lição de Hans Jonas[8], estabelece a necessidade da geração atual pactuar com as futuras, de modo que se obedeça a um princípio moral supremo de atuar de forma que os efeitos de suas ações sejam compatíveis com a permanência de uma vida humana genuína.
Todavia, vemos hodiernamente diversos bens fadados à extinção, pois carecem do necessário cuidado, diante da imprudência e abandono dos atuais e anteriores responsáveis, destoando do dever de conservação moral e jurídico.
Prevê o ordenamento jurídico pátrio que o tombamento, definitivo ou provisório, impõe ao proprietário o dever de preservar e recuperar o bem, conforme prevê o artigo 19 do Decreto-lei nº. 25/1937[9], devendo comunicar aos órgãos públicos competentes a necessidade de obras de restauração e conservação caso não tenha recursos para fazê-lo, sob pena de multa.
Ainda, o Decreto-lei nº. 25/1937[10] faculta à Administração que desaproprie o bem tombado ou que realize as obras necessárias à preservação do patrimônio cultural, mas não estipula uma contrapartida do proprietário da coisa[11].
Caso a Administração pretenda determinar um uso de interesse público deverá desapropriar o bem tombado, visto que impor uma finalidade ao imóvel, v.g., obrigar a instalação de um museu, ofenderia o livre exercício do direito de propriedade.
Todavia, a desapropriação – que não resolve a questão da falta de recursos para a restauração e manutenção – demanda a utilização elevada de recursos públicos, podendo acarretar em indesejáveis demandas judiciais, ainda que se sustente que o valor da indenização deva corresponder ao valor venal do imóvel no estado de conservação em que se encontra.
O descumprimento do dever de preservação possibilita a imposiçãode sanções administrativas ao infrator e os recursos provenientes de eventual multa pecuniária devem ser revertidos a fundos destinados à proteção do meio ambiente[12].
O Decreto federal nº. 6.514/2008, que dispõe sobre as infrações e sanções administrativas ao meio ambiente e estabelece o respectivo processo administrativo federal, prevê as seguintes infrações contra o Ordenamento Urbano e o Patrimônio Cultural:
“Art. 72. Destruir, inutilizar ou deteriorar:
I - bem especialmente protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial; ou
II - arquivo, registro, museu, biblioteca, pinacoteca, instalação científica ou similar protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial:
Multa de R$ 10.000,00 (dez mil reais) a R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais).
Art. 73. Alterar o aspecto ou estrutura de edificação ou local especialmente protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial, em razão de seu valor paisagístico, ecológico, turístico, artístico, histórico, cultural, religioso, arqueológico, etnográfico ou monumental, sem autorização da autoridade competente ou em desacordo com a concedida:
Multa de R$ 10.000,00 (dez mil reais) a R$ 200.000,00 (duzentos mil reais).
Art. 74. Promover construção em solo não edificável, ou no seu entorno, assim considerado em razão de seu valor paisagístico, ecológico, artístico, turístico, histórico, cultural, religioso, arqueológico, etnográfico ou monumental, sem autorização da autoridade competente ou em desacordo com a concedida:
Multa de R$ 10.000,00 (dez mil reais) a R$ 100.000,00 (cem mil reais).
Art.75. Pichar, grafitar ou por outro meio conspurcar edificação alheia ou monumento urbano:
Multa de R$ 1.000,00 (mil reais) a R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais).
Parágrafo único. Se o ato for realizado em monumento ou coisa tombada, a multa é aplicada em dobro.”
Desta forma, a omissão que causar a deterioração do bem protegido enseja a aplicação de sanção administrativa ao responsável, assim como as condutas que importem alteração sem prévia autorização da Administração Pública.
No Estado de São Paulo a Lei estadual nº. 10.774/2001, regulamentada pelo Decreto estadual nº. 48.439/2004, dispõe sobre aplicação de multas por danos causados a bens tombados ou protegidos pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo – CONDEPHAAT.
Conforme o disposto no artigo 4º, caput, da referida lei paulista[13], o valor das multas aplicadas pelo CONDEPHAAT deve ser recolhido ao Fundo Especial de Despesa da Secretaria de Estado da Cultura, podendo ser utilizado para a recuperação e preservação de bens tombados.
Depreende-se das citadas normas que os montantes levantados com as sanções administrativas não estão vinculados à preservação e recuperação de bens protegidos[14], fato este que diminui os recursos disponíveis pela Administração Pública na consecução dos deveres de preservação do patrimônio cultural legalmente impostos.
Ainda, a mera imposição de multa revela-se como medida inócua à recuperação, nos casos em que o “abandono” decorre da falta de recursos financeiros dos responsáveis pela preservação do bem protegido, sendo, portanto, necessária a utilização de outras medidas, além da coerção por meio de sanções.
Vejamos alguns instrumentos postos à disposição da Administração Pública que possibilitam a realização das obras necessárias de recuperação e preservação destes bens protegidos, cujos proprietários carecem de recursos financeiros.
3. Utilização de Verbas das Esferas Federativas que efetuaram o tombamento
Uma das alternativas tem respaldo na competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios de proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, conforme preconiza o artigo 23, inciso III, da Constituição Federal[15], podendo as três esferas proteger os bens culturais por meio do tombamento.
Nesse passo, com lastro no federalismo cooperativo, os entes políticos que efetuaram o tombamento do bem realizariam conjuntamente as obras de restauração e conservação do imóvel, podendo firmar convênios com esta finalidade.
Ainda, lei complementar poderia, previamente, definir a participação dos entes nestes casos, com supedâneo no parágrafo único do artigo 23, da Constituição Federal, que atribui à lei complementar a função de fixar “normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional.”
Desse modo, cada esfera dividiriam os aportes, diminuindo o custo da restauração entre aqueles que instituíram o tombamento de forma a otimizar a proteção do patrimônio cultural difuso, evitando-se o cancelamento do tombamento, consoante o disposto no §2º do artigo 19 do Decreto-lei nº. 25/1937[16] por falta de recursos da Administração Pública.
4. Fundo de Defesa de Direitos Difusos
A Administração Pública tem à disposição recursos provenientes do fundo de defesa de direitos difusos, instituído pela Lei nº. 7.347/85, que recebe valores decorrentes de ações civis públicas e de compromissos de ajustamento de conduta (artigo 13 da LACP e artigo 100, parágrafo único da Lei nº. 8.078/90).
O artigo 6º, do Decreto nº. 1.306/94, que regulamenta o fundo, estipula:
“Art. 6º Compete ao CFDD:
I - zelar pela aplicação dos recursos na consecução dos objetivos previstos nas Leis nºs 7.347, de 1985,7.853, de 1989, 7.913, de 1989, 8.078, de 1990 e 8.884, de 1994, no âmbito do disposto no art. 1º deste Decreto;
II - aprovar convênios e contratos, a serem firmados pela Secretaria-Executiva do Conselho, objetivando atender ao disposto no inciso I deste artigo;
III - examinar e aprovar projetos de reconstituição de bens lesados, inclusive os de caráter científico e de pesquisa;
IV - promover, por meio de órgãos da administração pública e de entidades civis interessadas, eventos educativos ou científicos;
V - fazer editar, inclusive em colaboração com órgãos oficiais, material informativo sobre as matérias mencionadas no art. 1º deste Decreto;
VI - promover atividades e eventos que contribuam para a difusão da cultura, da proteção ao meio ambiente, do consumidor, da livre concorrência, do patrimônio histórico, artístico, estético, turístico, paisagístico e de outros interesses difusos e coletivos;
VII - examinar e aprovar os projetos de modernização administrativa dos órgãos públicos responsáveis pela execução das políticas relativas às áreas a que se refere o art. 1º deste Decreto;
VIII - elaborar o seu regimento interno.”
Ainda, os recursos devem ser prioritariamente aplicados na reparação específica do dano causado que originou o valor recolhido ao fundo (artigo 7º, parágrafo único, Decreto nº. 3.06/94).
Destarte, os montantes recolhidos ao fundo de interesses difusos podem ser utilizados para a restauração e preservação de bens protegidos pelo tombamento, sendo que os advindos de indenizações por danos ao patrimônio cultural, preferencialmente, devem ser utilizados para a tutela do meio ambiente cultural.